Especialistas apontam avanços em gestão de desempenho, carreiras e combate a supersalários, mas pedem ajustes para garantir viabilidade e equilíbrio federativo
Por Eugênia Lopes — Especial para a República.org
A nova proposta de reforma administrativa, apresentada pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) no início de outubro, recolocou no centro do debate público o tema da modernização do Estado brasileiro. Dividido em uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), um projeto de lei complementar e um projeto de lei ordinário, o pacote reúne 70 medidas que tratam de gestão de pessoas, carreiras, cargos comissionados, planejamento e remuneração no serviço público, entre outras.
O conjunto de propostas busca reequilibrar incentivos e tornar o Estado mais eficiente, mas enfrenta desafios de tramitação e resistência política. Na avaliação de especialistas em administração pública, a proposta acerta ao apostar na gestão por resultados e no combate aos supersalários, embora precise de ajustes para se adaptar às realidades de estados e municípios.
“A reforma traz muitos pontos positivos e, obviamente, pelo tamanho do texto, outros que precisam ser aprimorados”, sintetiza Renata Vilhena, professora da Fundação Dom Cabral e presidente do Conselho da República.org. Para ela, a principal inovação na reforma apresentada ao Congresso está na criação de uma Lei de Responsabilidade por Resultados, que exige planejamento estratégico e acordos de desempenho em todas as esferas da federação.
A reforma traz muitos pontos positivos e, obviamente, pelo tamanho do texto, outros que precisam ser aprimorados.
Renata Vilhena, presidente do Conselho da República.org
“Ter uma lei que obrigue cada governo a elaborar um planejamento estratégico, com metas e indicadores claros, é fundamental”, afirma. “O texto prevê que esse planejamento se desdobre em acordos de resultados entre órgãos e equipes, chegando até o servidor individualmente. Isso permite que o desempenho e o desenvolvimento de competências tenham peso real na progressão e na promoção das carreiras”, explica a professora.
Fernanda Melo e Ana Pessanha, especialistas da República.org, também compartilham da opinião de Renata Vilhena.“A grande virtude desta reforma é não transformar o servidor em vilão. Ela reconhece o papel do funcionalismo e busca aprimorar as condições de gestão e entrega”, resume Fernanda Melo, especialista em Advocacy. “As medidas de desempenho e de combate aos supersalários estão entre as mais bem construídas. São boas bases para um debate responsável sobre o futuro do Estado brasileiro”, observa Ana Pessanha, especialista em Conhecimento.

Proposta traz avanços rumo à profissionalização da gestão pública
Renata Vilhena avalia que a proposta representa “um passo decisivo para profissionalizar a gestão pública”, aproximando o desempenho individual das metas institucionais. “Hoje, o crescimento na carreira depende quase exclusivamente do tempo de serviço. A reforma propõe mudar essa lógica, premiando a entrega e o desenvolvimento”, diz.
Entre os pontos considerados mais promissores, ela destaca o planejamento da força de trabalho, que busca adequar a abertura de concursos públicos à real necessidade de pessoal em cada órgão. “Não dá mais para abrir concurso apenas porque ‘aposentaram tantos servidores’. É preciso analisar as necessidades e capacidades do órgão antes de contratar”, defende.
Renata também elogia a previsão de entradas laterais — concursos para cargos de nível mais avançado — e a valorização de competências transversais e gerenciais. “Isso aproxima o Brasil de práticas adotadas em países mais desenvolvidos e estimula carreiras mais dinâmicas”, afirma.
Texto limita supersalários, mas precisa de ajustes para ser efetivo
Outro ponto de convergência entre as especialistas é o avanço no enfrentamento dos supersalários, tema que há anos mobiliza a opinião pública. Para Fernanda Melo, as medidas propostas “vão na direção correta e representam um avanço importante”. “O texto define melhor o que são verbas indenizatórias, veda a extensão de gratificações a aposentados e pensionistas e restringe brechas que hoje permitem pagamentos acima do teto constitucional”, explica.
Ela acrescenta que o dispositivo que trata dos honorários advocatícios precisa ser ajustado “para evitar sobreposição com o bônus por desempenho”, mas considera que o conjunto é sólido. “É um avanço enorme no debate. Pela primeira vez, o tema é tratado de forma ampla, sem demonizar o servidor e com foco na transparência e na equidade”, avalia Fernanda.
