Por Iara Alves

Este é o primeiro de uma série de cinco artigos que irá refletir sobre servidoras públicas que trabalham na burocracia pública federal representando o grupo social de mulheres brasileiras, seja apenas de forma passiva – impacto simbólico – ou de forma ativa – impacto substantivo – de modo a influenciar a gestão e as políticas públicas. Neste primeiro texto, será apresentado o conceito de burocracia representativa, passiva e ativa, para, nos próximos artigos, refletirmos sobre as possibilidades de mulheres servidoras serem agentes de mudanças em prol da igualdade de gênero, conforme pesquisa survey conduzida como parte de minha pesquisa de doutorado com mais de trezentas servidoras de carreiras estratégicas em nível federal.  

Índice
Panorama da administração pública
Burocracia representativa

Representações burocráticas
Influência das tomadas de decisões de políticas públicas

Panorama da administração pública

As mulheres são pelo menos metade da burocracia. Em seu cotidiano de trabalho, as servidoras têm algum grau de poder na tomada de decisão que estrutura a vida das pessoas e suas oportunidades. Ao inserir a perspectiva de gênero, tendo consciência da condição, posição e interesses das mulheres brasileiras, as servidoras podem revolucionar a forma como a administração pública atende a população. Para um maior impacto de sua presença, mulheres, brancas e negras, precisam compor o corpo da média e alta burocracia, formada por cargos comissionados de nível mínimo 4, para terem o poder de alocação de recursos públicos e decisão sobre a agenda pública e propostas de legislações. 

O campo da administração pública entende a burocracia representativa como representação de toda a diversidade da população no Estado, como forma de promover acesso a oportunidades iguais. De acordo com Mosher (2003), apesar de não garantir tomadas de decisões democráticas, a diversidade de gênero e raça na representação burocrática traz valores simbólicos importantes para a democracia. Porém, para as minorias sociais terem potencial de representação ativa em nível gerencial, elas precisam alcançar um percentual mínimo de massa crítica nos cargos com poder de decisão. O percentual mínimo necessário pode variar de organização para organização ou até mesmo de país para país, mas o percentual de 30% tem sido utilizado convencionalmente.   

Burocracia representativa

O conceito de burocracia representativa implica que quem formula e implementa política pública não é neutro (GROENEVELD; WALLE, 2010). A representação burocrática nas diversas organizações públicas pode explicitar ou encobrir perspectivas de gênero e raça no processo decisório das políticas públicas. Se a ocupação de cargos na alta burocracia é formada quase que exclusivamente por homens brancos, as perspectivas de mulheres e pessoas negras são encobertas e as demandas dessa população não são alcançadas ou são colocadas em um segundo plano, sem prioridade na agenda pública.

Os estudos sobre burocracia representativa defendem que ela deve parecer com o público que representa, de modo que interesses de toda a diversidade da sociedade sejam considerados nas decisões governamentais (RICCUCCI; RYZIN, 2017). Ao reconhecer o poder político inerente ao trabalho do gestor público, estudiosos da administração pública endossam a teoria da burocracia representativa como uma maneira de a gestão pública ser mais responsiva ao público que ela serve e, portanto, mais democrática (SOWA; SELDEN, 2003).

Representações burocráticas

De acordo com a teoria da burocracia representativa, a representação pode ser passiva, simbólica e ativa (MEIER, 2019). A representação burocrática é passiva quando espelha a sociedade a que serve, ou seja, quando há no serviço público igual proporção de gênero, raça e etnias da população. A representação passiva pode resultar em representação simbólica ou representação ativa. 

A representação simbólica ocorre quando a presença de grupos sociais na burocracia aumenta a percepção de legitimidade da política, melhorando seus resultados, uma vez que o público beneficiário se torna mais colaborativo e engajado na coprodução da política.

A representação burocrática se torna ativa quando a presença de diferentes grupos sociais resulta em decisões públicas tomadas em prol da igualdade de gênero, raça e etnias, por exemplo. 

Estudos demonstram que nem todas as pessoas pertencentes a minorias sociais ativam a representação na burocracia. Então, a questão é entender quem o faz e quando. Pesquisas sobre governos em outros países (DOLAN, 2000; 2002; HINDERA, 1993; SELDEN, 1997) sugerem que burocratas de médio e alto escalão, que possuem mais recursos e discricionariedade, têm mais chances de resistir a pressões organizacionais e decidir pela representação ativa.

