Abin esconde o passado e lança dúvidas sobre seu futuro

Publicado em: 14 de junho de 2023

Neste terceiro artigo da série do República em Notas sobre a atividade de inteligência no Brasil, vamos abordar como a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) vende, ao público interno e externo, uma imagem distorcida da história da instituição.

Em maio deste ano, a Abin inaugurou um “museu virtual” sob a declarada inspiração no deus romano Janus, descrito como aquele que vê o futuro sem esquecer o passado. O tour pelo museu revela, contudo, que o objetivo é mascarar um histórico de sabotagem à construção do Estado Democrático de Direito no país. O visitante virtual é apresentado à história do serviço secreto brasileiro desde a criação do Conselho de Defesa Nacional, em 1927, até os tempos atuais. No relato da criação, em 1956, do Sfici (Serviço Federal de Informações e Contrainformação), primeiro órgão de inteligência autônomo em nível federal, conta-se que um dos primeiros feitos da instituição foi ter descoberto um espião alemão que atuava em solo nacional. Contudo, não há menção ao fato de que a fundação do Sfici se deu por violenta pressão do governo dos Estados Unidos, a quem interessava que o governo do Brasil monitorasse movimentos locais de caráter comunista e socialista. Assim, o alvo primordial do Sfici não era vigiar espiões estrangeiros, mas, sim, cidadãos brasileiros.

O museu virtual da Abin deixa nítido um grande esforço para ocultar as digitais do serviço secreto no golpe civil-militar de 1964 e na ditadura (1964-1985). Isso porque não somente omite a participação do Sfici na derrubada ilegal do governo constitucional do presidente João Goulart como também ameniza a ruptura democrática, referindo-se a ela com a anódina expressão “intervenção militar”.

No mundo dos fatos, o golpe de 1964 inaugurou uma ditadura no Brasil, que, com a participação central do serviço secreto, praticou, de forma sistemática, graves violações dos direitos humanos, como perseguição, sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de corpos de adversários políticos. Isso só foi possível com o agigantamento do serviço secreto, rebatizado, logo após o golpe, com a sigla SNI (Serviço Nacional de Informações), coração daquele projeto autoritário de poder que duraria duas décadas.

No mundo paralelo do museu da Abin, contudo, essa parte da história do serviço secreto é chamada de “fase da bipolaridade”, em que “a atividade [de inteligência] esteve atrelada ao contexto da Guerra Fria, de características notoriamente ideológicas”. Nessa versão fantasiosa, não foram aqueles que deram o golpe que decidiram, por vontade própria, vitaminar o serviço secreto a fim de torná-lo o corpo central de um projeto autoritário. Pela narrativa descrita no museu, o processo teria acontecido como uma espécie de evolução natural e, mais importante, sem a execução de graves violações dos direitos humanos: “A intervenção militar (…) levou à necessidade de uma nova concepção para a estrutura encarregada das atividades de informações e contrainformações”, diz o texto da apresentação.

Ao varrer para debaixo do tapete o papel central do serviço secreto num dos períodos mais obscuros da história do Brasil, o museu virtual da Abin presta um enorme desserviço ao (claudicante) processo de construção do Estado Democrático de Direito no país. Não é um bom sinal que, quatro meses após a tentativa de golpe de Estado do 8 de Janeiro, a Abin inaugure um museu virtual que ameniza rupturas na democracia e graves violações dos direitos humanos.

A nota é de responsabilidade do autor e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ele está vinculado.

Lucas Figueiredo: Jornalista e escritor. Atuou como pesquisador da Comissão Nacional da Verdade.

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