Índice
Questões Instigadoras
Experiências inovadoras em espaços prisionais
Um diferencial relevante
Dignidade humana palpável
Educação e trabalho na reintegração social
Gérmens de uma nova consciência

Flashback

Após 6 anos, revisitar a experiência vivida durante a Residência em Capital Humano me traz muitas emoções ambíguas, e, muitas delas, têm a ver com o próprio tema: “Como engajar inspetoras no trabalho de custódia e ressocialização das mulheres privadas de liberdade no Rio de Janeiro”. A residência, realizada na Cadeia Pública Joaquim Ferreira (JF), trouxe o contato com a beleza humana em instituições prisionais, com pessoas em situação de vulnerabilidade, e o sofrimento de todos os envolvidos. 

Ao falar em todos, ou melhor, todas, refiro-me tanto às privadas de liberdade quanto às profissionais envolvidas. Abordo esse tema no texto  Entre os muros da unidade prisional: choque fertilizador e acolhimento, mas trago para este espaço uma reflexão a partir de três tópicos: questões instigadoras; experiências inovadoras em espaços prisionais; e gérmens de uma nova consciência.

Questões Instigadoras

Penso, hoje, que minha primeira aproximação com a Residência se deu por meio das questões para a seleção. Ainda guardo seu impacto, pois me fizeram refletir, ou melhor, voltar minha atenção para as escolhas que se deram, quer consciente ou inconscientemente, e para  como a vida, tão imprevisível e desafiadora, foi bordando meu caminho. As perguntas foram: “por que você quer participar da Residência em Capital Humano”; depois, “quais são os principais desafios da gestão de pessoas no setor público no Brasil?”; e “por que você acredita que deve ser selecionado para esta Residência”? Tais questionamentos me guiaram em uma viagem que clareou muitas das minhas camadas internas ainda não percebidas. 

Aí, a meu ver, se inicia a importância da questão: ela pode abrir um espaço, como na floresta, quando a luz do sol se apresenta, e revela paisagens não vistas por você mesmo. Isso aconteceu comigo não só neste momento, mas durante todo o trabalho efetuado na residência. A resposta para a segunda questão, por exemplo, me trouxe muitas reverberações, ecos internos que ressoam quando olho todos os textos e experiências que me marcaram, assim como o contato que tive com pessoas que abordavam o tema e viviam com as privados de liberdade.

Vamos lá, aqui vai parte de minha reflexão: no Brasil, os principais desafios da gestão de pessoas no setor público são: diferenciar o que é do âmbito “público” e do “privado”; saber definir, esclarecer e aprofundar o significado de propósito, ou seja: o que e como quero fazer?; por que quero fazer? In nomine ou em nome do quê faço o que faço?; ter  visão de curto – médio – longo prazo; ter competência no agir; estar aberto  à escuta e ao diálogo; saber atrair e formar pessoas competentes, além de engajadas; e cultivar plasticidade para bem atender e encaminhar os emergentes.

Experiências inovadoras em espaços prisionais

As experiências inovadoras que relato aqui foram as que me chamaram atenção à época em que o trabalho foi realizado. Não tanto pela sua continuidade, mas pelo arrojo, engenhosidade e um pensar “fora da caixa”, uma cor clara e brilhante num recipiente escuro.

Esse sentido de propósito, que esboço acima, reconheci em algumas dessas experiências no mundo e também aqui no Brasil. Não vou relatar todas, mas selecionei três apenas por ousarem traçar novas perspectivas: um oásis no deserto, a meu ver.

Uma delas foi a da Holanda e Alemanha. O objetivo era introduzir os formuladores de políticas dos EUA nos sistemas europeus e estimular os esforços de reforma no país. Uma das principais pesquisas do projeto era verificar se, e em que medida, as abordagens usadas por certos sistemas europeus de correções eram transferíveis para os Estados Unidos. Notem o cuidado dos selecionadores: somente depois de um processo minucioso de avaliação, três estados – Colorado, Geórgia e Pensilvânia – foram selecionados para participar do projeto.

