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Formas de violência
Mulheres Negras
Este é o segundo de uma série artigos sobre burocracia representativa. Se você perdeu o primeiro, acesse aqui. Este artigo traz alguns resultados da pesquisa survey conduzida com 310 servidoras do Poder Executivo Federal para pesquisa de doutorado, em andamento, de Iara Alves, sob orientação de Maíra Kubik, no Programa de Pós-Graduação em Estudos sobre a Mulher, Gênero e Feminismos da UFBA.
Ao pesquisar as palavras “burocracia reuniões governo federal”, os resultados das imagens na internet comunicam a identidade de quem toma decisões sobre políticas públicas no Brasil:
As figuras 1 e 2 retratam a não diversidade de opinião e interesses no Poder Executivo Federal. Jornais televisivos e eletrônicos veiculam diariamente as imagens de homens brancos tomando decisões. Ao ter contato somente com imagens de homens brancos liderando a gestão pública, os estereótipos de gênero e raça relacionados à subalternidade de mulheres e pessoas negras são imediatamente ativados.
Uma das consequências da falta de representação é o não pertencimento ao espaço de poder. Isso pode facilmente ser observado no cotidiano da burocracia. Por exemplo, em recente pesquisa survey conduzida para pesquisa de doutorado na UFBA com 310 servidoras públicas federais, constatamos que apesar de as mulheres serem 49% da força de trabalho do Poder Executivo, 84% delas relataram não ter acesso a berçário ou creche em seu ambiente de trabalho – uma clara demonstração de que os ambientes de trabalho não foram modificados para agregar a crescente presença de mulheres no serviço público.
A maior parte das servidoras, 73%, relatou que as discussões sobre igualdade de gênero são vistas como de menor importância dentro de seus órgãos. Mais de 87% delas afirmaram não haver nenhum tipo de programa de mentoria ou capacitação voltada para mulheres alcançarem cargos de liderança, mesmo sabendo que elas não ocupam nem 20% dos cargos de titular de secretaria nacional no Poder Executivo, segundo pesquisa da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
Tomaz Tadeu da Silva afirma que a diferença é construída por meio da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem. Decisões organizacionais de não prover estrutura para acolher mulheres que se tornam mães, de não discutir a igualdade de oportunidades de liderança para homens e mulheres e de se omitir em relação à ausência de mulheres em cargos de liderança fazem parte de uma cultura organizacional construída por homens e para os homens continuarem no poder.
Ao serem minoria nos cargos em comissão, as mulheres convivem diariamente com situações de discriminação de gênero e de reafirmação do poder pelos homens. Na pesquisa de survey, 71% revelaram que já sentiram discriminação por serem mulheres.
As discriminações, segundo a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho, são qualquer forma de distinção e exclusão que alteram a igualdade de oportunidades e de tratamento no trabalho. Mulheres, pessoas negras, população LGBTQIA+, pessoas com deficiência, e de classes inferiores na pirâmide social são as mais afetadas pelas violências cotidianas no mundo do trabalho.
Neste trabalho, por motivos de metodologia, vamos focar nas situações de sexismo. São afirmações, indagações, gestos, atitudes que marcam o poder masculino para diminuir a autoestima, a segurança e a autoconfiança de mulheres no trabalho. Vão desde discriminações mais graves como assédios sexual e moral, que constituem crime, a situações mais sutis mas não menos agressivas, que diminuem a voz das mulheres nos espaços públicos.
FORMAS DE VIOLÊNCIA
Uma forma de discriminação é o mansplanning: situação em que homens explicam para as mulheres o que elas conhecidamente dominam. Na pesquisa, 81% das servidoras já perceberam ter passado por essa situação. Outra forma de discriminação é quando um homem quer fazer com que mulheres pareçam “loucas” – gaslighting. Este é um recurso discursivo dos homens, uma forma de abuso psicológico, utilizado tanto no espaço privado como público, para fazer com que as mulheres duvidem de si mesmas, de sua memória e de sua percepção da realidade. A pesquisa indicou que somente 33% das servidoras afirmaram nunca terem percebido passar por essa situação.
