Índice:
Principais mudanças estruturais

O Sistema Único de Saúde (SUS) dispõe de um bom diagnóstico dos seus problemas e de inúmeras propostas de solução compartilhadas pelos debatedores do sistema de saúde brasileiro. As soluções enfrentam uma série de desafios políticos, que dificultam a implantação de mudanças que poderiam beneficiar o SUS. Mas, antes de entrar nesse debate, é preciso sintetizar quais propostas possibilitam a melhoria de sua prestação de serviços.

Principais mudanças estruturais

Atenção à saúde

Um novo modelo de atenção à saúde, considerando o envelhecimento da população, o predomínio das doenças crônicas, o autocuidado supervisionado e a valorização da atenção primária como coordenadora do cuidado;

Gestão

Reestruturação da organização e da gestão, com base na regionalização, na integração entre os níveis de atenção, em redes de atenção à saúde e na gestão por resultados;

Financiamento

Aumento do financiamento público para garantir os recursos necessários à implantação do direito à saúde, conforme estabelecido pela Constituição Federal (a constituinte determinou o direito à saúde, mas não definiu como financiar esse direito);

Tecnologia

Ampliação da utilização das tecnologias de comunicação e informação para o fornecimento de serviços de saúde, como telessaúde e redes sociais, bem como aprimoramento dos sistemas de informação para a tomada de decisão e ampliação da transparência;

Recursos humanos

Aumento do número de médicos qualificados em medicina de comunidade e família e de incentivos para alocação e permanência dos recursos humanos em lugares distantes dos grandes centros (o projeto Mais Médicos evidenciou esses desafios);

Complexo industrial da saúde

Ampliação do investimento no complexo industrial, científico e tecnológico para atender às necessidades de saúde da população brasileira e evitar a dependência externa de insumos estratégicos utilizados na sua prestação de serviços.

Dito isso, quais são os desafios políticos que precisam ser superados para viabilizar a implantação dessas mudanças no SUS?

Primeiro, há uma disputa entre o setor público e o privado na prestação de serviços de saúde. Apesar da Constituição estabelecer que temos um sistema único, público e universal, na prática, parece que temos dois sistemas: o público e o privado, que competem entre si. Essa disputa de espaço provoca desperdícios, fragmenta o SUS e prejudica o atendimento de saúde da população.

Um efeito maléfico dessa competição é a cultura de que o “sonho de consumo” da população é ter um plano de saúde privado, com base na ideia de que o SUS não funciona e que, além disso, é destinado aos pobres, que não têm opção devido à falta de renda. Uma evidência disso são as negociações sindicais que têm como pauta prioritária garantir um plano de saúde privado aos seus associados. O SUS precisa ser um valor para a sociedade brasileira, como o National Health Service (Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido) é para a população inglesa, sob pena de não conseguirmos superar suas carências.

O Brasil tem um grande setor privado na área da saúde: é o segundo colocado em um ranking mundial, atrás apenas dos Estados Unidos. Essa é uma realidade que precisa ser considerada na formulação das políticas públicas do setor. A participação do setor privado no SUS precisa ocorrer dentro de uma regulação que preserve os princípios constitucionais. O Ministério da Saúde precisa promover uma negociação com todos os interessados no tema para definir claramente o espaço de cada um, tendo em vista o interesse dos usuários do SUS, o aumento da eficiência e a cooperação entre os dois setores.

Eventuais soluções do setor privado já nascem com vício de origem, uma vez que refletem apenas o interesse de ampliar seu mercado tirando proveito das carências do SUS. Nesse contexto, pode não ficar claro se a solução melhora ou não o acesso e a qualidade dos serviços de saúde no país, segundo os preceitos constitucionais. Esse é o caso das recentes propostas de criação de planos de saúde populares ou da rede de prestação de serviços de consultas, que aumentam o desperdício e a desintegração do sistema, ao contrário do que preconizam seus propositores.

Nesse debate entre o espaço do público e do privado, alguns utilizam o argumento simplista de que quanto maior o setor privado menor a demanda ao SUS, mas não funciona assim nos países que têm um sistema público e universal, onde o setor privado é complementar ao setor público. Além disso, a população não tem renda para pagar plano de saúde. Os dados mostram que 75% dos brasileiros dependem unicamente do SUS. Na região Norte do país, esse número chega a 90%. A melhoria do acesso aos serviços de saúde não é uma questão simples, como esse argumento faz parecer. Ao contrário, ela deverá passar pela redução do tamanho do setor privado e, consequentemente, pelo crescimento do setor público.