Os agentes penitenciários passam por treinamento extensivo mais parecido com o de assistentes sociais e especialistas de comportamento nos EUA.  Na Alemanha, a formação abrange dois anos com 12 meses de ensino teórico seguidos por 12 meses de treinamento prático. Os cursos incluem o direito penal e de autodefesa, bem como o direito constitucional, teoria, psicologia, educação social, estresse e gestão de conflitos, o que mostra a relevância do aspecto comunicacional na interação com os privados de liberdade. Na relação com os privados de liberdade, o pessoal alemão é treinado para confiar no uso de incentivos e recompensas, com ênfase no reforço positivo. Medidas disciplinares, como confinamento solitário, são usadas moderadamente.

 Os infratores na Alemanha e na Holanda também recebem o direito de recorrer de decisões administrativas negativas junto a órgãos de revisão independentes ou tribunais e podem receber indenizações se as decisões forem revertidas.

Finalmente, no nível físico, instalações prisionais alemãs e holandesas são projetadas com características favoráveis à reabilitação: temperatura moderada, muitas janelas, luz e corredores largos, por exemplo. 

Um diferencial relevante

Os sistemas de correção alemães e holandeses definem reabilitação e ressocialização como seus principais objetivos, essa abordagem é realizada em bases individuais, institucionais e físicas. Uma observação se faz necessária: as condições de confinamento, para o indivíduo, não devem ser punitivas, pois consideram que a punição é a separação da sociedade representada pela própria sentença de custódia.

Este, para mim, é um ponto de reflexão: o principal objetivo do encarceramento é ajudar os presos a conquistarem uma maior independência, uma vida mais produtiva na sociedade, quando livres. Para tanto, nesse espaço há um estímulo para a aquisição de habilidades fundamentais de que necessitarão em seu retorno à comunidade. Por exemplo, os privados de liberdade têm a permissão de se expressar individualmente, bem como adquirir um razoável controle sobre suas vidas diárias, como usar suas roupas e preparar suas refeições; para elevar sua autoestima, são exigidos trabalho e educação remunerados. Além disso, o respeito à privacidade de suas vidas é visto como um tema fundamental à dignidade humana.

É permitido às mães ficarem com seus filhos até a idade de três anos, em alojamento especial, onde recebem cuidados de saúde, além de aulas para pais. O objetivo desse programa é proporcionar a formação de laços maternos e infantis nesse importante período do desenvolvimento da criança.

Dignidade humana palpável

No artigo O que aprendemos com as prisões alemãs, do New York Times, 20151, sobre essa experiência, Nicholas Turner e Jeremy Travis relatam algo que consideramos muito relevante. Para eles há diferenças significativas entre Alemanha e Estados Unidos, principalmente no que se refere ao sistema de justiça criminal. A escravatura está na base da justiça americana, o ser duro com o crime era a base que a sustentava. No entanto, dizem que, para os dirigentes das instituições prisionais da Alemanha, a dignidade possui uma base palpável. Concordamos quando apontam que esse país se capacitou, por meio da dura lição do holocausto, para um compromisso impressionante com a dignidade humana. Seria possível aprender isso com os alemães?

Educação e trabalho na reintegração social

No Brasil, encontrei experiências significativas como a Penitenciária Industrial Jucemar Cesconeto, no relato de José Fucs, da Época, em 2014. Nela, por meio da educação, do trabalho e do tratamento humanizado, a perspectiva de reintegração social ocupava um papel de destaque.