Outra atitude muito comum por parte de homens é se apropriar de uma ideia que foi dada por uma mulher: bropropriating. Nessa situação, como em todas as outras do mundo machista, eles são cúmplices um do outro. É muito comum uma mulher falar algo numa reunião e ser ignorada. Logo após, um homem fala praticamente a mesma coisa e os colegas o elogiam e o citam mais tarde. Quase metade, 47%, das servidoras públicas federais relatou ter passado por esta situação com frequência ou com muita frequência.
O que mais ocorre são as interrupções de fala, chamadas de manterrupting. Para 61% das servidoras, os homens com frequência ou muito frequência nem pensaram duas vezes ao interrompê-las quando estavam falando e 25% já passaram por isso uma ou outra vez.
Muitas burocratas passam por essas situações sem perceberem o machismo a que são submetidas. Oitenta e sete por cento das servidoras afirmaram que não reagiram à discriminação porque nem perceberam essas formas sutis de discriminação de gênero no trabalho. Muitas, 57%, apesar de terem percebido, não conseguiram reagir. Um dado importante é que 97% das que reagiram afirmaram ter buscado redes de apoio com outras mulheres. A presença de mais mulheres é fundamental para o fortalecimento coletivo.
Tomaz Tadeu e Silva destaca que a “demarcação de fronteiras” afirma e reafirma as relações de poder. As imagens que reforçam a presença de líderes homens e os recursos linguísticos que diminuem a participação de mulheres nos espaços de decisão oferecem barreiras para a ascensão de servidoras a cargos de alta gestão, o chamado teto de vidro.
A pesquisa indicou também que 78% das servidoras brasileiras sentem que seu conhecimento ou capacidade são subestimados, e 60% não são convidadas com frequência para os eventos sociais que os chefes promovem. Ao receberem mais críticas ao atuar na gestão pública, terem menos apoio de seus colegas homens e serem excluídas de suas redes de relacionamento, as mulheres se tornam menos visíveis para indicação a cargos em comissão.
Mulheres Negras
Considerando a experiência interseccional de gênero, as gestoras públicas negras, que estão em bem menor número na burocracia, são invisibilizadas. Vez ou outra, ainda se vê uma ou outra mulher branca representada no meio dos homens nas reuniões estratégicas, mas raramente encontramos uma mulher negra. A ausência quase completa de mulheres negras nas imagens que representam cargos de decisão do poder público reforça a realidade de exclusão e naturaliza as desigualdades causadas pela diferença.
Lélia Gonzalez afirma que o lugar em que as mulheres negras se situam determina a interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Ao não se enxergarem nas lideranças, não serem representadas nas imagens, nos discursos e recursos linguísticos, a identidade da mulher negra servidora pública é imposta por relações de poder hierarquizadas.
Silva destaca que umas das maneiras de marcar presença do poder é deixar claro quem pertence e não pertence a determinados lugares. E a ausência de representação de mulheres, em especial negras, nos espaços de tomada de decisão no Poder Executivo Federal demarca bem essa fronteira de exclusão social.
Na direção contrária do efeito Kamala Harris nos Estados Unidos, a baixa representação de mulheres e pessoas negras na alta burocracia do Poder Executivo Federal comunica que o governo tem uma única perspectiva social. As decisões e prioridades políticas do país têm sido direcionadas à manutenção dos privilégios do grupo social predominante de homens, que se diz neutro e universal, reagindo a qualquer iniciativa de inclusão das mulheres, indígenas e população negra.
Um dos efeitos esperados da representação é o engajamento dos grupos sociais diversos no projeto de Estado. A maior inserção de mulheres, indígenas e pessoas negras na burocracia e nos espaços de participação da sociedade civil nos anos anteriores mobilizou políticas, aparato legal e orçamentário para grupos populacionais específicos na agenda governamental.
Apesar de os resultados para a redução das desigualdades econômicas ainda estarem longe de serem sentidos, os efeitos simbólicos permanecem. A modificação da autoimagem e o autorrespeito desses grupos sociais, excluídos do projeto de governo atual, tem levantado o debate público com suas perspectivas sociais. Por mais que o grupo dos homens brancos cis ocupem grande parte dos cargos de decisão no governo federal, eles já não conseguem invisibilizar o grupo de mulheres, população negra e indígenas, que cada vez mais reinvidicam a sua participação institucional.
Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.
Iara Alves
Servidora Pública Federal da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutoranda no Programa de Pós Graduação Interdisciplinar sobre Mulheres, Gênero e Feminismos na UFBA.