Este texto foi escrito em 25 de abril 2024. Na mesma data, o texto do PL 1.958/2021 foi aprovado em primeiro turno na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Para a República.org, a renovação e o aprimoramento da Lei de Cotas no serviço público são indispensáveis para a construção de um Estado mais inclusivo e democrático, o que só será possível se a população brasileira estiver espelhada na administração pública.

Após dez anos de lei, fica evidente que, por uma série de fatores, o mecanismo de reserva de vagas precisa acertar a rota para ser capaz de ter maior impacto em um próximo ciclo — até mesmo para articular mecanismos de avaliação mais efetivos.

Números do Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal mostram que, nesse período, não houve avanço significativo de pessoas negras nos quadros de servidores, e não só por brechas na lei, mas pela própria conjuntura econômica e política do país — como a baixa quantidade de concursos públicos, por exemplo.

Outro ponto de destaque é a fragmentação da reserva de vagas: a lei determina que só em concursos com mais de três vagas é obrigatório ter cotas para pessoas negras1, o que se mostrou um importante limitador no ingresso de pessoas negras na carreira do magistério superior.

Um estudo realizado pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) encontrou que apenas 0,53% dos nomeados como profissionais do magistério superior eram cotistas (Enap, 2021). Também chama a atenção a baixa representatividade indígena na administração federal, com apenas 0,4% de indígenas. A nova proposta de lei inclui também a reserva de vagas para indígenas e quilombolas.

Abaixo, confira a análise dos principais problemas da Lei de Cotas na Administração Pública Federal (APF) e possíveis caminhos para uma Lei de Cotas efetiva no serviço público brasileiro.

As ações afirmativas na administração pública federal

A lei 12.990 de 2014, que implementou a reserva de 20% das vagas em concursos públicos da administração pública federal para pessoas negras, chega ao seu prazo final agora em junho de 2024. Em 2013, a Administração Pública Federal possuía 37,3% vínculos ativos (219.496) que se autodeclararam como pessoas negras (PEP, 2024).

Dados de fevereiro de 2024 demonstram que esse número agora é de 39,9% (227.776) (PEP, 2024). A população brasileira é formada por 55% de pessoas negras e essa população não está sendo devidamente representada na burocracia pública. Mulheres negras, por exemplo, representam 17% de todos os vínculos e correspondem a 28% da população brasileira (IBGE, 2022).

Ao verificarmos a série histórica da APF de 1999 até os anos atuais, vemos uma pequena variação positiva da proporção de pessoas negras, mesmo após dez anos de implementação das cotas. Isso pode ser explicado por quatro principais motivos, elencados abaixo.

Gráfico 1: Proporção de pessoas negras na Administração Pública Federal (2000 a 2024)

Fonte: Elaboração própria com base em informações do Painel Estatístico de Pessoal (PEP), 2024.

1 — Baixo número de ingressantes durante o período de implementação e pouco tempo de implementação

Ao comparar os concursos públicos federais entre os anos de 2014 a 2022, houve uma queda de 68% de ingressantes entre esses períodos (PEP, 2024). Há carreiras da administração pública federal em que não houve uma renovação dos quadros em quase 15 anos2, como a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG), em que não há entrada desde 2009.

Em 2012, foi autorizado um concurso em novo formato com um total de 150 vagas previstas, porém este foi cancelado em 2013 por decisão do Tribunal de Contas da União. A carreira voltará a ter ingressantes com o Concurso Nacional Unificado de 2024.

Gráfico 2: Número de ingressantes no executivo federal — Estatutários (2008 a 2023)

Isso não significa, contudo, que se deve abrir concursos apenas para renovar o quadro de pessoal, pois questões de dimensionamento da força de trabalho e de sustentabilidade fiscal devem ser previamente consideradas. Mas talvez indique que dez anos é um tempo insuficiente para visualizarmos os resultados das ações afirmativas.

Uma das alterações do substitutivo do PL que está em votação é que, ao invés da vigência ser fixada em dez anos, esse mesmo período será aplicado apenas para a revisão. Essa mudança é importante para que, em caso de atraso na votação de um novo instrumento legislativo ao fim da vigência, a ação afirmativa não seja afetada negativamente por uma questão de priorização de pauta ou de atrasos naturais ao processo legislativo.

Caso essa nova lei não seja aprovada em breve, por exemplo, os concursos são desobrigados de fazerem reserva das vagas a partir de junho deste ano.

2 — Fragmentação das vagas em universidades

Outro fator que dificultou a mudança do perfil da APF foi a fragmentação de vagas para a carreira do magistério superior. A carreira foi responsável por 21% (33.906 ingressantes) dos concursos abertos desde 2014 até 2023.

