Pessoas negras ganham salários menores e estão sub-representadas no serviço público

Publicado em: 24 de setembro de 2023

A representatividade racial diminui à medida que os cargos na hierarquia administrativa se tornam mais elevados, indicam dados analisados pela República.org

Por Eugênia Lopes — Especial para República.org

Maioria da população brasileira, as pessoas negras estão sub-representadas no serviço público e distantes de ocupar os cargos mais altos na hierarquia dos governos federal, estadual e municipal. Apesar de serem 55,70% da população brasileira (PNADc, 2022), pretos e pardos correspondem a pouco mais de um terço (35,09%) dos servidores públicos ativos do Executivo Federal (Siape, 2020). A baixa representatividade racial é ainda mais desigual quanto mais alto é o cargo na estrutura da administração pública.

Levantamento do República em Dados, com base em dados de 2020, mostra que apenas 35 (14,58%) dos 240 cargos de Direção e Assessoramento Superior de nível 6, o mais elevado na hierarquia do Executivo Federal, eram ocupados por pessoas negras. Já 195 (18,46%) dos 1.056 cargos de DAS 5 eram preenchidos por pessoas pretas e pardas, enquanto 595 (25,35%) pessoas negras detinham cargos de DAS 4 (do total de 2.347).

O cenário fica ainda mais crítico quando analisamos os cargos por gênero e raça: somente 1,25% dos DAS 6, em 2020, eram preenchidos por mulheres negras. Ou seja, o homem branco é o perfil dominante no serviço público federal e ocupa os cargos com maior remuneração. Por outro lado, as mulheres negras enfrentam condições opostas, elas se encontram em posições de menor remuneração e se concentrando principalmente na administração municipal, onde os salários são mais baixos.

Fontes: SIAPE (2020) elaborado por Atlas do Estado Brasileiro e PNADc (2022).

A representatividade da população negra é menos igualitária também em carreiras típicas de estado, como diplomatas, e em órgãos que cuidam das políticas econômicas e de ciência e tecnologia. Carreiras de gestão, como Analista de Planejamento e Orçamento, Auditor de Finanças e Controle, Especialista em Política Pública e Gestão Governamental ou Analista de Comércio Exterior são ocupadas por 73% de brancos, enquanto os negros são apenas 23,72% (Enap, 2018).

“Em termos de postos de comando, temos o reflexo ainda de uma grande luta, que se agrava quando somamos a condição racial e condição de gênero. Aí também as mulheres, e especialmente as mulheres negras, são as que ainda estão no final da pirâmide. E isso eu percebo muito aqui no governo; nós somos muito poucas”, constata a professora Katia Helena Serafina Cruz Schweickardt, que é secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) e, em 2020, ganhou o Prêmio Espírito Público, promovido pela República.org, por sua trajetória como gestora da Educação Municipal de Manaus.

A entrada por concurso é um funil: as pessoas pretas, pardas e indígenas já entram numa quantidade desigual e não chegam até o topo.

Para Katia, este cenário é uma herança da história da população negra no País. “Quando conseguimos chegar, o lugar que nos destinam ainda é o lugar que prioriza o debate racial. O lugar de políticas que não têm apenas o foco na igualdade racial, a gente ainda quase não tem acesso. Mesmo quando estamos executando políticas na ponta e estamos agindo, nós temos uma sobrecarga. Sobre nós paira uma cobrança diferenciada. Ainda é um longo caminho”, afirma.

Outro fato que comprova a desigualdade racial é a distância salarial entre homens brancos e mulheres negras no serviço público. A remuneração líquida média mensal dos homens brancos no Executivo Federal atinge R$ 8.774,20, contra R$ 5.815,50 das mulheres negras. Ou seja, uma mulher negra ganha um salário cerca de 33% menor que um homem branco.

“Isso é uma consequência dessa interseccionalidade de gênero e raça. Na comparação entre homens e mulheres, mulheres acabam perdendo; na comparação entre pessoas negras e brancas, as pessoas negras perdem. A pior comparação é essa: o salário de um homem branco com o salário de uma mulher negra”, pondera Vanessa Campagnac, doutora em Ciência Política e gerente de Dados e Comunicação da República.org.

Mesmo quando há o mesmo nível de escolaridade, há discrepâncias salariais. Enquanto a remuneração média líquida mensal dos servidores brancos com nível superior completo é de R$ 9.089,90, servidores negros com a mesma escolaridade ganham R$ 7.088,60 – ou seja, 22% a menos. No geral, em todos os níveis de escolaridade, os brancos têm maior acesso aos salários mais altos.

“Esses dados revelam o quanto a sociedade brasileira ainda vive sob a égide de uma estrutura muito baseada no racismo”, analisa Kátia Schweickardt. “A sociedade brasileira se edifica a partir dessa desigualdade e talvez, como em nenhum outro lugar do mundo, a gente vivencia ao longo de todos esses anos, os rescaldos, o resquício desse processo colonial e das teorias racialistas, que foram hegemônicas no século 19”, observa a secretária do MEC.