Segundo as informações da fonte citada, 23% dos presos que já saíram da penitenciária voltaram ao crime, o que equivale a um terço da média nacional. Esse ambiente apresentava menos pressão e agressividade do que na maioria das prisões, não havendo notícia de motins ou rebeliões, além de poucos relatos de fugas.Pelo trabalho, os presos recebiam um salário mínimo e, ganhavam mais aqueles que tinham carteira assinada. Nas duas situações, os presos recebiam 75% do salário, de acordo com a legislação; 25% restantes eram endereçados ao Estado, o qual repassava o dinheiro à penitenciária. Assim, os privados de liberdade podiam ajudar suas famílias e reduzir a pena. A cada três dias trabalhados, ganhavam um dia de remição. Segundo a Montesinos, os presos já obtiveram redução de 225.604 dias nas penas, desde a criação da penitenciária – à época, após nove anos. Em contrapartida, o Estado teria uma economia de R$ 25,7 milhões.

O espaço prisional apresentava boas condições: celas com até quatro apenados, acomodados em dois beliches. Quase todas tinham TV, muitas de LCD, mais fáceis de vistoriar; as instalações eram limpas, e a comida, melhor que a média das prisões brasileiras. 

A Montesinos, um sistema de administração prisional, era responsável pela segurança, limpeza e manutenção, além da disciplina, alimentação, material de higiene pessoal, uniformes, roupas de cama e de banho dos apenados. Também fornecia remédios e cuidava do atendimento médico, dentário e psicológico. Ela utilizava os privados de liberdade na limpeza e conservação da prisão. A prefeitura também oferecia vagas para trabalhos em obras e serviços na cidade. Apoiadas pela associação empresarial de Joinville, 18 empresas montaram ilhas de trabalho na prisão, como inspeção de peças de borracha, polimento de torneiras e empacotamento de toalhas de banho.

Gérmens de uma nova consciência

Como disse anteriormente, coloquei neste texto o que mais me tocou na Residência.

Gill Attrill (2014), psicóloga do National Offender Management Service (NOMS)3, evidenciou, em uma de suas apresentações, a importância de uma cultura que privilegiasse a segurança ou o espaço seguro:  sem isso, as possibilidades de projetar a si mesmo num futuro melhor seriam escassas. Lembrando que NOMS é uma agência executiva do Ministério da Justiça do Reino Unido com o objetivo de proteger o público e reduzir a reincidência, aplicando punições e ordens dos tribunais e apoiando a reabilitação, ajudando os infratores a reformar as suas vidas.

Sou psicóloga e trabalhei por muitos anos com a formação de facilitadores de grupos fundamentados pela ideia de que há “uma causalidade guestáltica no sentido de que todas as tensões da estrutura que convergem em um certo ponto fazem aparecer um emergente”, segundo PICHON- RIVIÈRE (1978, p. 29)4. Quais tensões do conjunto, no caso grupo ou coletividade, provocam o aparecimento de determinados comportamentos diferentes dos demais? Explicando melhor: no indivíduo, quando há um órgão doente, tal doença pode se revelar no conjunto de interações entre outros órgãos e sistemas do corpo, também disfuncionais, que contribuem para provocar um estado de adoecimento. Portanto, o mal-estar geral revela que algo no corpo não está funcionando corretamente. Um órgão adoecido pode evidenciar uma indisposição nessa rede que compõe o corpo. Entre as pessoas, num grupo, ocorre algo semelhante, lembrando que, no grupo, há um processo de interação.  Digamos que esse órgão adoecido, que revela algo presente nesse corpo, fala em nome dos outros órgãos. Vamos denominá-lo de porta-voz. Como entender esse complexo funcionamento grupal? Nos grupos, também existe esse acontecimento: uma pessoa evidencia algum tipo de comportamento que traz um conteúdo que se passa com ele, mas que, simultaneamente, está presente nesse conjunto. Recebe, portanto, a interferência desse mundo que está fora dele. Há uma relação permanente entre mundo interno, ou seja, o que se passa dentro dele, e o externo, composto pelas demais pessoas, pelos diálogos que travam, por seus sentimentos, desejos, motivos conscientes (conhecidos) verbalizados ou não e inconscientes e, também, da sociedade. Essa pessoa que revela algo dele e do grupo é um porta-voz.