Opinião semelhante é compartilhada por Ana Pessanha. Para ela, o texto “vai na direção certa”, ao criar definições mais claras e eliminar distorções históricas. “O projeto veda, por exemplo, a conversão de folgas em dinheiro, uma das principais brechas para ultrapassar o teto. É um avanço significativo”, diz.
Pela primeira vez, o tema é tratado de forma ampla, sem demonizar o servidor e com foco na transparência e na equidade.
Fernanda Melo, especialista em Advocacy da República.org
Apesar do consenso sobre a importância de valorizar o desempenho, o dispositivo que autoriza o pagamento de bônus variável fora do teto constitucional preocupa os especialistas.
“O bônus pode ser um instrumento poderoso se bem desenhado, mas incluir pagamentos fora do teto é uma brecha perigosa”, alerta Ana Pessanha. Segundo ela, a experiência internacional mostra que gratificações vinculadas a metas funcionam melhor quando há critérios objetivos e limites claros. “Sem controle rigoroso, o bônus tende a se transformar em mais um penduricalho. O Brasil ainda não tem maturidade institucional para aplicar esse modelo de forma generalizada.”
Renata Vilhena concorda. “Somos favoráveis ao reconhecimento do bom desempenho, mas preferimos mecanismos não pecuniários ou de longo prazo. É preciso evitar distorções que comprometam a credibilidade da política de pessoal”, argumenta a professora.
Especialistas elogiam critérios para progressão de carreiras e planejamento de concursos
A proposta traz vários pontos elogiados pelas especialistas. É o caso dos dispositivos que permitem entrada lateral em carreiras, de acordo com o nível de complexidade das funções, e estabelece critérios para garantir progressão ao longo de todo o ciclo profissional, evitando o achatamento das remunerações logo nos primeiros anos.
A reforma também prevê o planejamento da força de trabalho para que concursos públicos deixem de ser abertos apenas por reposição de aposentadorias e passem a seguir diagnósticos sobre necessidades reais. “Isso é essencial para modernizar o serviço público”, observa Renata.

Há ressalvas, no entanto, em relação à tabela salarial única, que unifica gradualmente as remunerações do funcionalismo. “A ideia é boa, mas depende de uma transição cuidadosa”, pondera Ana Pessanha. “Se for mal implementada, pode congelar ou até aumentar desigualdades em vez de corrigi-las. É uma operação complexa, que exige avaliação técnica.”
Reforma acerta na direção, mas regras detalhadas trazem risco de engessamento da gestão pública
A complexidade da implementação da reforma administrativa é um ponto recorrente nas análises. “O texto é muito abrangente e fixa percentuais e regras detalhadas que podem ser inviáveis para municípios de pequeno e médio porte”, analisa Fernanda Melo.
Para Renata, a reforma deveria se concentrar em princípios gerais, deixando as especificações para leis complementares. “Um país continental não pode ter um único modelo de gestão pública. As capacidades locais são muito diferentes. Precisamos de flexibilidade e cooperação entre os entes federados”, afirma.
Ana Pessanha faz coro. “A proposta é boa no diagnóstico e na direção, mas peca pelo tamanho. Reformas tão amplas enfrentam mais resistência e têm menos chance de implementação integral.”
De forma geral, as mudanças propostas pela reforma só terão efeito prático se estados e municípios receberem o suporte necessário para colocá-las em prática. A maioria das medidas depende de capacidade técnica e financeira para planejar, executar e monitorar políticas de gestão.
Apesar de necessária, reforma enfrenta resistências
A apresentação da proposta ocorre num momento politicamente delicado, a um ano das eleições gerais. “A chance de aprovação neste governo é pequena”, admite Renata Vilhena. “Mas o importante é aproveitar o período para amadurecer o debate e aprimorar o texto. A reforma é necessária e o diálogo precisa continuar.”
Fernanda Melo acrescenta que o tema ainda encontra forte resistência de setores do funcionalismo e de carreiras jurídicas e legislativas. “Há uma mobilização intensa no Congresso contra as medidas que tratam dos supersalários”, afirma. “Mesmo assim, o simples fato de o tema voltar à agenda já é um passo importante.”
