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Rede Cuidar
Qualificação da gestão

O objetivo deste artigo é registrar a experiência de quatro anos na implantação da política pública de saúde no Estado do Espírito Santo e, assim, contribuir para o debate sobre formas de melhorar o atendimento no nosso país. A principal conclusão é a de que o SUS funciona, embora precise de melhorias. 

O atual enfrentamento da pandemia do coronavírus pelo SUS provou a todos nós a enorme vantagem de o Brasil possuir um sistema público e universal de saúde como o nosso, mas o SUS enfrenta, hoje, desafios de financiamento, reformulação do seu modelo de atenção à saúde e reorganização da sua gestão. 

Apresentamos, a seguir, um resumo do nosso planejamento, das estratégias e dos projetos que desenvolvemos no período de implantação para enfrentar esses problemas.

A primeira providência foi a realização do planejamento da secretaria, que iniciamos com um diagnóstico da situação assistencial, financeira e organizacional. Identificados os problemas principais, formulamos as estratégias e os projetos necessários para implantá-las. É importante ressaltar que, embora houvesse uma enorme crise financeira em curso, foi definido que a Saúde seria prioridade. Isso se cumpriu com a concessão, para essa área, do maior orçamento entre todas as secretarias no período de 2015 a 2018. 

Considerando-se o diagnóstico da prestação de serviços de saúde, o planejamento definiu três objetivos estratégicos: acesso aos serviços, qualidade dos serviços e qualificação da gestão.

O intuito era ampliar o acesso e qualificar o atendimento e a gestão, sendo a qualificação da gestão a garantia para que fossem permanentes a melhoria na prestação de serviços de saúde para a população e o fortalecimento do papel de liderança da Secretaria estadual de saúde (SESA) no SUS estadual.

 Para alcançar esses objetivos, foram definidas sete estratégias finalísticas e de gestão:

1 — Ampliar a oferta mediante criação de novos serviços e aumento da eficiência dos atuais: “mais leitos, mais consultas e exames”;

 2 — Aprimorar a qualidade do atendimento assistencial com maior transparência na regulação do acesso;

3 — Melhorar o conforto dos cidadãos no acesso aos serviços de saúde por meio de estratégias como: atendimento próximo da casa dos usuários, humanização dos serviços, redução do prazo para atendimento, promoção de ambiente adequado;

 4 — Melhorar a resolutividade da atenção primária à saúde (APS) e da atenção ambulatorial especializada (AAE);

 5 — Integrar os 3 níveis de atenção à saúde: APS, AAE e atenção hospitalar;

 6 — Aumentar o protagonismo do cidadão nos cuidados com a própria saúde;

 7 — Fortalecer a capacidade de planejamento, gestão e controle da Secretaria Estadual de Saúde;

Para implementar as estratégias, foram definidos dois projetos estruturantes: a Rede Cuidar, para reorganizar a política assistencial do SUS, e a qualificação da gestão, para reorganizar a gestão da SESA.

Essa ação conjunta entre a secretaria de saúde estadual e municípios é a única maneira de melhorar a prestação dos serviços de saúde, que depende, também, da articulação e coordenação dos três níveis de governo, inclusive do Ministério da Saúde.

Rede Cuidar

O desafio da SESA, no período de governo (2015 a 2018), foi o de superar o modelo de atenção centrado na assistência hospitalar e reverter a lógica fragmentada do sistema de saúde capixaba, reestruturando-o com base no conceito de redes de atenção regionalizadas. Essa perspectiva de funcionamento pressupõe uma definição clara sobre as funções essenciais de cada unidade assistencial, no âmbito da atenção primária, secundária ou terciária, dentro de um sistema de saúde que tenha como premissas básicas a eficiência alocativa de recursos humanos, tecnológicos e financeiros e o atendimento humanizado, resolutivo, de qualidade e em tempo oportuno.

A reorganização da política assistencial — referente à atenção primária, à atenção ambulatorial especializada e à atenção hospitalar — foi feita considerando-se as redes de atenção à saúde, as regiões de saúde e a descentralização da gestão para essas regiões. A intenção foi fazer com que os usuários fossem atendidos em sua própria região, evitando longos deslocamentos pelas estradas para terem acesso aos serviços. Outro foco foi possibilitar que a região de saúde se organizasse para administrar, em conjunto com a SESA, a prestação de serviços de saúde na região, gerando economia de escala e escopo, além de ganhos de governabilidade política e de regulação. 

Nesse contexto, a SESA  coordenou a implementação de uma mudança estrutural nos processos de trabalho, que vão desde o primeiro atendimento do paciente, na unidade de saúde mais próxima de sua casa, até o serviço especializado. Tal mudança garante que haja fluxo mais adequado e integralidade do cuidado, além de possibilitar a redução tanto nas filas de espera quanto nos encaminhamentos desnecessários à média complexidade, o que permite a priorização dos pacientes que realmente necessitam do atendimento especializado e uma maior eficiência alocativa de recursos.
Uma ação importante foi a regionalização dos serviços de saúde, pois permite ganhos de eficiência na prestação de serviços, ao propiciar um esforço conjunto dos municípios, participantes da região, e da SESA, na organização da prestação dos serviços públicos de saúde. 