Porta-voz é o mensageiro do “não dito” pelos demais. Ele não é consciente dessa função, isto é, ele faz a revelação sem o saber. Por explicitar esses conteúdos  é que pode transformar-se em bode expiatório. Sendo assim, ele fica sendo acusado de promover ou de falar algo que é só dele e nada tem a ver com o conjunto de que faz parte. Torna-se, portanto, solitário, excluído. Por outro lado, quando os demais estão dispostos – de fato – a se transformar, juntamente com ele, o conteúdo é compartilhado, reconhecido, e cada um fica com a parte que lhe cabe. Ele, por trazer um novo tema ou problema a ser trabalhado, torna-se o líder de mudança nesse momento do grupo. Um exemplo disso é a Semana de Arte Moderna de 22: os artistas de vanguarda foram porta-vozes de sua época, ao aliarem-se a esta visão, mas sem sabê-lo. Houve um rechaço imediato do público, o que caracterizou a resistência ao novo referencial, que pressupunha mudanças de visão de homem, de mundo, de arte e de cotidiano. No entanto, isso foi aceito posteriormente, pois se tornou inevitável, visto haver uma mudança em um nível latente, germinando, ou seja: havia um movimento na direção do novo referencial, presente no coletivo, mas ainda não percebido. Eles foram emissários de um conteúdo não reconhecido pelos demais. Foram porta-vozes, bodes expiatórios e líderes de mudança.

As instituições prisionais, os apenados, seriam portadores inconscientes – isto é, de forma não perceptível para todos eles – de algo que também está presente no conjunto ou parte da sociedade? Que conteúdo seria esse? O que revelaria? O que aparece e o que se mostra? Olhamos os pássaros no céu. É o que aparece, mas eles, também, podem nos mostrar que o inverno está chegando, e por isso estão em movimento para outra direção, não apenas voando. Há uma transgressão das leis vigentes pelos apenados, e isso é o que aparece, mas o que mais necessita ser visto e equilibrado?  Como interagir com esses fatos de uma nova maneira?

Para NÃO concluir, deixo aqui algumas palavras de Rainer Maria Rilke (1997, p.68)5:

Como esquecer os mitos antigos que se encontram no começo de cada povo: os dos dragões que num momento supremo se transformam em princesas? Talvez todos os dragões de nossas vidas sejam princesas que aguardam apenas o momento de nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo horror, em última análise, não passe de um desamparo que implora o nosso auxílio.

Referências Bibliográficas

1TURNER, Nicholas; TRAVIS, Jeremy. What we learned from German prisons. NY Times. Aug, 07, 2015. https://www.nytimes.com/2015/08/07/opinion/what-we-learned-from-german-prisons.html
2FUCS, José. Penitenciária de Joinvile aponta a solução para o falido sistema carcerário. Época, 15|07|2014. Penitenciária Industrial Jucemar Cesconeto, 2014.
https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/07/uma-bpenitenciaria-de-joinvilleb-2
3ATTRILL, Gill. National Offender Management Service, England and Wales. Creating safe, decent and reabilitative environments: from local innovation to whole system improvement. https://assets.publishing.service.gov.uk/media/5a7dc70de5274a5eb14e71e1/how_noms_works_web_v6.pdf , 2014
4RIVIÈRE, Pichon. El processo grupal. Ediciones Nueva Visión: Buenos Aires, 1978.
5RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. Globo: São Paulo, 1997.

Ideli Domingues

Psicóloga, doutora em psicologia social (USP), especialista em grupos, sócia
fundadora do Instituto Pichon-Rivière de Psicologia Social de São Paulo, focado na formação de
facilitadores de grupos, com publicações na área de liderança, ex- professora de psicologia e
equipes de alta performance da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo –FGVSP, arteterapeuta,
contadora de histórias, terapeuta somática sistêmica, colaboradora do Conversas de Vida-
Centro de Promoção de Esperança e Prevenção ao Suicídio do Centro de Atenção Integrada à
Saúde Mental- CAISM Vila Mariana, da UNIFESP-SPDM.

Inscreva-se na nossa newsletter