Saúde mental dos servidores públicos: do tabu aos primeiros passos

Publicado em: 5 de março de 2024

Índice
Saúde mental no serviço público
Entendendo o problema no setor público
Quais medidas estão sendo adotadas
Como as instituições públicas podem começar a agir

Saúde mental é um problema antigo mas, mesmo assim, continua carregado de estigmas. A discriminação, a desinformação e até mesmo um “autopreconceito” impedem que as pessoas busquem e obtenham a ajuda que precisam para a recuperação. Quantos de nós já escutamos que terapia é coisa de pessoas loucas?

No Brasil, que tem um dos piores índices de depressão da América Latina1, o tema da saúde mental tornou-se mais prioritário, sobretudo após a pandemia do Covid-19, que colocou ainda mais em evidência as necessidades de saúde mental. A inevitabilidade do isolamento social e o medo de ser infectado colocou emoções à prova. Um estudo da USP com informações coletadas pelo Elsa-Brasil (Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, iniciado em 2008) revelou que transtornos depressivos e ansiosos somados chegam a uma prevalência de até 30% na população quando avaliado o antes e após a pandemia2.

Em meio à pandemia, a saúde mental dos servidores públicos emerge como um desafio crítico.

No ambiente de trabalho, segundo o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mais de 209 mil pessoas se afastaram do emprego em 2022, no Brasil, por problemas como depressão, ansiedade e Alzheimer3. Muitos sentem medo de compartilhar ou até mesmo não percebem os sinais e sintomas de adoecimento mental, que é parte de uma “naturalização” do estresse/ansiedade. Num estudo da Capita, 47% dos entrevistados afirmaram que acham que o estresse faz parte do trabalho4

Saúde mental no serviço público

Quanto ao setor público, como anda a saúde mental dos servidores? No geral, as políticas públicas direcionadas à saúde do trabalhador focam em trabalhadores vinculados às organizações privadas, deixando uma lacuna na atenção à saúde para os servidores públicos.

Esta nota busca dar relevância à saúde mental no contexto do setor público, identificando possíveis causas, examinando políticas existentes e apresentando propostas de intervenção para mitigar os impactos negativos sobre o bem-estar dos servidores.

Entendendo o problema no setor público

Um dos primeiros desafios para entender o problema de saúde mental no serviço público está na consolidação de um bom diagnóstico, já que há uma enorme deficiência na coleta de dados. Em grande parte, os dados não traduzem a realidade da situação, uma vez que existe subnotificação dos casos, seja por medo, seja por falta de apoio. A escassez e a inconsistência de informações sobre a real situação de saúde mental dos servidores públicos dificultam a definição de prioridades para o planejamento e a implementação de ações efetivas de saúde do servidor.

Diante dos desafios únicos na saúde mental dos servidores, o Brasil inicia um caminho em busca de soluções inovadoras e políticas inclusivas.

A magnitude do problema no setor público é também multidimensional, podendo ser analisada sob diferentes perspectivas e recortes, que consideram variações regionais, institucionais e ocupacionais. É preciso diferenciar nuances no diagnóstico, tendo em vista que as carreiras enfrentam desafios singulares, demandando abordagens e políticas distintas para a promoção da saúde mental.

Em âmbito federal, nos últimos 7 anos, 15 mil servidores federais foram afastados por transtornos mentais5. Quando ampliamos a análise para estados e municípios, torna-se evidente que profissionais diretamente envolvidos com o atendimento à população, como professores, profissionais de saúde, policiais e agentes de segurança pública enfrentam maior incidência de transtornos mentais. 

