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Ignorar políticas públicas é reproduzir desigualdades
Espaços de formação e sensibilização
No quarto texto da série sobre burocratas de nível de rua, vamos discutir um tema bastante sensível e invisível do trabalho da linha de frente: as desigualdades. Este é um assunto bastante novo nos estudos de burocracia de nível de rua, mas que faz muito sentido se pensarmos na realidade brasileira.
Com algumas exceções, boa parte das políticas públicas são desenhadas para enfrentar e reverter desigualdades sociais (de gênero, raça, região, renda etc). No entanto, o que os estudos mostram é que, mesmo políticas desenhadas para enfrentar desigualdades, podem acabar reproduzindo ou criando novas formas de desigualdades. Por exemplo: as políticas de educação no Brasil continuam tendo resultados muito desiguais comparando crianças brancas e negras. Por que isso acontece, se tivemos nas últimas décadas um investimento grande em pensar políticas que considerassem a questão racial? A resposta para esta pergunta é muito complexa e multifacetada. Mas tem um foco que gostaria de tratar aqui: pode ser que essas desigualdades sejam reforçadas na implementação das políticas, mesmo quando seu desenho prevê o contrário. E isso pode acontecer justamente na interação entre os burocratas de nível de rua e os cidadãos.
Identificar quando, como e por que isso acontece não é uma forma de culpabilizar os burocratas de nível de rua pelas desigualdades – que são estruturais e históricas. Mas é uma forma de identificar quais são os mecanismos que podem surgir nestes encontros cotidianos e que merecem maior atenção por parte dos gestores públicos para enfrentá-los ou evitá-los.
Em um livro publicado em 2019 que compilou algumas dezenas de casos diferentes, Roberto Pires sistematiza estes mecanismos (o livro se chama “Implementando Desigualdades”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea). Observando os casos analisados ao longo do livro, Pires identifica três mecanismos que podem ajudar a explicar como desigualdades podem ser (re)produzidas durante a interação entre burocratas de nível de rua e os cidadãos.
Ignorar políticas públicas é reproduzir desigualdades
O primeiro mecanismo é o das resistências e divergências entre a formulação e as ações locais. Ele acontece quando os burocratas de nível de rua não concordam com o conteúdo ou desenho da política e decidem simplesmente não implementá-la. Embora possa parecer uma ingerência absurda, é algo bastante comum, especialmente em políticas novas que não foram desenhadas com a participação dos burocratas de nível de rua. Ao não concordarem ou acharem inviável a nova proposta, burocratas de nível de rua cruzam os braços ou focam em outras atividades. Isso pode gerar desigualdades, na medida em que parte destas políticas pode ter sido justamente desenhada para atender um público que sofre algum tipo de exclusão – e não implementar a política significa aumentar esta exclusão. No livro, um caso emblemático relatado é da resistência de profissionais de saúde à implementação da Política Nacional em Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), relatado por Jaciane Milanezi e Graziella Silva. Ao acreditarem que o princípio da igualdade seria desrespeitado com uma política que dava preferências à população negra, os profissionais de saúde reagiam por meio do silêncio, não dando atenção nem implementando esta política.
O segundo mecanismo que pode (re)produzir desigualdades é o da classificação e julgamento operados pelos burocratas de nível de rua. No segundo texto desta série apontamos como categorizar usuários é uma das atribuições centrais dos burocratas de nível de rua. Eles precisam decidir quais usuários correspondem a quais categorias propostas na política e, assim, definem quem recebe o quê. Este processo de categorização, no entanto, não é realizado de forma automática, justamente porque as categorias oficiais nunca são suficientes para enquadrar todas as situações reais (se fossem, as máquinas poderiam substituir os profissionais). É só pensar nas complexidades envolvidas em categorias como “pobres”, “vulneráveis”, ou mesmo nas idiossincrasias de categorias de gênero e raça que isso fica claro. Portanto, para os burocratas de nível de rua categorizarem os casos que encontram, eles precisam interpretar a situação, preenchê-la com informações que não estão muitas vezes claras, nem são objetivas. Eles usam, assim, diferentes formas de julgamento. O que os estudos nos mostram é que os processos de categorização e julgamento podem ser permeados de estereótipos, julgamentos morais e preconceitos que podem excluir determinados grupos do serviço público. No livro, eu relato o caso de profissionais de saúde que, para priorizar atendimento, classificam usuários entre “aderentes” e “resistentes”. Aderentes são priorizados, resistentes ficam em segundo lugar. A questão é que, vinculado à ideia de resistente, estão julgamentos morais sobre merecimento, pacientes desobedientes, hostis e de certos perfis sociais que já são mais vulneráveis. Assim, ao colarem estes julgamentos em uma classificação que determina prioridade de acesso, profissionais de saúde reproduzem desigualdades, fazendo com que os mais vulneráveis sejam os menos priorizados.
