Por Gabriela Lotta

Índice
Para uma boa gestão
Impacto na qualidade do serviço

Em textos anteriores, discutimos as características dos burocratas de nível de rua, o que fazem e como sua atuação influencia o resultado das políticas públicas. Uma questão que fica evidente nas discussões anteriores é que a linha de frente dos serviços públicos é tão importante como negligenciada. Se as decisões dos burocratas de nível de rua podem afetar diretamente a imagem do Estado e o acesso a serviços e direitos pelos cidadãos, não parece que este mesmo Estado se dedica em igual proporção para garantir uma boa gestão. 

Como mencionamos, os burocratas de nível de rua correspondem em geral a mais de 70% da burocracia – especialmente em governos estaduais e municipais. Mas, quando pensamos em quem são os atores mais valorizados nos processos decisórios, em geral associamos isso à figura das lideranças, principalmente ao alto escalão. É como se a liderança fosse a centralidade das decisões e dela decorressem todas as ações que resultariam em serviços implementados.

No entanto, dada a alta discricionariedade e imprevisibilidade do trabalho na linha de frente, é irreal imaginar que a liderança sozinha seja capaz de garantir que os resultados sejam alcançados. Sem uma burocracia de nível de rua motivada, capacitada e responsiva, é quase impossível garantir que os planos se transformem em prática.

A pergunta portanto é: como podemos gerenciar melhor a linha de frente?
Não há receita para esta resposta, mas há muitos fatores e questões que nos ajudam a enfrentá-la. 

PARA UMA BOA GESTÃO

A primeira é óbvia, mas pouco aplicada: temos que dar centralidade para a burocracia de linha de frente nos processos de planejamento e gestão das políticas públicas. Isso não significa passar para a linha de frente as decisões, nem envolver todos os burocratas de nível de rua nos processos decisórios. Mas significa que temos que compreendê-los, ouvi-los e considerá-los em todo processo de planejamento. Sem conhecer o que acontece na ponta e quais são as capacidades que estes atores têm (ou não têm), os planos não passam de sonhos. E, pior, corre-se o risco bastante recorrente de culpabilizar os burocratas de nível de rua pelos sonhos não alcançados (quem nunca ouviu a máxima de que a educação não vai bem por culpa dos professores? Ou de que a cidade é violenta por culpa da polícia?). Conhecer, escutar e envolver os burocratas de nível de rua nos processos de planejamento aumentam as chances de implementação de uma política – ou o que chamamos de sua implementabilidade.

Uma segunda questão é reconhecer que a linha de frente sempre vai ter discricionariedade, e que a imprevisibilidade é a marca central dos encontros cotidianos entre Estado e sociedade. Assim, o afã controlador de achar nunca vai ser suficiente – pelo contrário, pode atrapalhar o serviço e aumentar seus custos. Não adianta querer supervisionar tudo o que um professor faz, controlar tudo o que uma enfermeira diz, determinar tudo o que um policial fará na rua. Estes trabalhos são, por natureza, imprevisíveis e a gestão deve aprender a lidar com isso. Como? Apostando no direcionamento e não no puro controle. Isso significa apostar que estes profissionais terão que tomar decisões e, em vez de tomá-las por eles, ensiná-los a como fazer melhor. E também controlá-los quando necessário, mas não em tudo e a todo tempo. Não é possível prever todos os perfis de alunos que um professor terá em sua sala, nem todas as situações que encontrará. Mas podemos capacitar, sensibilizar, dar diretrizes para que o professor tome as melhores decisões possíveis quando o imprevisível acontecer. E quais são as melhores decisões possíveis? Aquelas que contribuem para o resultado das políticas públicas, para a garantia do direito, para a inclusão social e para o respeito às diversidades. 

