Por Paula Frias e Vanessa Campagnac

Os dados disponíveis sobre a população LGBTQIA+ no Brasil ainda são escassos. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fez o primeiro levantamento sobre orientação sexual apenas em 2022, a partir da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Os resultados divulgados mostraram que 5,2% da população adulta do país — o equivalente a 2,9 milhões de pessoas — se declara gay, lésbica ou bissexual. A pesquisa não apresentou informações sobre identidade de gênero.

O estudo do IBGE deve ser analisado com cuidado, considerando a elevada subnotificação desse tipo de pesquisa. O próprio instituto afirma que o estigma social e o sentimento de insegurança podem ter levado à omissão da orientação sexual por parte dos entrevistados. Os 5,2% correspondem, portanto, ao número de brasileiros que se sentiram confortáveis para prestar essa autodeclaração ao IBGE, não a quantidade exata de lésbicas, gays e bissexuais.

Se a contagem da população LGBTQIA+ ainda é uma grande lacuna no processo de levantamento de dados, o cruzamento dessa variável com outros aspectos da vida social é ainda mais desafiador. Há um grande desafio em determinar os acessos à saúde, assistência e educação para esta população, assim como mapear as violências físicas, psicológicas, verbais e institucionais que ela sofre.

Por meio da inserção dos campos de orientação sexual e da substituição de “sexo” por “identidade de gênero” nas fichas administrativas do setor, o serviço público poderia cumprir uma dupla função: gerar dados e garantir visibilidade e dignidade aos atendimentos.

No entanto, os protocolos sozinhos não isentam a população LGBTQIA+ de situações constrangedoras. Tais medidas devem vir acompanhadas por treinamento e capacitação dos profissionais públicos para o correto atendimento e preenchimento dos registros administrativos.

Se para outros temas os dados qualificados auxiliam no planejamento de políticas públicas, para as populações que sofrem com algum estigma dentro do tecido social, são as políticas voltadas para educação e capacitação que podem auxiliar na geração destes dados, em uma dinâmica de retroalimentação.

Como inserir essas políticas no debate institucional?

A falta de instâncias de participação (como conselhos nacionais e regionais, conferências e grupos de trabalho) voltadas à temática LGBTQIA+ (que, por si só, atravessa diversos outros segmentos, como educação, saúde, segurança, emprego e renda, e é muito heterogênea em suas demandas) é um obstáculo para que estas políticas sejam pautadas.

Essas instâncias têm alto potencial de guiar os instrumentos de planejamento das diferentes esferas de governo, com reflexos nos planos plurianuais e estratégicos.

O que são os instrumentos de planejamento e o que contemplam?

Os instrumentos de planejamento são formas de definir eixos, objetivos, metas, ações e formas de mensuração e atribuição dos responsáveis para as políticas públicas futuras.

Eles são importantes para guiar a execução do orçamento e um termômetro de quais temáticas devem ser priorizadas em determinado governo. A partir dos objetivos, são traçadas as diretrizes, das diretrizes formam-se os eixos estratégicos e suas estratégias. São estipuladas ações para cada estratégia e metas que devem ser atingidas a partir das ações. É recomendado que haja indicadores de monitoramento das metas para o acompanhamento das ações e para verificar se elas estão sendo efetivas ou se novos rumos devem ser pensados.

Ao incluir a população LGBTQIA+ nesses documentos, há a intenção de vê-la representada nas políticas públicas a serem efetivadas em curto e médio prazos.

O que é o Plano Plurianual (PPA)?


É um plano de médio prazo previsto na Constituição Federal para municípios, estados e União. Ele define as diretrizes das políticas e os planos de ação para que elas se concretizem. Funciona como importante instrumento jurídico de planejamento das unidades federativas. De acordo com o Doutor em Administração Pública e Analista de Planejamento e Orçamento do Ministério da Economia, Cilair Abreu, “qualquer que seja a categoria de programação em que uma iniciativa (projeto, atividade, ação, etc.) apareça no PPA, é consistente supor que há uma intenção explícita de os governos a executarem ao longo da sua vigência“.

Como a população LGBTQIA+ é representada nos planos plurianuais e como eles abordam a capacitação dos servidores?

Nos estados brasileiros

Nos estados e capitais do país

O levantamento revelou como a ênfase na temática de políticas voltadas para a população LGBTQIA+ é desigual entre as regiões brasileiras. Lembremos que o PPA é um objeto de planejamento e não de implementação, ou seja, para que as ações cheguem até a população, ainda há um longo caminho de previsão orçamentária, vontade política e execução na ponta do serviço público.

Qual o histórico da discussão dos planos específicos para a população LGBTQIA+?

Os marcos importantes e o surgimento de Planos Nacionais especializados

O que foi o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT — 2009 (PNPCDH–LGBT)


Elaborado em conjunto com a sociedade civil, em um contexto de fortes demandas pelo direito das pessoas LGBTs, surge em movimento de continuidade do Plano Brasil Sem Homofobia, criado em 2004. Busca promover, de forma ampla e multidimensional, políticas públicas direcionadas à população LGBTQIA+.

PNPCDH–LGBT em números

O que foi a Política Nacional de Saúde Integral LGBT 2011


O plano veio para instituir no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) objetivos, diretrizes e ações voltados para a população LGBTQIA+, tanto na capacitação dos profissionais de saúde quanto na ampliação e criação de serviços que atendam às especificidades das pessoas contempladas pela sigla.