A teoria da burocracia representativa condiciona a transição da representação passiva para ativa a algum grau de percepção da amplitude do poder discricionário por parte de gestores públicos, somado ao reconhecimento da sua identidade como parte de uma minoria social (SOWA; SELDEN, 2003). A aceitação de seu papel de representação ocorre na medida em que gestores se percebem como potenciais promotores do acesso das minorias a programas públicos.

A teoria da burocracia representativa parte da premissa de que a burocracia é composta de pessoas que têm opinião e discricionariedade suficientes para influenciar regras e conformar políticas públicas. Assim, trazer a diversidade de perspectivas e interesses para a tomada de decisão na gestão pública é tornar as políticas públicas menos enviesadas e mais responsivas ao público (MEIER, 2019).

Mesmo sem ter consciência de sua capacidade de representação, por não terem recebido uma delegação originada de uma eleição ou outro procedimento de autorização, gestores públicos imprimem valores que podem ser de cunho individual ou agregado (MEIER, 2019). Assim, a participação em maior ou igual proporção na alta burocracia da administração pública aumenta a probabilidade de maior representação de interesses e perspectivas de diversos grupos sociais na tomada de decisão sobre políticas públicas e alocação de recursos públicos.

A literatura sobre burocracia representativa (GROENEVELD;  MEIER, 2019; PITTS, 2005; SOWA; SELDON, 2003; WALLE, 2010) demonstra que a igualdade de representação das minorias sociais, contextualizadas de acordo com cada país, permite que o serviço público seja reconhecido pela sociedade como mais democrático, promovendo o alívio de tensões sociais. Ao assumir seu papel representativo, o gestor público pode tomar decisões com maior probabilidade de impactar no avanço dos interesses das minorias (SOWA; SELDEN, 2003).

A representação simbólica faz com que cidadãos se sintam motivados a cooperar para resultados relevantes da política (VAN RYZIN, RICCUCCI, LI, 2017). Uma burocracia representativa pode afetar a percepção do público de uma determinada política pública sobre a legitimidade da ação governamental, e, consequentemente, aumenta a probabilidade de cooperação e atendimento a regras, em especial se a política for direcionada para minorias. A representação burocrática é um indicador de equidade para o serviço público, que deve ser um motor de práticas a serem seguidas pelo setor privado. A mera representação passiva de gênero, raça e etnicidade nas burocracias governamentais expressa valores democráticos e serve como vetor de práticas justas (RICCUCCI; RYZIN, 2016)

Influência das tomadas de decisões de políticas públicas

Estudos empíricos (MEIER; NICHOLSON-CROTTY, 2006; MEIER; NIGRO, 2003; MEIER, 2019) demonstram que gênero, raça e etnicidade influenciam na tomada de decisões de políticas públicas, na legitimidade da política e na relação da burocracia com o público. A tradicional visão da neutralidade e da busca pela eficiência no serviço público é um limitador para a ativação da representação na burocracia. Gestores centrados na eficiência das organizações provavelmente terão menor grau motivacional para favorecer grupos minoritários (SOWA; SELDEN, 2003). Burocratas ativos em sua representação buscam a equidade como resultado da implementação da política, ou seja, a inclusão das pessoas que historicamente não têm acesso aos serviços e benefícios públicos. Quando gestores assumem uma posição representativa, há mais probabilidade de que suas decisões tenham impacto no avanço dos interesses das minorias (SOWA; SELDEN, 2003)

A teoria da burocracia representativa procura fazer com que as decisões públicas se tornem menos enviesadas, e não parciais, como se argumenta. Uma perspectiva neutra de regras para programas e políticas públicas é uma reafirmação das desigualdades existentes entre raças, etnias e gêneros (MEIER, 2019). O comportamento de um ou uma burocrata que representa uma minoria social pode contribuir para mudanças significativas na formulação e implementação de políticas públicas. 

A recompensa para a representação ativa está ligada ao sentimento de pertencimento e de identidade do/da burocrata com o grupo social. Assumir a posição representativa é defender seus próprios valores, uma motivação intrínseca de grande relevância (MEIER, 2019) dentro dos procedimentos institucionais da burocracia. Outro fator é o sentimento de justiça (YOUNG, 2011) de gestores conscientes das desigualdades causadas pelas diferenças de gênero e raça na sociedade. 