A pesquisa Saúde Mental dos Educadores 2022, realizada pela Nova Escola em parceria com o Instituto Ame Sua Mente, revelou que o número de educadores que consideram sua saúde mental “ruim” ou “muito ruim” aumentou em relação a 2021: de 13,7% para 21,5%6. Já na área de segurança pública, embora servidores lidem com um dos mais arriscados trabalhos no que tange aos riscos para a saúde ocupacional, não há dados precisos e tratados, mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Dentre alguns dos fatores de risco que contribuem para policiais apresentarem problemas relacionados à saúde mental, encontram-se: o assédio moral, a admissão do papel de “policial herói” e o desgaste físico e mental em razão do contato continuado com situações de perigo7. Casos urgentes chamam atenção da mídia, como a cultura de assédio que se instalou no Ministério Público de São Paulo, onde os afastamentos por saúde mental cresceram em 24%, comparando os primeiros sete meses de 2023 ao mesmo período do ano anterior. Servidores do órgão denunciaram gritos, humilhações e uma cultura de impunidade no trabalho8

Assédio, sensação de insegurança, desempenho não reconhecido, perseguição por alguma filiação partidária, relacionamentos complicados, insatisfação com o serviço e pressões de produtividade são algumas das diversas causas que contribuem para o problema. Fatores relacionados à cultura da organização, às  condições de trabalho e também aos fatores pessoais da vida dos servidores também são parte desse complexo e multifacetado quadro. Apesar de servidores públicos possuírem uma relação de trabalho menos instável, também estão expostos às instabilidades geradas por oscilações políticas e de planejamento, que ocasionam descontinuidade de ações, alterações na qualidade e na quantidade da demanda pelos serviços ofertados; acúmulo de funções; mudanças na organização do trabalho ou na natureza das ações que conflitam com o sentido; e as crenças que os trabalhadores possuem9.

Quais medidas estão sendo adotadas

É preciso reconhecer que a busca por soluções para problemas de saúde mental tem ganhado mais força com novas iniciativas, o que também ajuda a desmistificar o tema. Recentemente, foi lançada a Frente Parlamentar Mista para Promoção de Saúde Mental, que tem o objetivo de fortalecer e promover avanços na construção de políticas públicas em saúde mental. No mesmo contexto legislativo, o Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) lançou, em 2023, uma cartilha com princípios e diretrizes para políticas públicas de saúde mental, o Guia Parlamentar de Saúde Mental. Embora essas ações estejam mais centradas na saúde mental dos cidadãos em geral, é evidente que o tema está adquirindo crescente importância, desvinculando-se gradativamente do estigma que o cercava.

Iniciativas inovadoras e políticas proativas marcam o novo rumo na promoção da saúde mental dos servidores públicos, abrindo caminhos para um futuro mais saudável e resiliente no setor.

Na segurança pública, foi sancionada uma lei federal em janeiro de 2023 que prevê ações em três níveis de prevenção e promoção de saúde mental para policiais. Na prevenção primária, serão usadas estratégias como estímulo ao convívio social, programas de conscientização e capacitação para identificação de casos de risco. A prevenção secundária é voltada aos profissionais que já estão em situação de risco de práticas de violência autoprovocada, devendo ser centrada em programas sobre uso e abuso de álcool e outras drogas; organização de uma rede de cuidado; acompanhamento psicológico regular; e acompanhamento psicológico para policiais que estejam presos ou respondendo a processos. Na prevenção terciária, deve haver aproximação da família para envolvimento e acompanhamento no processo de tratamento; enfrentamento de toda forma de isolamento, desqualificação ou qualquer forma de violência eventualmente sofrida pelo profissional; restrição do porte e uso de arma de fogo; e acompanhamento psicológico10.

Apesar de algumas políticas em âmbito nacional ganharem relevância, cada ente público desenha e implementa diretrizes e políticas de saúde mental de forma descentralizada. Como exemplo, o Governo do Estado de São Paulo instituiu o programa Psicólogos na Escola, e em 2023 368 profissionais passaram a integrar as equipes das escolas estaduais. Uma pesquisa feita pela Secretaria de Estado da Educação com mais de 25 mil respostas identificou que a medida prioritária para serviços de saúde mental e segurança é a visita regular de psicólogos às escolas11.