Aqui está uma terceira chave importante para a gestão da linha de frente: ela não nasce pronta. Burocratas de nível de rua não têm todos os conhecimentos necessários para sua função; eles não nascem sendo servidores públicos e, além de tudo, como qualquer outro cidadão, também carregam estereótipos e preconceitos. É por isso que os burocratas de nível de rua devem ser treinados e capacitados constantemente para aprender a exercer sua função (que pode mudar ao longo do tempo). Devem ser sensibilizados para adquirem um ethos do serviço público. Devem passar por processos de reflexão e sensibilização para aprenderem a identificar seus estereótipos e a controlá-los. E, claro, também devem ser avaliados, incentivados e punidos quando couber. A gestão cotidiana dessas pessoas é tarefa fundamental para garantir que as políticas públicas sejam bem implementadas. 

Estas discussões remetem a uma quarta questão-chave para pensar a gestão da linha de frente: o papel dos gestores. A literatura especializada denomina os gestores diretos dos burocratas de nível de rua como street-level managers, ou seja, gestores da linha de frente, termo definido por Gassner e Gofen (2018). Eles são os diretores de escola, delegados da polícia, diretores de hospitais e unidades de saúde. E a função desses profissionais é servir de intermediário entre o alto escalão das políticas e os burocratas de nível de rua. Eles gerenciam equipamentos públicos que entregam serviços a um grupo real, concreto e específico de cidadãos. Assim, diferente do alto escalão, os gestores da linha de frente têm uma relação mais direta e concreta com um grupo de cidadãos – que pode ter características específicas e diferentes de outros equipamentos públicos. Mas, ao mesmo tempo, não fazem (em geral) os atendimentos específicos. Assim, diferente dos burocratas de nível de rua, os gerentes não lidam com pessoas únicas, mas sim com grupos de pessoas, que definimos aqui de “clientelas”. As clientelas têm características abrangentes, “médias”, que são mais representativas da realidade – comparando com o que o alto escalão enxerga – mas menos individualizadas – comparando com o que os burocratas de nível de rua enxergam. Os gerentes de nível de rua precisam, portanto, de habilidades diferentes e específicas. Devem aprender a ler e tomar decisões para esta “clientela” sem deixar que pessoas que saem da média sejam excluídas dos serviços. Ao mesmo tempo, precisam se preocupar com diversas questões que, em geral, não são centrais para os burocratas de nível de rua, como os recursos públicos, metas gerais, leis, sistemas de controle etc. 

IMPACTO NA QUALIDADE DO SERVIÇO

Os gerentes de nível de rua são, portanto, gestores de pessoas (os burocratas de nível de rua) e gestores de equipamentos públicos (com seus recursos, regras e controles). E, assim como vimos no caso dos burocratas de nível de rua, não nascem sabendo exercer suas funções. Muitas vezes estes gerentes são escolhidos entre os próprios burocratas de nível de rua – o professor que vira diretor da escola, a enfermeira que vira gerente da unidade de saúde. Um gerente que já foi burocrata de nível de rua tem como grande vantagem o fato de conhecer a realidade da linha de frente e poder tomar decisões coerentes com suas necessidades. Por outro lado, existe uma máxima na administração que também se aplica aqui: um ótimo técnico pode virar um péssimo gerente. Um excelente professor pode virar um péssimo diretor porque as habilidades requeridas para ser diretor são diferentes daquelas necessárias a um professor. 

Assim como a burocracia de nível de rua precisa ser formada, treinada, capacitada, o mesmo acontece com os gerentes do nível de rua. Eles precisam ser bem selecionados, treinados e capacitados para se tornarem bons gerentes. Os governos precisam identificar quais são as competências requeridas para um gerente de nível de rua, criar programas de seleção compatíveis, formar e adequar os programas de educação continuada, incentivos e punições para estas competências. Sem um bom gerente no nível de rua, dificilmente teremos uma boa burocracia de nível de rua. Investir na formação desse exército de pessoas do serviço público é fundamental se quisermos melhorar a qualidade e efetividade das nossas políticas públicas. 

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Gabriela Lotta
Professora de Administração Pública da FGV, professora visitante de Oxford, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole e do Brazil.Lab da Universidade de Princeton. Doutora em Ciência Política. Professora visitante de Oxford em 2021.

Inscreva-se na nossa newsletter