Os estudos desenvolvidos nas últimas décadas mostraram que os elementos que favorecem a representação ativa são: consciência ou a saliência da identidade; poder de discricionariedade; ambiente organizacional favorável; maior proporção de minorias em cargos de liderança. Provocar mudanças na maneira de produzir e gerir políticas públicas envolve mudar a representação de poder político e ampliar a diversidade de perspectivas e interesses dentro do aparelho burocrático. Quando as áreas de políticas públicas que visam a beneficiar grupos específicos da sociedade são lideradas e geridas por burocratas que os representam, a relação entre o público e a burocracia muda e os resultados da representação ativa são mais prováveis (RICCUCCI; VAN RYZIN, 2017).

No entanto, os critérios de seleção de servidores públicos para cargos em comissão ignoram que grupos sociais específicos da sociedade não estão tendo a mesma facilidade de acesso às instâncias de tomada de decisão do Estado. Propaga-se a ideia de que burocratas são corpos neutros, trabalhando com expertise, como se eles não imprimissem valores e perspectivas próprias. Porém, é pouco democrático quando se verifica que o recrutamento tem resultado em um corpo político e burocrático estatal branco e masculino, e de classe média para alta, quando consideramos os cargos da média e alta burocracia. A gestão pública precisa alterar seus padrões brancos naturalizados de decisão e de comunicação governamental, de forma a possibilitar reverter o racismo estrutural e os estigmas sexistas internalizados nas instituições. Buscar a igualdade envolve reconhecer as desigualdades e suas determinações sociais, assim como a importância da diversidade para políticas públicas mais inclusivas.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Iara Alves
Servidora pública da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Ministério da Economia) desde 2007. Doutoranda e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (PPGNEIM) da UFBA. Pesquisa sobre representação de mulheres na gestão pública.

BIBLIOGRAFIA
DOLAN, Juilie. The Senior Executive Service: Gender, Attitudes, and Representative Bureaucracy. Journal of Public Administration Research and Theory – PART 10, pp. 513-529, 2000. 

DOLAN, Juilie. Representative Bureaucracy in the Federal Executive: gender and spending priorities. Journal of Public Administration Research and Theory – PART 12, pp. 353-375, 2002.

GROENEVELD, Sandra; VAN DE WALLE, Steven. A contingency approach to representative bureaucracy: power, equal opportunities and diversity. International Review of Administrative Sciences, v.76, n. 2, pp. 239-258, 2010.

HINDERA, John J. Representative Bureaucracy: Imprimis Evidence of Active Representation in the EEOC District Offices. Social Science Quarterly, v. 74, n. 1, pp. 95-108, 1993.

MEIER, Kenneth J.; NICHOLSON-CROTTY, Jill. Gender, Representative Bureaucracy, and Law Enforcement: The Case of Sexual Assault. Public Administration Review,v. 66, n. 6, pp. 850-860. 2006.

MEIER, Kenneth J.; NIGRO, Lloyd. Representative bureaucracy and policy preferences: A study in the attitudes of Federal Executives. In: DOLAN, J.; ROSENBLOOM, D.H (Orgs.). Representative Bureaucracy: Classic Readings, London and New York: Routledge, 2003.

MEIER, Kenneth J. Theoretical Frontiers in Representative Bureaucracy: New Directions for Research. Perspectives on Public Management and Governance, Oxford University Press on behalf of the Public Management Research Association: Oxford, pp. 39–56, 2019.

MOSHER, Frederic C. Democracy and the Public Service. In: J. Dolan; D.H. Rosenbloom (Orgs.). Representative Bureaucracy: Classic Readings, London and New York: Routledge, 2003.

PITTS, David W. 2005. Diversity, representation, and performance: Evidence about race and ethnicity in public organizations. Journal of Public Administration Research and Theory, Oxford University Press: Oxford, v. 15, n. 4, pp. 615-631, 2005.

RICCUCCI, Norma; VAN RYZIN, Greg. Representative Bureaucracy: A Lever to Enhance Social Equity, Coproduction, and Democracy. Public Administration Review, v. 77, dez., 2016. 

RICCUCCI, Norma M.; VAN RYZIN, Greg; LI, H. Representative bureaucracy and its symbolic effect on citizens: a conceptual replication. Public Management Review, v. 19, n.9, pp. 1365-1379, 2017.

SELDEN, Sally Coleman. The Promise of Representative Bureaucracy: Diversity and Responsiveness in a Government Agency, Armonk N.Y Sharpe, 1997.

SOWA, Jessica E.; SELDEN, Sally C. Administrative discretion and active representation: An expansion of the theory of representative bureaucracy. Public Administration Review, v. 63, pp. 700–10. 2003.

YOUNG, Iris M. Justice and the Politics of Difference. New Jersey: Princeton University Press, 2011.

Inscreva-se na nossa newsletter