Remuneração justa é importante para reconhecer os servidores públicos, mas também é necessário reestruturar as carreiras, implementar a avaliação de desempenho individual e cumprir o teto salarial
Por Eugênia Lopes — Especial para República.org
Protagonistas do recém-lançado livro O país dos privilégios (Companhia das Letras), do economista e doutor em Direito Econômico Bruno Carazza, oito grupos de servidores públicos federais do Executivo, Legislativo e Judiciário conseguiram turbinar suas remunerações graças à incorporação de penduricalhos aos salários como forma de reconhecimento e valorização de carreiras chamadas de “elite”. Na avaliação do autor e de especialistas da República.org, essa narrativa revela, no entanto, uma visão parcial do verdadeiro conceito de valorização no setor público.
“A valorização do servidor passa pela remuneração, mas passa também pela estrutura de carreira para que os bons servidores, por meio de avaliação, sejam premiados com uma remuneração maior. É preciso ter um elemento remuneratório combinado com avaliação e carreira”, defende Carazza. Para pôr fim às discrepâncias salariais, o autor do livro indica algumas medidas: a reestruturação e redução na quantidade atual de carreiras do serviço público, a regulamentação de uma avaliação individual de desempenho, além da recuperação da autoridade do teto salarial, acabando com penduricalhos que geram os supersalários no Judiciário, Legislativo e Executivo.
Iniciativas semelhantes às apontadas pelas especialistas da República.org Ana Pessanha, analista de Projetos, e Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação. Ambas também destacam que a remuneração é apenas um dos aspectos para a valorização do servidor. Textos publicados na coluna República em Notas ao longo de 2022 mostram que a gestão organizacional e o reconhecimento social são outros dois eixos também relevantes para reconhecer o trabalho do funcionalismo público. As especialistas apontam para a necessidade de implantação de uma política de gestão de pessoas, com oportunidades de crescimento na carreira, condições adequadas de trabalho e a presença de boas lideranças que promovam a autonomia e o desenvolvimento do potencial dos servidores públicos.
“É preciso dar um salário justo, mas o servidor também se sente valorizado quando tem uma boa liderança, que o escuta e acompanha o seu desempenho, seu desenvolvimento, e quando tem uma equipe que trabalha colaborativamente”, explica Pessanha. “Tem que ter uma remuneração justa, à altura da responsabilidade do servidor público, mas tem outras medidas que podem ser feitas para que o servidor se sinta reconhecido e valorizado”, completa Campagnac.
Ela cita o ambiente de trabalho, em que o servidor precisa ter espaço para falar e ser ouvido, e os estímulos para o desenvolvimento e crescimento do funcionário. “O servidor tem que entender que tem possibilidade de ascensão, que pode ter um cargo melhor e pode colocar suas ideias em prática. São coisas mais subjetivas do dia a dia do trabalho, mas que fazem muita diferença”, observa a gerente da República.org. Em sua avaliação, o servidor precisa ter motivação extrínseca, com as instituições públicas dando condições de trabalho adequadas. “O servidor não tem que ter somente uma motivação intrínseca. O Estado também tem que dar uma contrapartida para esse servidor com condições de trabalho; isso também é valorização.”
É urgente rediscutir as carreiras públicas
Para as especialistas, o reconhecimento da sociedade também desempenha um papel fundamental na percepção de valorização do servidor. A visão pública sobre o serviço público brasileiro frequentemente apresenta distorções, muitas vezes generalizando casos isolados, como os supersalários, que representam menos de 1% dos servidores, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do IBGE, de 2022.
“Esses casos extremos, que são relacionados a uma pequena elite do serviço público, acabam deturpando toda uma imagem de uma gama de servidores públicos que a gente tem no Brasil. Quando a gente vai decompondo os dados, a gente vê que a realidade é muito diferente dessa”, argumenta Bruno Carazza. “Precisamos ter algum mecanismo de accountability que consiga frear esses penduricalhos nos salários para não ficar criando uma bola de neve de distorções remuneratórias”, observa Ana Pessanha.
