Por Angélica Kely de Abreu

Desde de que fui convidada a escrever este texto uma questão brotou na minha mente, pulsante: “ué, eu sou uma liderança feminina negra?” O termo liderança vem com muita responsabilidade, assusta e estranha. A partir desse estranhamento a trajetória de minha vida projetou-se pela escuridão de meus olhos fechados. 

Não pretendo ratificar um discurso meritocrático sobre minha ascensão sociocultural e econômica. Até porque eu sou uma exceção. Sou um ponto fora da curva, infelizmente. A diferença entre uma mulher negra no serviço público e uma mulher negra no trabalho doméstico é uma linha tênue: oportunidade. Sou uma mulher de sorte. Com uma carreira permeada por oportunidades. A mim só coube aproveitá-las. 

Tenho a esperança de vivermos em tempos nos quais a sorte não será tão importante diante de possibilidades múltiplas e isonômicas instrumentalizadas por políticas públicas de igualdade de gênero e racial.

Enquanto elas não veem, convido-os a entender como é uma liderança feminina negra no serviço público, apesar de não me enxergar enquanto liderança. Venham! Puxem a cadeira e tomem um café. Vamos dar tom a minha subjetividade. 

Sou filha de lavradores migrantes. Mineiros retirantes do campo em Minas Gerais rumo à cidade: à Cidade do Aço (Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro). De lavradores tornaram-se caseiros em um sítio, carregando nos braços quatro filhos. Digo ter vivido dois mundos separados por uma cerca e uma escada. No alto, a casa colonial com seis suítes, piscina, sauna, churrasqueira e biblioteca, ah…como era fabulosa essa biblioteca. Na parte baixa, uma casa de dois quartos, um banheiro, sala e cozinha sob a telha de amianto, sem biblioteca, mas com uma leitora curiosa como só. Uma casa perfumada por sabores, cheiros, movimento e som. Com uma cumplicidade e alegria indescritível entre as mulheres ali habitantes. Percebi prematuramente a característica imensurável do riso, não há dinheiro que compre. 

A minha mãe, Geralda, é precursora de uma mulher negra no serviço público. Nunca esteve inserida na gestão pública, explicitamente não. Ela fora a base, a fã, a incentivadora, a torcida, a certeza de que em algum momento sua filha caçula inserir-se-ia em um órgão público. Era um status imenso. Olhem só! Aqui estou. Graças a um mundo possível apresentado a mim e à rezas de minha mãe.

No entanto, nem tudo são flores. Há um custo nesta inserção. Ser mulher, negra, jovem, periférica é entender como esses marcadores da diferença muitas vezes a estereotipa no relance do olhar do outro. Há um imenso peso nisso. Sinto-me em diversos momentos estrangeira nas instituições pelas quais transito. E lido com isso priorizando o lado profissional, técnico e deixando guardado a Angélica-menina enquanto tateio o ambiente.  Além disso, há uma auto cobrança absurda. Sempre defendi internamente a urgência em ser a melhor: a mais responsável, a mais diligência, a mais estudiosa, a mais atenta, a sem o direito de errar. O que causa sofrimento e adoecimento psíquico. Esse é o ponto negativo da inserção de uma mulher negra em uma administração pública não isenta dos mecanismos sociais de opressão como sexismo e racismo. 

Por outro lado, estar aqui movimenta toda a pirâmide social como defende Angela Davis. É recolher o eco da voz da minha mãe (e de muitas mulheres negras) como poetisa Conceição Evaristo. Ser uma mulher negra na administração pública é promover uma burocracia representativa. Ou seja, no convívio com servidores e com o público cria-se uma mudança no imaginário social quanto ao perfil do ocupante daquele cargo, eis a imensa relevância na efetivação das cotas no serviço público instituídas pela Lei 12.990/14, com sua função precípua pedagógica de cutucar o racismo institucional. Além de permitir trocas mútuas de aprendizagem entre amigos de trabalho com perfis socioeconômicos distintos, através da reciprocidade cotidiana confluem lutas, admiração, respeito, apesar de em um primeiro contato causar estranhamento. Entendo, portanto, ser uma mulher negra na administração pública é um movimento de troca de saberes, da diversidade dos rostos, peles, olhares, é a união humanitária entre os distintos: “eu sou porque nós somos”, Ubuntu!

 

Angélica Kely de Abreu é advogada, pesquisadora sobre políticas públicas de igualdade racial, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense

Inscreva-se na nossa newsletter