As três especialistas destacam que a proposta traz avanços reais e recoloca o debate num patamar mais técnico e menos ideológico. “Reformas administrativas não se fazem apenas com textos legais, e sim com entendimento e vontade política. O Brasil precisa avançar, mas com diálogo, técnica e foco em resultados. Reformar tudo de uma vez é tão equivocado quanto não reformar nada”, conclui Renata Vilhena.
Confira os eixos da reforma
A República.org analisou seis eixos centrais da reforma administrativa apresentada no início de outubro pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) na Câmara dos Deputados. O estudo aborda supersalários, gestão de desempenho, carreiras, concursos públicos, cargos comissionados e planejamento estratégico, acordos de resultados e bônus de desempenho.
Em todos os temas, a análise reconhece avanços relevantes, mas também propõe recomendações para o aperfeiçoamento das medidas previstas na Proposta de Emenda à Constituição (PEC), no Projeto de Lei Complementar (PLP) e no Projeto de Lei (PL) que compõem o pacote da reforma.
1. Supersalários
Pontos positivos:
— Estabelece regras claras para verbas indenizatórias e veda pagamentos rotineiros ou a inativos.
— Fortalece a transparência, com divulgação detalhada e padronizada das remunerações.
— Reduz desigualdades, ao limitar férias, adicionais por tempo de serviço e benefícios que só existem para carreiras específicas.
Pontos a aperfeiçoar:
— Evitar sobreposição de bônus e honorários.
— Incluir mecanismos de responsabilização para agentes e órgãos.
— Rever a composição do Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal (COPAR) para assegurar independência e alinhamento com boas práticas internacionais.
2. Gestão de desempenho
Pontos positivos:
— Integração com resultados institucionais: vincula metas individuais às metas das unidades e aos instrumentos de gestão, fortalecendo a cultura de resultados.
— Critérios objetivos de progressão e promoção: o desempenho passa a integrar a base de evolução na carreira.
— Foco no desenvolvimento contínuo: a avaliação deve identificar lacunas de competências e orientar ações de capacitação e aperfeiçoamento.
— Transparência e justiça: assegura ampla defesa, possibilidade de recurso e consideração de fatores pessoais e institucionais que afetam o desempenho.
Pontos a aperfeiçoar:
— Equilíbrio entre metas e competências: estabelecer diretriz clara que atribua maior peso ao atingimento de metas do que às competências, reduzindo a subjetividade da análise.
— Definição de competências: detalhar competências técnicas e transversais, diferenciando as aplicáveis a todos os servidores das específicas para lideranças.
— Feedback contínuo: incluir feedbacks regulares durante todo o ciclo avaliativo, assim como o feedback após a conclusão da avaliação.
— Modelo avaliativo participativo: incorporar autoavaliação e/ou avaliação por pares.
— Redução de vieses: prever diretrizes e treinamentos para mitigar vieses de gênero e raça, com monitoramento sistemático dos resultados.
— Padronização e unificação: criar um sistema de avaliação centralizado e único por ente federativo, evitando sobreposição de regras e fragmentação dos processos.
3. Carreiras
Pontos positivos:
— Gestão moderna: veda promoções apenas por tempo de serviço e estimula avaliação de desempenho e mobilidade entre órgãos.
— Carreiras mais justas: organiza cargos por atribuições e complexidade, reduzindo disparidades entre órgãos.
— Racionalização: prevê tabelas salariais únicas por ente federativo e mínimo de 20 níveis por carreira, com pelo menos um ano para progressão.
— Transparência: exige divulgação pública e em dados abertos das estruturas de carreira e remunerações.
— Atração de talentos: permite ingresso em níveis mais altos da carreira para profissionais qualificados, dentro do limite de 5%.
Pontos a aperfeiçoar:
— Amplitude salarial: necessidade de reavaliar limite de 50% entre início e topo da carreira — proposta carece de evidências que permitam avaliar seus efeitos.
— Clareza normativa: ajustes em dispositivos sobre movimentação de servidores e critérios de desenvolvimento.
— Viabilidade técnica: implementação demanda apoio a estados e municípios, capacitação e recursos para sistemas e gestão.