Por fim, o último mecanismo que pode (re)produzir desigualdades é o da regulação moral para manutenção do serviço, que acontece quando os burocratas de nível de rua precisam decidir quem será mantido ou excluído de uma determinada política pública. Por exemplo, qual família se manterá no Bolsa Família, qual família continuará recebendo um determinado serviço etc. E, para esta determinação, os burocratas de nível de rua aplicam regulações morais, fazendo com que apenas aqueles cidadãos que se adequaram aos padrões estabelecidos pelos burocratas de nível de rua se mantenham no programa. Assim, além de incidirem sobre acesso ao serviço, os burocratas de nível de rua também interferem nos comportamentos e modos de vida dos cidadãos, definindo aqueles que são moralmente aptos para serem beneficiários do serviço. No livro, um dos casos relatados é o de Flávio Eiró, que discute como as assistentes sociais do Bolsa Família determinam formas que avaliam como adequadas para que as famílias continuem a receber o benefício. Assim, aquelas famílias que “gastam mal o dinheiro”, que “não priorizam certas escolhas” são excluídas do programa ao não aprenderem a se comportar como as assistentes sociais definiram que seria adequado.
Os exemplos aqui debatidos e os mecanismos evidenciados demonstram como várias desigualdades podem ser (re)produzidas nos encontros cotidianos entre burocratas de nível de rua e cidadãos para entrega de serviços que, supostamente, deveriam diminuir desigualdades. Como mencionado antes, a questão aqui não é culpar os burocratas de nível de rua, mas sim identificar o que acontece para discutir como podemos reverter ou minimizar estes problemas.
Espaços de formação e sensibilização
Uma das questões que fica evidente é que estes problemas acontecem por uma falta de gestão e de direcionamento, que acaba delegando aos burocratas de nível de rua decisões que não deveriam caber a eles. Ou seja, a falta de gestão aumenta a discricionariedade em temas para os quais não deveria haver discricionariedade, ou ela deveria ser mais direcionada.
Por exemplo, não deveria caber aos burocratas de nível de rua decidir que políticas implementar. Nem deveria caber a eles definir, sem critérios estabelecidos, quais são os casos prioritários. Burocratas de nível de rua deveriam ter diretrizes claras de classificação de prioridade e de avaliação da manutenção ou exclusão de programas. Ao não fazer isso, a política pública delega aos burocratas de nível de rua questões que, se delegadas, podem (re)produzir desigualdades.
Uma segunda conclusão destes casos é sobre a importância de se investir em mecanismos de gestão do nível da rua. Boa parte destes casos poderiam ser minimizados se os gerentes de nível de rua estivessem mais próximos dos burocratas de nível de rua, e tivessem instrumentos de gestão para incentivar, sensibilizar, formar e punir os burocratas de nível de rua quando necessário.
Isso nos leva à terceira conclusão: a importância de formar e sensibilizar os burocratas de nível de rua. Como discutimos no texto 3, os burocratas de nível de rua não nascem prontos para exercer sua função nem para ter o ethos público. Eles são cidadãos e podem carregar preconceitos e estereótipos. Cabe à gestão sensibilizar e formar, criando espaços de reflexão para minimizar o uso de julgamentos morais na implementação de políticas públicas. Há uma diferença importante na literatura entre os chamados estereótipos passivos e ativos. Todos nós carregamos estereótipos, que são internalizados na nossa trajetória e relações, e são passivos até que os ativemos em uma interação concreta. O Estado deve enfrentar os estereótipos, fazer campanhas, sensibilizar, dar cursos para que sejam revertidos. Mas isso é um processo longo e difícil. Assim, é central que o Estado atue também para garantir que os estereótipos passivos não sejam ativados na implementação das políticas públicas. Ou seja, que professores não atuem como preconceituosos, que policiais não usem seu racismo na hora de agir, que assistentes sociais não sejam preconceituosas contra pobres. Para isso, além de reflexão e sensibilização, também é importante investir em mecanismos de incentivo e punição.
Mais uma vez, o que estes mecanismos nos mostram é que, se queremos ter políticas públicas mais bem sucedidas – e neste caso que reduzam desigualdades –, é central apostar na gestão dos burocratas de nível de rua. Sem isso, o Estado pode acabar sendo só mais um espaço de reprodução das estruturas e dinâmicas sociais excludentes da nossa sociedade.
Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.
Gabriela Lotta
Professora de Administração Pública da FGV, professora visitante de Oxford, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole e do Brazil.Lab da Universidade de Princeton. Doutora em Ciência Política. Professora visitante de Oxford em 2021.