No mês passado, a República em Notas publicou um texto de minha autoria sobre o que pensam os servidores concursados do serviço secreto a respeito do órgão em que atuam (A reforma da Abin vista por dentro). Agora, proponho uma nova discussão: o que os servidores da Agência Brasileira de Inteligência têm lido nestes tempos de ataque aos pilares da democracia no Brasil?
Um cientista político britânico tem sido lido com bastante interesse em círculos de agentes concursados da Abin que estão comprometidos com o Estado Democrático de Direito. Trata-se de Peter Gill, que há anos pesquisa os processos de democratização de países com histórico de autoritarismo, especialmente no que diz respeito às áreas de segurança e inteligência.
Em seus escritos sobre os países da América Latina que superaram os regimes autoritários, incluindo o Brasil, Gill costuma alertar para o “legado maligno” que pesa sobre os órgãos de Estado encarregados da segurança e da inteligência. No setor de inteligência, o pesquisador diz não haver base jurídica clara para o exercício da atividade ou para a execução do orçamento. O recrutamento de agentes, por seu turno, ainda é feito conforme influência de bases ideológicas.
Peter Gill afirma que, a exemplo do que ocorria na época dos regimes autoritários, os órgãos de inteligência do Brasil e de vários de seus congêneres latino-americanos continuam atuando com foco no “inimigo interno”, noção herdada da Guerra Fria.
Esse atraso institucional, especificamente no caso do Brasil, é explicado, em parte, pela histórica inércia da sociedade e de seus agentes públicos quanto à necessidade de atualização dos arcabouços legais do setor. Prova disso é o fato de a Constituinte de 1988 não ter sequer abordado os sistemas de inteligência. Apenas em 1990, o debate sobre o arcabouço legal do setor foi aberto publicamente, quando Fernando Collor de Mello tomou posse como presidente da República e promoveu, de forma atabalhoada, a extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Desde então, o enquadramento institucional do serviço secreto pouco caminhou. A Abin segue atuando sem mecanismos de controle efetivos, seja por parte do parlamento, seja por parte do executivo, ou mesmo por parte do judiciário.
Em março do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva alterou o organograma do setor de inteligência ao transferir para a Casa Civil a subordinação da Abin (um órgão civil), que antes estava vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), de natureza militar. Anos antes desse evento, Peter Gill já argumentava que o domínio civil sob o serviço secreto é essencial, mas não elimina a necessidade de serem estabelecidos mecanismos de controle externo.
Peter Gill, contudo, registra um avanço: a obrigatoriedade, desde 1994, de concurso público para ingresso nos postos de carreira do órgão. O cientista político aposta que a renovação da Abin passa pela valorização do quadro de servidores.
É lamentável que, passados quase vinte anos da instituição de concurso público na Abin, sua direção não tenha sido exercida por um de seus servidores concursados. Ao longo desse período, o posto já foi ocupado por ex-agentes do SNI e por delegados da Polícia Federal e da Polícia Civil.
Peter Gill deveria ser mais lido fora dos muros da Abin.
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