Em termos de postos de comando, temos o reflexo ainda de uma grande luta, que se agrava quando somamos a condição racial e condição de gênero. Aí também as mulheres, e especialmente as mulheres negras, são as que ainda estão no final da pirâmide.

Cotas

Implantada a partir de 2014 com a sanção da Lei 12.990, a política de cotas em concursos públicos da União destina 20% das vagas para pretos e pardos e contribuiu sensivelmente para o aumento de pessoas negras no serviço público. No ano 2000, para cada 100 novos servidores do Executivo Federal, 17 eram negros. Em 2020, essa relação pulou para 43 em 100 novos aprovados nos concursos.

Em 1999, 147.160 servidores do Executivo Federal eram negros; em 2020, esse número aumentou para 175.191. Em 2008, seis anos antes do início da vigência da Lei 12.990, 29% das pessoas que ingressaram no serviço público federal eram negras. Em 2014, esse percentual saltou para 42% e, em 2020, estava em 43%.

O diagnóstico sobre o êxito da lei de cotas nos concursos foi, no entanto, prejudicado porque houve uma forte redução na quantidade de concursos públicos nos últimos anos. Enquanto em 2014 foram autorizados 279 concursos para o preenchimento de 27.205 vagas, em 2020 foram apenas três concursos para 659 vagas. A avaliação é que essa redução deteve o fluxo da política de promoção da igualdade racial no provimento de cargos públicos.

Concursos

Tanto Katia Schweickardt quanto Vanessa Campagnac reconhecem que o concurso é uma forma democrática de ingresso de pessoas negras no serviço público. Mas ponderam que, paralelamente às cotas, é preciso dar acesso à uma educação básica de qualidade a pessoas pretas, pardas e indígenas para que elas possam chegar no dia do concurso em igualdade de condições com os demais concorrentes.

“A entrada por concurso é um funil: as pessoas pretas, pardas e indígenas já entram numa quantidade desigual e não chegam até o topo. Apesar de ser uma prova objetiva, de ampla concorrência, as pré-condições em que essas pessoas chegam no dia do concurso são muito desiguais”, analisa Vanessa. “A trajetória das pessoas pretas, pardas e indígenas precisa ser apoiada. Não é só concurso. Além de oferecer cotas nas universidades, nos concursos públicos, temos ainda que ter políticas estruturadas para acompanhar essa população desde o seu nascimento”, argumenta a secretária do MEC.

A trajetória das pessoas pretas, pardas e indígenas precisa ser apoiada. Não é só concurso. Além de oferecer cotas nas universidades, nos concursos públicos, temos ainda que ter políticas estruturadas para acompanhar essa população desde o seu nascimento.

A lei de cotas em concursos públicos está prevista para expirar em junho de 2024, quando completa dez anos. O governo federal pretende renovar e ampliar a lei para pessoas indígenas e quilombolas. A proposta é para que a reserva mínima para negros suba para 30% das vagas – hoje, a lei exige 20%. Isso valeria para a Administração Pública Federal, autarquias, fundações, empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Recentemente, o governo federal anunciou que vai fazer um concurso único, com validade de dois anos, para vários órgãos federais. Será feita uma prova única, objetiva, a ser aplicada para todos os candidatos. E uma outra específica e dissertativa, de acordo com a área de atuação que o candidato escolher. A previsão é que a prova única ocorra em fevereiro de 2024 para preencher cerca de oito mil vagas no Executivo Federal.

“Temos que ver como conseguir ampliar as condições de ingresso das pessoas negras. Isso pode estar muito relacionado a essa tentativa de redesenho dos concursos públicos, o concurso público unificado, que o governo federal tem discutido bastante, contemplando outras habilidades e outros conhecimentos para as vagas”, diz Vanessa.

Estados

Em vigor desde 2014, a Lei 12.990 reserva 20% das vagas para candidatos negros apenas em concursos públicos da União. O texto da legislação federal não estende as cotas ao Legislativo, Judiciário nem a órgãos públicos estaduais ou municipais. Mas existem iniciativas que tentam assegurar essas medidas afirmativas por todo o país.

Levantamento feito pela FLACSO em 2021 e disponibilizado no República em Dados identificou ao menos 20 estados, incluindo o Distrito Federal, que garantem a reserva de vagas para pessoas negras. Em muitos casos as iniciativas estaduais tentam adequar-se aos parâmetros federais, prevendo o mesmo percentual de reservas de vagas, como nos casos do Maranhão e do Distrito Federal. Já na Bahia, por exemplo, a reserva chega a 30%. Em outros estados, a legislação se estende também aos indígenas, como é o caso do Espírito Santo.

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