Quatro fatores determinantes para o sucesso na implementação de Inteligência Artificial no combate à corrupção

Publicado em: 28 de novembro de 2022

Fator 2: Quantidade de stakeholders e níveis de governo.

Este é o quarto artigo da série “Corrupção: como avançar nessa agenda?”, que vem abordando como o Brasil tem progredido no combate à corrupção a partir do uso de inteligência artificial (IA). As análises são frutos das pesquisas realizadas recentemente pela autora, ao longo do mestrado em políticas públicas na London School of Economics and Political Science (LSE). A partir de estudos qualitativos, buscou-se ampliar a compreensão acerca do uso de IA no combate à corrupção, bem como reconhecer os esforços protagonizados por servidores públicos brasileiros na geração de significativo impacto e no avanço dessa agenda.

Leia o primeiro, segundo e terceiro artigo da série.

Neste artigo, a autora examina o promissor uso de inteligência artificial a partir da bem-sucedida implementação do robô Alice (Analisador de Licitações, Contratos e Editais) pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Quatro fatores merecem destaque e, nos próximos parágrafos, será analisada o impacto da quantidade de stakeholders e níveis de governo envolvidos na implementação de tecnologia como IA.

Índice
Introdução
Quantidade de stakeholders e níveis de governo
O caso do robô Alice

Introdução

Na atual conjuntura de crescimento acelerado na geração de dados, as condições mostram-se propícias para o investimento em ferramentas tecnológicas a exemplo da inteligência artificial. Tecnologias como essa viabilizam análises de grandes volumes de dados, geração de informações oportunas, promoção de mais transparência, identificação de irregularidades, prevenção da má alocação de recursos públicos e maior participação e colaboração social no combate à corrupção (Schatsky et al, 2014; Davies et al., 2019). 

Nesse contexto, vem ganhando destaque nos debates acadêmicos a iniciativa inovadora da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU) de utilizar o sistema Alice (Analisador de Licitações, Contratos e Editais). Trata-se de uma inteligência artificial que vem auxiliando os controladores e auditores no acompanhamento de licitações, que é a etapa do processo de contratação pública durante a qual ocorrem os maiores riscos de fraude e desfalque.

Portanto, é altamente relevante investigar os fatores que vêm contribuindo para o sucesso na implementação do sistema Alice na identificação de irregularidades, possibilitando ao Brasil avançar no uso de IA no combate à corrupção na área de compras públicas. 

Quantidade de stakeholders e níveis de governo

Além da interoperabilidade dos dados, analisada no último artigo desta série, segundo a literatura, outra pré-condição para que a implementação de uma política seja bem-sucedida diz respeito à importância de articular os recursos essenciais ao longo de cada etapa de implementação, promovendo a coordenação adequada dos stakeholders e dos insumos necessários (Hogwood & Gunn, 1997). Em sintonia com essa ideia, Pressman e Wildavsky apresentam um estudo seminal, a partir do qual cunharam o termo clearing points.

Esses pontos constituem as etapas da implementação de uma política, durante as quais os atores de várias organizações, provenientes de diferentes níveis de governo, se interconectam e dão seu parecer sobre a política em questão. Nesse sentido, a literatura reforça a complexidade de se coordenar os mais diversos recursos e atividades durante o processo de implementação quando há vários stakeholders envolvidos (Wegrich, 2015).

Na mesma linha, o uso de inteligência artificial no setor público implica em um conjunto de ações que envolvem diferentes interações entre stakeholders de organizações dentro e fora do governo. Além disso, dependendo da abordagem adotada, a implantação de políticas anticorrupção baseadas em IA pode contar com a participação de diferentes grupos de usuários, levando a mais ou menos clearing points.

Assim, é esperado que, quanto menor for o número de stakeholders e de níveis de governos envolvidos em uma política anticorrupção, menos complexa será a coordenação entre as partes interessadas e mais rápido será o alcance de resultados positivos a partir da implementação de inteligência artificial.