Um estudo da ENAP analisando o período de 2015 a 2019 verificou universidades sem nenhum ingressante cotista, e a que apresentou a maior proporção de ingressantes foi a Universidade Federal do Sul da Bahia, com a entrada de 7,74% de professores cotistas (Enap, 2021).

Essa ausência de ingressantes por ação afirmativa se deve a uma fragmentação na abertura de vagas, já que cada departamento de uma universidade abre um edital próprio com menos de três vagas, valor mínimo para a implementação das ações afirmativas.

O novo substitutivo para a Lei de Cotas propõe a diminuição de três para duas as vagas mínimas para a implementação da cota, o que pode resolver em parte esse problema. Além disso, foi aprovado um parágrafo que diz que “serão previstas em regulamento medidas específicas para evitar o fracionamento de vagas em mais de um certame que acarrete prejuízo à reserva de vagas de que trata esta Lei”.

Essa inclusão aponta a importância de pensar mecanismos que contornam essa pulverização, como a realização de sorteio de qual departamento ou unidade irá aderir às ações afirmativas, por exemplo3.

3 — Cláusula de barreira e abertura do processo seletivo apenas com cadastro de reserva em algumas carreiras

Para além dessas carreiras do magistério superior, outras também apresentaram um baixo número de ingressantes cotistas. Esse é o caso de médicos, agentes administrativos e engenheiros, que apresentaram, respectivamente, uma entrada de 2,6%, 4,8% e 7,4% de ingressantes como cotistas (Enap, 2021).

Dessa forma, alguns mecanismos podem explicar o fenômeno para além da fragmentação das vagas, como a cláusula de barreira nas fases do processo e a abertura de concurso apenas para cadastro de reserva.

No primeiro caso, a cláusula de barreira das fases do processo faz com que não se tenha oferta de ingressantes por ações afirmativas ao fim do processo. Isso acontece porque tais cláusulas são utilizadas da mesma forma para ampla concorrência e para as cotas, e vão sendo excluídas as pessoas que ingressam por ações afirmativas.

As ações afirmativas são criadas como um mecanismo de correção das desigualdades históricas de grupos sub-representados, portanto, as cláusulas entre as fases direcionadas para cotistas e concorrentes da ampla também devem ser ajustadas, com vistas a essa correção. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por exemplo, excluiu a cláusula de barreira da primeira fase do processo seletivo para os candidatos cotistas, mantendo apenas a exigência da pontuação mínima.

O segundo mecanismo é a realização de concurso público apenas para cadastro de reserva. Como não há um número específico de vagas de ingressantes, a ação afirmativa não se aplica. Para este caso, o substitutivo traz em seu artigo 5º que, mesmo que só haja cadastro de reserva ou menos de duas vagas, as pessoas podem se inscrever nas ações afirmativas. E em caso de abertura das vagas posteriormente, ou em caso de ampliação do número das vagas, a reserva será aplicada.

4 — A lei anterior contemplava apenas cargos efetivos e não os processos para contratações temporárias

Com a nova proposta do substitutivo, o projeto de lei contempla, além de concursos públicos para cargos efetivos e empregos públicos, a reserva de vagas em contratações realizadas por processo simplificado, como o caso de algumas contratações temporárias da APF.

Entre os anos de 2014 e 2022, houve a entrada de 121.125 profissionais temporários na administração pública federal por meio de processo seletivo. Caso estivesse em vigência um texto como o do substitutivo, teríamos uma entrada de 36.337 (30%) pessoas via ações afirmativas.

Gráfico 3: Número de ingressantes no executivo federal – temporários (2008 a 2023)

Considerações finais

Em conclusão, a Lei de Cotas no Brasil representa um passo significativo em direção a um Estado mais inclusivo e democrático. A renovação e o aprimoramento dessa legislação são essenciais para refletir a diversidade da população brasileira na administração pública. Apesar dos desafios enfrentados, como a fragmentação das vagas e a cláusula de barreira, as propostas de alteração na lei visam minimizar essas questões e promover uma maior representatividade de grupos historicamente sub-representados na administração pública, incluindo também indígenas e quilombolas no novo texto.

A implementação efetiva das ações afirmativas é crucial para corrigir desigualdades históricas e garantir que cidadãos tenham oportunidades mais igualitárias de compor o corpo burocrático do país. Com a adoção de mecanismos mais eficazes e a inclusão de contratações temporárias sob o escopo da lei, é possível fortalecer o caminho para construir um serviço público que verdadeiramente espelha nossa rica diversidade cultural e étnica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1O novo substitutivo que está em votação na CCJ estabelece um mínimo de duas vagas.
2https://anesp.org.br/todas-as-noticias/concurso-para-eppgg-veja-histrico-de-vagas.
3A UFRJ adota esse modelo de sorteio: https://pessoal.ufrj.br/2024/01/ufrj-realiza-sorteio-de-cotas-para-concurso-docente.

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