Política Nacional de Saúde Integral LGBT em números

Foram planejadas quatro ações voltadas para capacitação de gestores públicos — a maior parte está concentrada no terceiro eixo, “Educação permanente e educação popular em saúde com foco na população LGBT”.

De acordo com o especialista em Diversidade e Gênero, Hiago Rocha, “desde os anos 2000, o movimento LGBTI+ realizou uma série de conquistas que em grande medida vão ser garantidas pelo poder judiciário e também pelo executivo (iniciado com FHC, mas principalmente nos governos Lula), como o Programa Brasil Sem Homofobia, em 2004, e conferências e eventos oficiais em abrangência nacional”. “Mas é também entre 2011 e 2013 que inicia a ofensiva conservadora no Congresso Nacional contra os direitos LGBTI+, liderada por fundamentalistas religiosos.

Essa emergência é simbolizada principalmente no contexto em que a presidente Dilma é pressionada a cancelar o chamado ‘kit gay’ (em alusão ao Programa Escola Sem Homofobia), que visava distribuir material educativo para professores do ensino básico. A pressão foi grande e o projeto foi cancelado, o material não foi distribuído. A redução dos espaços de deliberação e representação LGBTI+, como o Conselho Nacional LGBT+, são expressões concretas dessa inviabilização política dos direitos LGBTI+”, completa.

“O balanço é de que a situação contemporânea da última década no Brasil não tem sido muito favorável para a diversidade sexual e de gênero. Mesmo que as vitórias no judiciário e as representações na mídia e na cultura em geral estejam mais positivas, no que é concreto, em termos políticos, o cenário continua sendo de interdição de políticas públicas, vedação à educação básica para a diversidade, fechamento ou não continuidade de Conselhos, Fóruns, Assembleias e Congressos”, afirma o pesquisador.

O declínio na intensidade do debate transparece nesses outros instrumentos de planejamento. A carência de previsão orçamentária específica, materializada em instrumentos como Planos Plurianuais (PPA), Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Leis Orçamentárias Anuais (LOA) esboça a fragilidade das políticas públicas para a população LGBTQIA+ (Mello et al, 2012).

Abordar o PPA foi apenas um pequeno recorte de todo o processo de planejamento e elaboração de uma política pública. Uma ação presente nele não é sinônimo de sua implementação, mas é um passo importante para dizer institucionalmente que essa demanda existe.

Gostou do nosso conteúdo? Você pode baixar o material em PDF.

Referências bibliográficas

FILIPIACK, Isadora Cechin; GASPODINI, Icaro Bonamigo. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: revisão de literatura. Perspectivas em psicologia, v. 23, n. 2, p. 40-56, 2019.

MELLO, Luiz; AVELAR, Rezende Bruno de; MAROJA, Daniela. Por onde andam as políticas públicas para a população LGBT no Brasil. Sociedade e Estado, v. 27, p. 289-312, 2012.

VIEIRA, Willian. A luta nunca termina. Gama Revista, 2020.

TODXS. Unicórnio de gênero e sexualidade. TODXS Consultoria, 2020.

Notas metodológicas

Para sistematizar as ações dos Planos Plurianuais de estados e capitais brasileiras foram utilizadas palavras-chave de busca em documentos pesquisáveis. As palavras procuradas foram: “LGBT”, “Orientação Sexual”, “Gay” e “Lésbica”. A partir da pesquisa, foi verificada se aquela menção se refere à alguma ação efetiva voltada para a população LGBTQIA+. Em caso positivo, foi verificado se esta ação era de capacitação de servidor público ou se era relacionada a centros de atendimentos especializados, seja criação dos centros ou melhoria de funcionamento. Para os estados, foram investigados os documentos dos planos plurianuais de 2020-2023 e para as capitais, de 2022-2025.

O histórico da sigla do movimento LGBTQIA+ é marcado pela luta por visibilidade e direito de existir, e pela reivindicação de interseccionalidade na luta política, a fim de considerar os recortes de gênero e raça ao olharmos para as desigualdades do grupo. A inversão da posição das letras G e L para enfatizar a luta de mulheres lésbicas, como foi visto na linha do tempo, é um demonstrativo de como a sigla em si é um lugar de disputa. O site todxs.org disponibiliza o documento “Unicórnio de gênero e sexualidade“, cujo objetivo é apresentar algumas definições de cada letra da sigla, mas levando em consideração que estas passam por este lugar de disputa.

Entender as especificidades e heterogeneidades presentes dentro do grupo é fundamental para orientar o planejamento de políticas focalizadas e disseminar o conhecimento sobre o tema.

As autoras

Cientista social pela UFRJ e mestre em Ciência Política pela UERJ, Paula Frias é analista de dados da República.org.

Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela ENCE/IBGE e doutora em Ciência Política pela UFF, Vanessa Campagnac é gerente de dados e comunicação da República.org.

A República.org é um instituto brasileiro fundado em 2016 para melhorar a gestão de pessoas do serviço público no país. Com sede no Rio de Janeiro, a entidade apoia e desenvolve iniciativas em diversas áreas para estimular a cultura de inovação, o espírito público e o reconhecimento de profissionais públicos em todas as esferas governamentais.

Inscreva-se na nossa newsletter