Como as instituições públicas podem começar a agir

Embora enfrentem diferentes desafios, os órgãos públicos podem e devem elaborar estratégias para compreender e prevenir os riscos de adoecimento mental de seus servidores. Abaixo algumas sugestões práticas para avançar com a agenda de saúde mental que se aplica aos diferentes ambientes de trabalho das instituições públicas:

  1. Implementar uma pesquisa de clima e cultura organizacional

Uma forma de iniciar um diagnóstico para identificar riscos de saúde mental dos servidores é realizar uma pesquisa de clima e cultura organizacional. Essa pesquisa pode ser ampla e, assim, endereçar diversos indicadores que reúnam o nível de bem-estar dos servidores. A autopercepção da saúde pode ser usada como método confiável e válido para avaliar a saúde geral, e a autoavaliação da saúde emocional ruim pode ser uma importante preditora para o início da depressão.

Uma pesquisa de clima que aposte em um arcabouço completo de bem-estar no ambiente de trabalho pode auxiliar os tomadores de decisão a entender outros aspectos, como por exemplo engajamento dos servidores: condições do ambiente de trabalho podem afetar mais o engajamento do servidor do que incentivos financeiros12. Além disso, ampliar a escuta dos servidores no processo de identificação de problemas no local de trabalho, seguida por efetiva implementação das ações sugeridas, têm maior probabilidade de resultar em mudanças significativas.

Confira uma sugestão de questionário para o bem-estar de trabalhadores publicada pelo Instituto Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional do Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos neste link.

  1. Fortalecer ouvidorias internas

As ouvidorias têm um papel fundamental como canal de acolhimento e denúncia em casos em que há uma cultura tóxica instalada na instituição. Para termos canais institucionais estabelecidos e fortalecidos, é fundamental um protocolo de encaminhamento a profissionais especializados.

Além disso, qualquer compartilhamento de informações e coleta de dados deve assegurar o sigilo e anonimato dos usuários, com acesso restrito apenas às autoridades competentes para lidar com tais informações. Sabe-se que há receio de retaliação ou perseguição no cenário do setor público. Por isso, essa abordagem contribui não apenas para a identificação e correção de práticas prejudiciais, mas também para a construção de uma cultura organizacional mais saudável e transparente.

  1. Analisar padrões nos afastamentos por absenteísmo-doença

Compreender os padrões e a recorrência das licenças auxilia no mapeamento de riscos e também na elaboração de estratégias de promoção da saúde mental. Um estudo de revisão integrativa da literatura a respeito do absenteísmo-doença no serviço público brasileiro apontou que, a partir dos 40 anos, há um aumento de servidores licenciados por absenteísmo-doença. O estudo ainda observou maior prevalência do absenteísmo-doença em servidores com mais de 11 anos de serviço. Servidores públicos no topo da carreira podem experimentar sentimento de frustração relacionado à repetição de padrões estabelecidos há vários anos e à dificuldade em lidar com técnicas e ferramentas novas, principalmente ligadas à informática13

Focar em medir e avaliar os padrões de absenteísmo por si só não é suficiente para encorajar um ambiente de trabalho saudável. Os departamentos de gestão de pessoas precisam ser fortalecidos e desenvolver uma sólida análise de entendimento das causas do absenteísmo. 

Mapear e ajustar os processos de afastamento também pode auxiliar a reconhecer padrões e atuar em medidas preventivas. Durante uma campanha de saúde mental, a Rede de Associações de Carreiras do Estado de São Paulo (RACESP) sugeriu mudar o protocolo nos casos de afastamentos médicos ligados à saúde mental (depressão, burnout etc.) para que os servidores sejam reavaliados antes de retornarem ao trabalho.

Figura 1: Exemplo de jornada para pedidos de afastamentos de saúde no Governo Federal. Fonte: Desafio Detecção de riscos à saúde mental no trabalho, ENAP (2019).

  1. Implementar medidas efetivas de prevenção

A partir de um diagnóstico robusto, é necessário desenhar medidas que endereçam as devidas causas raízes que, como vimos, podem ser diversas. O documento ‘Detecção de riscos à saúde mental no trabalho’, publicado pela Escola Nacional de Administração Pública, a ENAP, indica que, ainda que os  dados sejam coletados ou registrados, raramente eles passam por análise e consolidação. Ou seja: não são transformados, muitas vezes, em conhecimento para tomada de decisão. 