Na avaliação do economista e das especialistas da República.org, é urgente a reestruturação e redução do número de carreiras do serviço público para minimizar as discrepâncias salariais. O primeiro passo é estruturar as carreiras de forma que elas passem a ter uma remuneração inicial mais baixa e uma carreira longa, em que os profissionais progridem mediante avaliações individuais de desempenho. “Precisamos fazer uma grande rediscussão de carreiras. Só no governo federal, temos mais de dois mil cargos e carreiras diferentes. É difícil ter uma política de recursos humanos coerente com uma pulverização de carreiras tão grande”, afirma Carazza.
A avaliação de desempenho individual é outro ponto considerado crucial. “O principal objetivo da avaliação de desempenho não é a gratificação, é a parte da gestão, do dia a dia para a pessoa saber o que ela tem que fazer, como ela precisa fazer, e que no final do ciclo a gente possa acompanhar de maneira concreta o que ela fez e se ela fez bem, se pode melhorar”, indica Pessanha. “A avaliação de desempenho não é necessariamente para mandar ninguém embora. O objetivo principal de uma avaliação de desempenho não pode ser esse. A boa avaliação de desempenho é aquela que dá chance para o desenvolvimento do servidor e acompanha sua evolução”, alerta Campagnac.
O mito do excesso de servidores públicos
Informações do livro O país dos privilégios, também disponíveis na plataforma República em Dados, mostram que o Brasil está longe de ter um excesso de servidores públicos. Em dezembro de 2020, o setor público brasileiro, incluindo os militares, empregava 12% da força de trabalho. Esse percentual é inferior à média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde 17,9% da população economicamente ativa atuava no setor público. Comparado a outros países, o Brasil também ficava atrás de nações como a Noruega, com 30,7%, e os Estados Unidos, que registravam 14,9% de emprego público no mesmo período.
Apesar do número inferior de servidores, o impacto orçamentário é mais significativo no Brasil. Em 2019, os gastos com a folha de pagamento do funcionalismo público representaram 13% do PIB (Produto Interno Bruto). Comparativamente, está acima de países como os Estados Unidos, cuja folha de pagamento de todos os níveis federativos fica em 8,7% do PIB; do Reino Unido, 8,9%; e da Alemanha, que gasta 7,6%.
No livro, Bruno Carazza aponta que as diferenças salariais no serviço público variam entre os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e níveis de governo (federal, estadual e municipal). “É uma pequena minoria que tem rendimentos muito acima da média do serviço público. Em geral, as carreiras municipais ganham menos que as estaduais, que ganham menos que as federais. De outro lado, o Executivo ganha menos que o Legislativo, que ganha menos que o Judiciário”, explica o autor.
Mediana de rendimentos mensais no setor público brasileiro, por poder da república e nível federativo (2019)
Fonte: “O país dos privilégios” (Companhia das Letras, 2024), de Bruno Carazza. Elaboração do autor a partir de dados do Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea. Valores deflacionados pelo IPCA até janeiro de 2024.
Em mais de 300 páginas, o economista disseca como grupos que atuam no serviço público (magistrados, membros do Ministério Público, integrantes das chamadas carreiras típicas de estado, advogados públicos, auditores da Receita Federal, militares, políticos e donos de cartórios) conquistaram ao longo dos anos remunerações exorbitantes. “Está na hora de a gente rever essa estrutura remuneratória que tem causado mal-estar na população, que é relacionada a uma pequena elite. Quero frisar isso: é uma pequena minoria de servidores que têm subvertido esse espírito da Constituição”, declara Carazza, funcionário público de carreira licenciado do governo federal.
Sobre o autor
Bruno Carazza é mestre em Teoria Econômica pela UnB e doutor em Direito Econômico pela UFMG. Servidor público de carreira licenciado, trabalhou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e em diversos órgãos do Ministério da Fazenda. É professor associado da Fundação Dom Cabral, além de comentarista de economia do telejornal Jornal da Globo e colunista do jornal Valor Econômico.