O caso do robô Alice

No contexto de implementação do sistema Alice, cabe frisar que o TCU vem realizando um ótimo trabalho na coordenação dos recursos necessários para implementar uma tecnologia baseada em inteligência artificial. Um dos motivos que propiciou tal coordenação é o fato de o projeto Alice se concentrar na fase de licitação dos processos de contratação pública e se restringir ao nível federal. Dessa forma, o projeto apresentou menos clearing points se comparado a uma implementação que abrangesse todas as etapas do processo de compras nas diferentes esferas de governo.

Além disso, o departamento responsável pela implementação do Alice no TCU, a Secretaria de Orientação, Métodos, Informação e Inteligência para Controle Externo e Combate à Corrupção (Soma), optou por adotar uma abordagem endógena de implementação. Assim, inicialmente foi executado um protótipo em uma das secretarias do Tribunal e, à medida que foram sendo obtidos resultados positivos, esta ferramenta foi ampliada e implementada nas demais áreas do TCU. Dessa maneira, somente quando a Soma se sentiu preparada para expandir a implantação dessa tecnologia, o projeto passou a ser difundido internamente para outras secretarias e externamente para tribunais de contas estaduais e municipais.

A abordagem endógena, então, foi determinante para que a implantação e expansão do Alice não elevasse a quantidade de clearing points, o que consequentemente facilitou a articulação dos atores e dos recursos envolvidos, bem como a sua posterior ampliação.

Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de a lógica de funcionamento dessa tecnologia (coleta de dados, análise e envio dos resultados por e-mail) poder ser replicada nas Secretarias do TCU, considerando as peculiaridades de cada área. Além disso, assim que o Alice revelou seu grande potencial, a alta gestão do TCU assinou uma portaria validando a mudanças no fluxo de trabalho dos auditores, o que ajudou a implantar uma nova forma de trabalho estabelecida a partir da adoção da tecnologia entre as demais secretarias.

Em segundo lugar, a expansão da implementação do Alice externamente vem funcionando, pois o Tribunal de Contas da União vem estabelecendo uma cooperação técnica com os tribunais de contas estaduais e municipais. Na prática, isso significa que a Soma possibilita a utilização da ferramenta por outros órgãos, a partir da criação de secções distintas dentro do próprio Alice para que cada um dos tribunais locais interessados ​​em empregar essa ferramenta possa alimentá-la com seus dados de licitação e receber e-mails diários com as análises realizadas pela IA. Além disso, para minimizar a complexidade dessa ação conjunta, o TCU centraliza o uso dessa tecnologia, replicando o framework[1] já adotado internamente e realizando alguns ajustes quando necessário.

No próximo artigo desta série, será analisado outro fator que também tem assumido um papel determinante para a implementação bem-sucedida do Sistema Alice na luta contra a corrupção: a promoção da transparência de maneira mais abrangente.


Referências
[1] Estrutura digital formada por códigos genéricos que oferece certos artifícios e elementos básicos para a solução de problemas ou a criação de algum aplicativo ou software.

Bibliografia
DAVIES, T.; WALKER, S. B.; RUBINSTEIN, M.; PERINI, F. The State of Open Data: Histories and Horizons. IDRC – International Development Research Centre, 2019. Disponível em: <https://www.idrc.ca/en/book/state-open-data-histories-and-horizons>.
HOGWOOD, B.; GUNN, L. Why ‘Perfect Implementation’ is Unattainable. In M. J. Hill (Ed.), The policy process: A reader. Prentice Hall/Harvester Wheatsheaf, v. 2, p. 217-225, 1997.
SCHATSKY, D.; MURASKIN, C.; GURUMURTHY, R. Demystifying artificial intelligence. Deloitte Insights, 2014. Disponível em: <https://www2.deloitte.com/us/en/insights/focus/cognitive-technologies/what-is-cognitive-technology.html>.
WEGRICH, K. . Jeffrey L. Pressman and Aaron B. Wildavsky, Implementation. The Oxford Handbook of Classics in Public Policy and Administration. Oxford,  mar. 2015.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Camila Penido Gomes: Graduada em administração pública pela Fundação João Pinheiro (FJP) e mestre em políticas públicas e administração pela London School of Economics and Political Science (LSE). Há 10 anos vem liderando projetos relacionados à transformação digital no serviço público brasileiro e atualmente atua como consultora na Divisão de Integridade do Setor Público da OCDE.

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