Proposta garante que juízes, promotores e defensores recebam acima do teto constitucional, ampliando desigualdades salariais e privilégios no serviço público

Por Eugênia Lopes — Especial para República.org

Parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado desde novembro de 2023, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que concede um adicional remuneratório a juízes, promotores e procuradores da República perpetua desigualdades no serviço público, aumentando a discrepância salarial entre as carreiras do funcionalismo.

Conhecida como PEC dos quinquênios (PEC nº 10, de 2023), a proposta torna perene a permissão na Constituição para que as carreiras no Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria usufruam, na prática, de remuneração acima do teto constitucional, fixado em R$ 44.008,52 desde 1º de fevereiro de 2024.

Apontada como um dos instrumentos para driblar o teto salarial, a PEC dos quinquênios teve sua tramitação atrelada no Congresso à votação do Projeto de Lei (PL) que combate os supersalários no serviço público.

O PL já foi aprovado na Câmara e, desde agosto de 2021, está à espera de ter seu relator designado no Senado. No entanto, os senadores só estariam dispostos a dar o sinal verde para o PL dos supersalários avançar, caso o adicional remuneratório seja votado.

Salários acima do teto constitucional: desigualdade salarial no serviço público chama atenção

Apresentada em março de 2023, a emenda constitucional prevê a concessão de um adicional de 5% do salário a cada cinco anos de serviço a juízes, procuradores e defensores e foi assinada por 36 do total de 81 senadores, entre eles o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Pela proposta, o adicional fica fora do teto remuneratório e será concedido a quem já está na carreira e aos aposentados. Tal ganho, que pode ser acumulado ao limite de 35% (sete quinquênios), não será contado para efeitos do teto constitucional.

“O presidente Rodrigo Pacheco disse que só pautaria o PL dos supersalários se for aprovada a PEC dos quinquênios. Haveria uma negociação para que Ministério Público e Judiciário ficassem de fora dos supersalários, garantindo para eles uma regra constitucional que lhes permitiria ganhar um adicional por tempo de serviço (ATS), que ficaria fora do teto remuneratório”, explica a professora de Direito Administrativo Vera Monteiro, da FGV Direito SP, vice-presidente do conselho do instituto República.org. “É uma PEC ruim porque garante uma remuneração acima do teto constitucional, sem relação com a eficiência do serviço, e não leva em consideração o funcionalismo público como um todo”, completa.

Para a professora da Fundação Dom Cabral, Renata Vilhena, presidente do conselho da República.org, a PEC dos quinquênios representa um atraso nas discussões sobre eficiência na administração pública, além de reforçar distorções que ocorrem entre carreiras no Estado. “O retorno dos quinquênios, em especial para algumas carreiras específicas, é um atraso na evolução do que se preconiza como uma boa gestão de pessoas e carreiras na administração pública. A própria estruturação da carreira já leva em consideração o tempo de serviço na progressão, promoção e hoje não se discute mais aumento de salários em função de tempo, mas sim em relação à produtividade e desempenho”, afirma a docente, especialista em Gestão Pública.

Carreiras do judiciário partem de salários muito altos

Um dos argumentos usados pelos defensores da PEC dos quinquênios (PEC 10/2023) seria a pequena diferença entre a remuneração inicial e a final dos juízes federais. Em abril de 2023, segundo o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, essa amplitude era de apenas 5%: o salário inicial da carreira era de R$ 33.924,93 e o final R$ 35.710,46, desconsiderando os chamados penduricalhos, benefícios que ficam fora do teto.

“Isso revela a falta de estímulo que o sistema dá para os que estão entrando nas carreiras. Muitas vezes se estabelece um salário inicial alto e depois não tem grandes modificações ao longo da carreira. Isso é um problema. E a maneira de eles trazerem novos benefícios é criando aquilo que a gente chama de penduricalho”, diz Vera Monteiro. “O projeto de emenda considera que os quinquênios não entram no teto de salários preconizado na Lei de Responsabilidade Fiscal, se mostrando, mais uma vez, uma maneira de driblar a legislação para benefícios de poucos”, observa Renata Vilhena.