Todavia, o debate que interessa à população, o qual deveria ser liderado pelo Ministério da Saúde, é sobre como organizar a prestação dos serviços que atendam às necessidades de saúde do cidadão por toda sua vida, em todas as regiões do Brasil, de acordo com os princípios constitucionais e com a participação de todos que possam colaborar.

Para garantir o acesso público e universal aos serviços de saúde, não basta apenas criar o direito constitucional a ele: é preciso superar os desafios políticos para efetivar sua implantação.

O segundo desafio é a falta de continuidade administrativa quando ocorrem as mudanças de governos. Essa troca, normalmente, não garante a continuidade das políticas públicas. Minha experiência à frente da Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo (SESA-ES), entre 2015 e 2018, me leva a afirmar que, se três governos no âmbito federal, estadual e municipal, sequenciais, mantiverem uma política que enfrente os desafios estruturais do SUS elencados acima, poderemos dar um salto de qualidade na prestação de serviços à população. Ou seja, para construirmos soluções efetivas e estruturais, é preciso de 10 a 15 anos de continuidade das políticas públicas de saúde.

O terceiro é a expectativa da população a curto prazo. Milhões de pessoas procuram diariamente os serviços do SUS e precisam de uma solução imediata para seus problemas de saúde. Essa enorme demanda de curto prazo e as dificuldades de acesso aos serviços pautam o debate político. Portanto, para obter o apoio da população e dos políticos para avançar nas mudanças necessárias, não podemos apenas pensar em mudanças estruturais a médio e longo prazo. É necessário promover iniciativas em curto prazo para atender às necessidades por consultas, exames e cirurgias, como a experimentada política de mutirões. No entanto, as mudanças estruturais precisam ser implementadas ao mesmo tempo que as de curto prazo, sob pena de continuarmos postergando a superação das dificuldades de acesso aos serviços de saúde.

As mudanças estruturais também geram resultados imediatos, porém, em menor escala. No início, poucos usuários serão atendidos pelo novo modelo, mas, ao longo do tempo, todos serão atendidos por ele.

O quarto desafio refere-se à multiplicidade de atores, na sociedade e em todos os níveis de governo, que interferem nas políticas de saúde e no seu orçamento. Destaco, sobretudo, o Judiciário, o Ministério Público, os Tribunais de Contas, o Legislativo, os conselhos profissionais, as associações de portadores de doenças e os sindicatos. Alguns órgãos controladores têm autoridade legal para determinar o gasto fora do planejamento do Executivo, e outros controlam a gestão com base na ênfase em processos em vez de resultados.

Articular esse conjunto de interesses políticos, econômicos, institucionais e corporativos não é uma tarefa fácil para o gestor público. Ainda mais quando, para a população e a mídia, por uma avaliação simplista, existe um único responsável pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde, que é o gestor público de plantão. No entanto, se tivermos uma liderança política com clareza do que precisa ser feito, é possível construir apoio político para produzir resultados em curto prazo e avançar nas mudanças estruturais. As políticas públicas que dão certo, em vários governos e em todo o país, demonstram isso.

Essa complexidade, provocada pela existência de múltiplos atores e seus interesses, é pouco considerada no debate público, apesar de sua relevância, uma vez que impõe restrições na velocidade de melhoria da qualidade e eficiência dos serviços de saúde. Por outro lado, impõe uma governança democrática e transparente, que é uma força do SUS. As normas legais que regulam as relações de controle entre os entes públicos precisam ser aperfeiçoadas tendo por objetivo facilitar a produção de resultados no atendimento de saúde à população.

Em síntese, para garantir o acesso público e universal aos serviços de saúde, não basta apenas criar o direito constitucional a ele: é preciso superar os desafios políticos para efetivar sua implantação.

A nota é de responsabilidade do autor e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ele está vinculado.

Ricardo de Oliveira

Engenheiro de produção, foi secretário estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo (ES) entre 2005 e 2010 e secretário estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. É autor dos livros "Gestão Pública: Democracia e Eficiência" (2012) e "Gestão Pública e Saúde" (2020), publicados pela editora da FGV. Também é conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e membro do comitê de filantropia da UMANE.

Inscreva-se na nossa newsletter