Essa ação conjunta entre a secretaria de saúde estadual e municípios é a única maneira de melhorar a prestação dos serviços de saúde, que depende, também, da articulação e coordenação dos três níveis de governo, inclusive do Ministério da Saúde.

A Rede Cuidar é a expressão concreta desse projeto de reorganização da atenção à saúde, consolidado pela Lei estadual n. 10.733, de 19 de setembro de 2017. Para a sua implantação, foi realizado um conjunto de intervenções voltadas para a integração entre a APS (atenção primária), a AAE (atenção ambulatorial especializada) e a atenção hospitalar. 

Destacamos, como exemplos, a Planificação da Atenção à Saúde para capacitar inicialmente a APS e a AAE, além da abertura das unidades Cuidar. Essas unidades são ambulatórios especializados no atendimento a portadores de condições crônicas de saúde por equipes multiprofissionais, cujo acesso é definido por meio da estratificação de risco pela APS. Elas não atendem apenas portadores de condições crônicas, como também de outras necessidades regionais de atenção especializada.

A intervenção assistencial é conduzida com base na elaboração de um Plano de Cuidados na Unidade Cuidar a ser utilizado para gestão clínica dos usuários tanto na própria unidade quanto na APS. Cinco unidades foram construídas para atender o estado, e quatro delas iniciaram o atendimento até 2018. A ordenação do fluxo na Rede de Atenção à Saúde é realizada a partir da atenção primária, com estratificação de risco de gestantes, crianças, hipertensos e diabéticos.

A implantação da educação permanente dos profissionais de forma integrada entre a APS e AAE é uma inovação que tem por objetivo superar a fragmentação existente entre esses dois níveis de atenção à saúde.

Além de introduzirmos o bloco de horas para possibilitar o agendamento de atendimento nas unidades básicas de saúde e na unidade Cuidar, incentivamos o autocuidado — prática fundamental para controlar as doenças crônicas —, orientamos a respeito de alimentação e exercícios físicos e humanizamos o atendimento. Para que fosse possível estabelecer esse novo modelo de atendimento, foi desenvolvido um sistema de informação que permite a relação entre as unidades de saúde e o atendimento especializado nas unidades da Rede Cuidar.

A reorganização da gestão da SESA objetivou: garantir a boa aplicação dos recursos do SUS; dar sustentabilidade ao processo de melhoria contínua da prestação de serviços de saúde ao longo do tempo; garantir a legalidade dos atos de gestão; e combater a ineficiência, o desperdício, o clientelismo, o corporativismo e o desvio de recursos públicos das suas finalidades.

Qualificação da gestão

Para alcançar esses objetivos, capacitamos lideranças e iniciamos a implantação da gestão por resultados mediante estabelecimento de indicadores e metas para áreas estratégicas e monitoramento periódico pela central de resultados. 

Aumentamos a transparência e aperfeiçoamos o gerenciamento, por meio da implantação de vários sistemas de informação relativos a custos, controle dos indicadores hospitalares, prestação de contas dos prestadores contratualizados e regulação de consultas e exames, com o apoio do portal do SUS e do Sistema Integrado de Gestão Administrativa (SIGA). Além disso, fortalecemos o controle social com a nova lei do conselho estadual de saúde, que democratizou o acesso das organizações da sociedade civil ao conselho e ampliou sua autonomia política.

Promovemos a modernização da gestão hospitalar por meio das organizações sociais — entidades sem fins lucrativos —, que assumem a gestão dos hospitais públicos após processo seletivo público e assinatura de contrato de gestão com a secretaria, que estabelece metas de melhoria da eficiência e do atendimento aos usuários. 

O Estado do Espírito Santo conta, hoje, com quatro hospitais geridos por organizações sociais. Estabelecemos, na secretaria, uma estrutura destinada ao controle dessas organizações, medida fundamental para o funcionamento adequado desse modelo de gestão hospitalar. Hoje, a relação contratual da secretaria com as organizações sociais é pautada por um nível apropriado de transparência e controle.

O nosso objetivo, com esse projeto, foi construir uma burocracia de estado eficiente, profissionalizada, transparente, que respeite a legalidade, esteja comprometida com os usuários do SUS e seja subordinada ao poder político.

Os resultados alcançados mostraram que a política pública de saúde estava no rumo certo. O IBGE divulgou, em 2018, que o ES alcançou a menor taxa de mortalidade infantil do país e a segunda maior de expectativa de vida ao nascer. O indicador para quem atingiu 60 anos ou mais colocou o ES em primeiro lugar. Apesar do nítido avanço, ainda persistem desafios que precisam de tempo, continuidade das políticas públicas e persistência nos objetivos para serem superados.

Esta nota é de responsabilidade do respectivo autor e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais o autor está vinculado.

Ricardo de Oliveira

Engenheiro de produção, foi secretário estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo (ES) entre 2005 e 2010 e secretário estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. É autor dos livros "Gestão Pública: Democracia e Eficiência" (2012) e "Gestão Pública e Saúde" (2020), publicados pela editora da FGV. Também é conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e membro do comitê de filantropia da UMANE.

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