O impacto da PEC dos quinquênios nos gastos públicos

Estudos realizados pelo Ministério da Economia em 2022 estimam que a aprovação da PEC dos quinquênios implicaria em um gasto de R$ 4,6 bilhões ao ano para todos os entes federativos. Soma-se a isso o fato de a concessão do benefício perpetuar as desigualdades no sistema de carreiras.

A atual proposta em discussão na CCJ do Senado traz uma novidade, que irá onerar ainda mais os cofres públicos: o relator Eduardo Gomes (PL-TO) acatou uma emenda em seu parecer e estende o benefício do adicional aos ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas da União (TCU), dos estados e dos municípios.

Na avaliação das duas conselheiras da República.org, uma política eficiente de progressão e promoção de carreira não pode levar em consideração apenas o tempo de serviço; é preciso sobretudo priorizar o desempenho e o desenvolvimento do profissional ao longo da carreira. O adicional por tempo de serviço (ATS) pode gerar um incentivo negativo para o desempenho, uma vez que profissionais com mais tempo de casa mas pouco produtivos podem ganhar mais do que profissionais muito produtivos mas com pouco tempo de casa.

“A PEC dos quinquênios é um movimento totalmente contrário à valorização dos servidores públicos em geral. Isso deixa de lado toda a dificuldade de se garantir mais equilíbrio nas contas públicas e de se fazer uma efetiva revisão de carreiras, em buscar melhorar a qualidade do serviço público, inclusive nas três esferas federativas”, diz a professora Vera Monteiro. Ela lembra que a emenda constitucional privilegia carreiras existentes na União e nos estados, deixando de fora os municípios onde se encontra a maior parte do funcionalismo brasileiro.

Renata Vilhena observa ainda que, dados do IPEA, de 2023, apontam que a remuneração do Judiciário é bastante discrepante dos demais poderes, com salários bem superiores aos pagos no Executivo e nos estados e municípios. “Não há como negar que é dever dos governos e do legislativo atuar para que haja redução dessa discrepância, que torne mais justo o sistema remuneratório do serviço público no Brasil. Além disso, não se pode esquecer que mecanismos de produtividade e desempenho devem estar sempre atrelados à remuneração, somente assim será possível trazer uma transformação da entrega de serviços à população”, defende.

Entre o PL dos supersalários e PEC dos quinquênios

A PEC dos quinquênios chegou a ser pautada no plenário do Senado no fim de 2022, mas teve a votação adiada por falta de consenso e por dúvidas quanto ao seu impacto financeiro. Apresentada em 2013 pelo então senador Gim Argello, a proposta acabou arquivada. Em março de 2023, o presidente Rodrigo Pacheco decidiu ressuscitar a PEC: ele reapresentou a proposta, assinada por outros 35 senadores, resgatando o adicional de 5% do salário para cada cinco anos na carreira, benefício extinto em 2006.

Em 22 de novembro de 2023, o relator Eduardo Gomes (PL-TO) apresentou parecer favorável à proposta na CCJ do Senado. Ele aproveitou o novo relatório para estender o benefício aos ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas da União, dos estados e dos municípios. Na época, o presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), concedeu um pedido de vista coletivo (mais tempo para os senadores analisarem a proposta) e, até hoje, a PEC está parada sem ser votada na comissão.

Se aprovada no Senado, a emenda à Constituição tem ainda um longo caminho a percorrer: precisa passar pelo crivo da Câmara dos Deputados antes de ser promulgada e entrar em vigor. A interlocutores, o presidente Rodrigo Pacheco tem garantido que a PEC dos quinquênios só será promulgada, e passará a valer, após a aprovação do PL dos supersalários.

Apesar de suspenso por uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2006, o adicional por tempo de serviço continua sendo pago a parte da magistratura. Em novembro de 2022, o Conselho da Justiça Federal (CJF) atendeu a um pedido da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e restabeleceu o benefício.

Em abril de 2023, o TCU determinou a suspensão do benefício, sob o argumento de forte impacto aos cofres públicos. Essa decisão foi objeto de mandado de segurança ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em dezembro de 2023, o ministro Dias Toffoli, do STF, anulou a decisão do TCU e liberou o pagamento do adicional por tempo de serviço aos magistrados da Justiça Federal que já tinham incorporado a parcela ao seu patrimônio. A Advocacia Geral da União (AGU) já recorreu contra a decisão de Toffoli.

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