Por Julia Sena

Evento que marca a aprovação do projeto de lei que visa punir atos de LGBTfobia em espaços públicos e privados do Município de Propriá, em Sergipe // Foto: arquivo pessoal

Apesar de o Brasil ser considerado um dos países mais avançados das Américas no que diz respeito aos direitos de pessoas LGBTQIA+, são conquistas recentes: a redesignação sexual começou a ser feita pelo SUS em 2008, a adoção de crianças por casais homossexuais foi autorizada em 2010 e o casamento civil de casais do mesmo sexo foi reconhecido em 2013. A transformação desses e outros direitos em políticas públicas efetivas passa pelas mãos das profissionais públicas, responsáveis por planejar e implementar esses programas.

As três histórias que ouvimos abaixo ilustram como profissionais públicas LGBTQIA+ no corpo técnico e em cargos de liderança têm contribuído para desenhar políticas públicas mais efetivas. A experiência de cada um foi um trunfo, do qual tem orgulho. São exemplos de como o fomento à diversidade no setor público é chave para termos políticas e programas públicos que funcionem para nossa população, também diversa.

Victor Chagas tem sido uma peça importante nesse processo para a população fluminense. Economista de formação, ele começou a atuar no Instituto de Segurança Pública (ISP) em 2016 e, após presenciar o lançamento do Dossiê Mulher, um relatório que traz informações relativas à violência contra a mulher no Estado do Rio de Janeiro, decidiu fazer o mesmo sobre casos de LGBTfobia no estado. Chagas é gay e uma coisa que o incomodou desde que se assumiu foi a falta de referências.

“Os dossiês são ótimos instrumentos para fazer política pública. De nada adianta você ter números se não conhecer a realidade daquela população”

Victor Chagas
Victor Chagas na apresentação do Dossiê LGBT+ 2018 // Foto: arquivo pessoal

A elaboração do dossiê deu a Chagas consciência do déficit existente no amparo legal a LGBTs no país. Um exemplo disso é a lei 7.716/1989, que criminaliza o racismo, mas desde 2019, por decisão do STF, enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo até a existência de uma lei específica. “A equiparação exige que a autoridade policial tenha conhecimento sobre isso, mas não acontece em todos os casos. Muitas vezes, a pessoa sai da delegacia sem registrar uma queixa enquadrada como LGBTfobia”, esclarece. 

Para entender quantos boletins de ocorrência das delegacias do estado do Rio de Janeiro se enquadravam no crime de LGBTfobia em 2017, Chagas desenvolveu um método e escolheu palavras-chave com ofensas comuns a esta população para encontrar todo o material. A partir dos boletins encontrados, o material foi analisado por policiais do instituto para compreender o que se encaixava como LGBTfobia ou não. Naquele ano, 431 vítimas de violência motivada por LGBTfobia registraram boletim de ocorrência nas delegacias do estado. Essa ainda é a única publicação fluminense com dados oficiais de crimes sofridos por essa população.

Na Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Mulher do Município do Rio de Janeiro, Ana Muza é uma das mulheres LGBTs que compõe a equipe. Na função de assistente de coordenação de ações territoriais, Muza é conhecida como uma líder na comunidade do Pavão-Pavãozinho-Cantagalo, lugar onde morou grande parte da vida. Lá, ela criou o jornal PPG informativo, primeiro jornal comunitário da região. Sua história reúne um apanhado de vivências que contribuem para as ações e políticas adotadas na secretaria. Muza é uma mulher preta, periférica, lésbica, mãe solteira e candomblecista. 

Seu papel consiste em estar na rua articulando, apresentando a secretaria para outros equipamentos públicos e amparando as mulheres. Muza conta que suas experiências são fundamentais para o que vem a ser construído posteriormente na instituição. “A minha parcela é pegar tudo o que eu já vivi, somar com essas mulheres e ser ouvida, que é o mais importante. Nada é descartado, tudo é uma soma”, afirma. Muza não é a única na Secretaria da Mulher a fazer parte do grupo LGBTQIA+. Além de mulheres bissexuais, a secretaria conta com duas mulheres trans na equipe e promove a capacitação de outras pela cidade.

Audiência Pública para tratar da revisão do Plano Diretor do Rio de Janeiro. Ana Muza é a terceira da esquerda para a direita // Foto: arquivo pessoal

No início do ano, foi criado pela instituição o projeto Mulheres Trans de Negócio, que buscou fortalecer mulheres trans e travestis da cidade do Rio de Janeiro. O programa realizou uma capacitação virtual de 16 mulheres, a partir da realização de oficinas sobre educação financeira, identidade visual, uso das redes sociais, entre outros. O objetivo era capacitar mulheres que tinham o próprio negócio. “Somos um espelho para o mundo enxergar que dá pra começar por uma secretaria, um órgão público, porque as histórias estão ali. Dá pra se fazer de dentro pra fora”, diz.

O estado de Sergipe também tem mudado o panorama com relação aos serviços prestados para a população LGBTQIA+. Uma das profissionais responsáveis pela mudança é Adriana Lohanna, professora e assistente social, ela é mestra em Educação e referência técnica em Políticas Públicas para População LGBTQIA+ da Secretaria de Estado da Inclusão e Assistência Social do Estado de Sergipe – SEIAS/SE. Lohanna também é a primeira mulher transexual a ocupar um cargo de gestão no Governo do Estado de Sergipe.

O trabalho desempenhado hoje também perpassa por situações vividas no passado. Em 2009, enquanto o cursava a graduação de Serviço Social, Lohanna foi impedida de usar o banheiro feminino da instituição. O caso ganhou repercussão nacional e fez com que ela unisse forças para se tornar vanguardista em outros espaços. Lohanna também se tornou a primeira assistente social trans do estado e a primeira mulher trans a concluir um mestrado em Sergipe.

“Não é fácil estar em um espaço onde nossos corpos não são entendidos. Se a gente não consegue criar essa personagem militante para viver na esfera da luta, a gente enlouquece cedo”

Adriana Lohana

Hoje ela é referência no estado para a população LGBTQIA+, trabalhando no atendimento e acolhimento do grupo, e acredita que a mudança de pensamento da sociedade reside, principalmente, no investimento em educação e nas leis de criminalização. “Infelizmente na nossa sociedade a educação também acontece a partir da punição. É importante atentar para a tipificação dos crimes, a grande maioria deles são colocados como injúria racial e não LGBTfobia. Isso é uma política pública primordial”, defende. 

Todos os entrevistados para esta matéria acreditam que o serviço público ainda não está pronto para receber em seus quadros pessoas LGBTQIA+, mas a participação deles – e de muitas outras pessoas pertencentes ao grupo – demonstra a importância de se ocupar esses espaços e traz a certeza para a população de que as políticas públicas vão ser pensadas e elaboradas por quem vive isso diariamente.

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