4. Concursos públicos e estágio probatório
Pontos positivos:
— Planejamento prévio: concurso precedido de dimensionamento do quadro e alinhado ao planejamento estratégico do órgão.
— Foco em capacidade estatal: objetivos de seleção por competências e geração de valor público; integração do concurso à gestão de pessoas.
— Racionalização do processo: institui necessidade de estudo técnico preliminar (evolução do quadro, projeções, alternativas ao concurso), periodicidade de concursos e governança com órgão central.
— Transparência: portais com informações de concursos, cadastros de reserva e nomeações.
Pontos a aperfeiçoar:
— Conceitos e etapas: explicitar planejamento da força de trabalho e tornar obrigatório o dimensionamento no estudo técnico.
— Estágio probatório:
a) substituir assiduidade, pontualidade e disciplina por competências transversais e metas individuais alinhadas ao planejamento do órgão.
b) realizar avaliações semestrais, com acompanhamento contínuo do desempenho.
c) manter programas obrigatórios de capacitação, sem exigência exclusiva de escolas de governo.
d) definir papel ativo das lideranças no acompanhamento e planos de melhoria de desempenho.
— Viés e equidade: incluir treinamento para avaliadores e monitoramento por gênero e raça dos resultados.
— Formação inicial: retirar a obrigatoriedade de oferta apenas por escolas de governo; evitar repetição de conteúdos já avaliados no concurso.
— Concurso: incluir alocação funcional estratégica dos ingressantes; no Concurso Nacional Unificado, exigir planejamento de força de trabalho para adesão e permitir adesão de outros entes só para cargos equivalentes/similares; criar portal único por ente com inscrições e resultados.
5. Cargos comissionados
Pontos de convergência:
— Vínculo com efetivos: mínimo de 50% dos cargos ocupados por servidores efetivos.
— Profissionalização: coloca preferência por processos seletivos como forma de preenchimento dos cargos.
— Transparência ativa: publicação contínua, em portal de transparência, de lista de cargos/ocupantes, remuneração, critérios de seleção, currículos, além de editais, resultados e justificativas.
Pontos a aperfeiçoar:
— Limite global: retirar o teto de 5% de comissionados por entee substituir por limite por unidade (percentual maior e mais aderente à realidade do país).
— Classificação em 3 categorias: retirar a divisão (estratégicos/táticos/operacionais) e os percentuais associados (5% para estratégicos; mínimo de 60% de efetivos nos estratégicos).
— Seleção: fixar percentual mínimo de cargos preenchidos por processo seletivo em cada nível hierárquico.
— Avaliação de desempenho: retirar avaliação diferenciada para “estratégicos”.
— Diversidade: explicitar cotas proporcionais para mulheres e pessoas negras, aplicadas em cada nível hierárquico.
— Dados e padrão nacional: padronizar informações entre portais ou criar sistema eletrônico nacional (com prazos de adequação escalonados como na LC 131/2009).
6. Planejamento estratégico, acordos de resultados e bônus de desempenho
Pontos positivos:
— Planejamento obrigatório: todos os entes devem elaborar planejamento estratégico de 4 anos, com prioridades, metas e indicadores, servindo de base para o PPA, LDO e LOA.
— Acordos de resultados: firmados entre dirigentes e autoridades superiores, com metas, responsabilidades, monitoramento e avaliação de cada órgão, alinhado ao planejamento estratégico.
— Avaliação cidadã: inclui pesquisas de satisfação e participação social digital. Relatórios e transparência: exige relatórios semestrais e trimestrais e publicação no portal da transparência e envio ao Legislativo.
— Integração planejamento–orçamento: garante maior coerência e racionalidade na gestão pública.
— Foco em resultados: institucionaliza a cultura de avaliação e monitoramento em todos os órgãos públicos.
Pontos a aperfeiçoar:
— Bônus de desempenho: retirar a previsão de pagamentos variáveis, mesmo condicionados a acordos e limites fiscais — falta evidência de efetividade para toda a administração pública, há risco fiscal e de aumento de supersalários e distorções remuneratórias.
— Foco alternativo: priorizar incentivos não pecuniários, progressão e promoção vinculadas ao desempenho.