Aspectos financeiros, físicos e emocionais da saúde estão interrelacionados como fatores que podem afetar a saúde mental dos servidores. Isso indica que a abordagem de saúde mental das organizações precisa ter um olhar holístico. Para auxiliar o desenho dessas medidas, o arcabouço “Princípios para promover saúde mental e bem-estar no ambiente de trabalho” (Figura 2), publicado pelo Departamento Nacional de Saúde dos Estados Unidos, pode ser visto como um ponto de partida. 

Figura 2: Princípios para promover saúde mental e bem-estar no ambiente de trabalho, U.S. Department of Health and Human Services – Office of the U.S. Surgeon General.

Algumas iniciativas se destacam: 

  • Proteção: Priorizar a segurança física e psicológica no local de trabalho.
  • Conexão e comunidade: Cultivar relacionamentos de confiança.
  • Equilíbrio de vida pessoal e trabalho: Tornar horários flexíveis e previsíveis quando possível.
  • Relevância no trabalho: Estabelecer uma cultura de reconhecimento.
  • Oportunidade para crescer: Oferecer treinamentos de qualidade e mentoria.

A partir das particularidades de cada instituição, o arcabouço pode orientar líderes, gestores e supervisores, bem como capacitar os servidores, para identificar e comunicar mudanças organizacionais prioritárias necessárias

  1. Promover visibilidade do tema de saúde mental

Por fim, estabelecer comunicação simples e acessível para todos auxilia na redução do estigma e do preconceito em torno no tema de saúde mental. Ciclo de palestras, capacitações, rodas de conversa e guias são alternativas acessíveis que podem ser lideradas por departamentos de gestão de pessoas.

Garantir o bem-estar no local de trabalho requer um esforço intencional e contínuo por parte dos líderes em todos os níveis. Esperamos, assim, que órgãos públicos avancem na institucionalização de políticas, processos e práticas para melhor apoiar a saúde mental e o bem-estar dos servidores.

Referências Bibliográficas

1Antonia E, Dalia AV, Juan PRM, Rafael T, Nicolas AC, Eduardo AU, Peter BJ,Prevalence of depressive disorder in the adult population of Latin America: a systematic review and meta-analysis, The Lancet Regional Health – Americas, Volume 26, 2023.
2Brunoni AR, Suen PJC, Bacchi PS, et al. Prevalence and risk factors of psychiatric symptoms and diagnoses before and during the COVID-19 pandemic: findings from the ELSA-Brasil COVID-19 mental health cohort. Psychological Medicine. 2023;53(2):446-457.
3Fonte: Agência Câmara de Notícias (2023).
4Fonte: Detecção de riscos à saúde mental no trabalho, ENAP (2019).
5Fonte: Detecção de riscos à saúde mental no trabalho, ENAP (2019).
6Fonte: Saúde Mental dos Educadores, Nova Escola e Ame Sua Mente (2022).
7Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023)
8Fonte: Globo (2023). Disponível no link.
9Lancman, S., Sznelwar, L. I., Uchida, S., & Tuacek, T. A. (2007). O trabalho na rua e a exposição à violência no trabalho: um estudo com agentes de trânsito. Interface, 11 (21), 79-92.
10Fonte: Agência Câmara de Notícias (2023). Lei 14.531/2023.
11Fonte: Governo de São Paulo, Secretaria de Estado da Educação (2023).
12Fonte: Detecção de riscos à saúde mental no trabalho, ENAP (2019).
13Santi, D.L., Barbieri, A.R, Cheade, M.F.M. Absenteísmo-doença no serviço público brasileiro: uma revisão integrativa da literatura. Rev Bras Med Trab. 2018;16(1):71-81.

Cinthia Assis: Mestre em Políticas Públicas na Hertie School em Berlim e bolsista da República.org, Cinthia Assis trabalhou por mais de cinco anos no setor público brasileiro, tendo passado pelas três esferas de governo, incluindo o Ministério da Educação, Secretarias de Estado do Paraná e Mato Grosso do Sul, além da Prefeitura Municipal de Blumenau. Foi facilitadora de jornadas de auto-conhecimento para jovens universitários e atualmente é consultora pela May & Company, que atua globalmente com o desenvolvimento de pessoas, promovendo segurança psicológica e bem-estar em organizações.

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