Em 2023, a temática dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) ocupou os noticiários, especialmente devido à crise humanitária no território Yanomami – que revelou o descaso e a ausência de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, especialmente durante o Governo Bolsonaro (2019-2022) – e, mais recentemente, com o debate político em torno do Projeto de Lei n. 490/07, que, se aprovado, fixará a tese do Marco Temporal. 

Apesar do importante processo de institucionalização das questões que afetam diretamente os PCTs, com a criação, por exemplo, do Ministério dos Povos Indígenas e da Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos (SQPT), no âmbito do Ministério da Igualdade Racial (MIR), sabemos que há muito a ser feito para garantir avanços na consolidação de direitos e, sobretudo, para reverter anos de retrocesso e descaso.  

Ainda que o desafio nos pareça excessivamente árduo, é essencial que qualquer tentativa de endereçar ou construir propostas de políticas públicas específicas e suficientes para os PCTs passe pela sua escuta e participação social. Como nos ensina Silva (2022)1, é imprescindível enxergar os povos e comunidades tradicionais como agentes ativos, com participação decisiva nas construções conceituais para o enfrentamento dos problemas públicos que os afetam.

Tal proposição é convergente com o previsto na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que entrou em vigor internacionalmente em 5 de setembro de 1991. No Brasil, o cumprimento dessa Convenção foi determinado pelo Decreto Presidencial n. 5.051, de 19 de abril de 2004. Ao utilizar o termo “povos indígenas ou tribais”, a Convenção não quer dizer que eles vivem em tribos, mas que preenchem condições mais amplas, , ou seja: estilos de vida tradicionais; cultura e modo de vida diferentes dos outros setores da sociedade nacional; costumes e formas de viver e trabalhar diferentes; e leis especiais que só se aplicam a eles.

Sem a pretensão de oferecer uma resposta pronta ou simplista para uma questão complexa, mas com o objetivo de trazer elementos que contribuam para a construção de caminhos possíveis, apresentamos, aqui, um processo participativo em curso no estado de Minas Gerais. Iniciada em julho de 2022, a Consulta Popular específica para PCTs se insere no processo de execução do Acordo Judicial de Reparação dos danos causados pelo rompimento das barragens da Vale S.A. em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019.

É importante contextualizar que, além das 272 mortes, o desastre causou danos e impactos socioeconômicos e ambientais que foram sentidos fortemente pelas comunidades tradicionais, cujos modos de vida, de bem-estar social e de produção e comercialização são profundamente vinculados ao território, à terra e à água do rio, que tiveram seu uso suspenso. Outras dimensões essenciais da vida dessas comunidades tradicionais também estão intimamente ligadas ao meio ambiente, como é o caso de manifestações culturais e religiosas, partes fundamentais de suas identidades.

Destaca-se que, para a definição de projetos socioeconômicos em prol dos 26 municípios atingidos – com investimentos previstos de R$ 4 bilhões – foi realizado um processo de Consulta Popular. Em uma primeira etapa, a população atingida enviou mais de 2 mil propostas para complementar a carteira de projetos já prevista e, em seguida, foi consultada sobre as prioridades de cada município, por meio de um aplicativo digital. Deste processo já foram selecionados 131 projetos para detalhamento, sendo que cerca de 50 já estão em execução. 

Posteriormente, houve uma segunda rodada de consulta, voltada especificamente para as comunidades autodeclaradas como PCTs nestes municípios. Com metodologia própria e prazos estendidos – definidos em conjunto com as comunidades -, que visam a resguardar a Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) e a observância dos protocolos específicos de cada comunidade, essa etapa da consulta não foi realizada de maneira virtual e contou com a participação de cerca de 50 comunidades. 

Em termos de governança, o processo prevê que as instituições responsáveis – Ministério Público Federal, Governo do Estado, Defensoria Pública e Ministério Público de Minas Gerais – definirão, em convergência com as prioridades indicadas e em alinhamento com as prefeituras municipais, projetos e políticas públicas a serem detalhados e implementados pela empresa poluidora nos municípios atingidos. Uma vez definido um projeto pelas instituições responsáveis, este será validado pelas comunidades, que deverão elaborar um documento orientativo para subsidiar o desenho inicial do projeto. Além disso, as comunidades participarão do processo de detalhamento das iniciativas, de modo a garantir o alinhamento da formulação dos projetos às demandas e necessidades do público-alvo. 

Também constituem agentes relevantes nesse processo as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), que são organizações eleitas para garantir a participação informada e o assessoramento técnico e jurídico das comunidades. No âmbito da Consulta Popular para PCTs, são responsáveis por oferecer apoio e realizar a mediação para contatos e diálogos com as lideranças comunitárias, visando a garantir o respeito às especificidades de cada comunidade durante qualquer interação no que diz respeito a prazos, formas de contato e organização, feriados, festividades ou datas religiosas, entre outros.

Até o momento, foram definidos 16 projetos, que visam ao fortalecimento do serviço público nos municípios atingidos, mas com foco nas questões mais relevantes e urgentes aos olhos dos povos e comunidades que serão beneficiários das políticas públicas a serem implementadas.

Seria ingênuo e incorreto acreditar que o processo de consulta realizado e até mesmo a implementação dos projetos dele decorrentes serão capazes de resolver problemas sociais históricos e multifacetados vivenciados pelas comunidades tradicionais dos territórios atingidos pelo rompimento. Também não seria realista a expectativa de que tais projetos, por si só, garantirão a reparação integral de todos os prejuízos causados pelo desastre. 

Contudo, o impacto limitado da experiência não invalida e nem reduz sua importância, sendo digna de nota a relevância da experiência aqui discutida. Isso, porque a Consulta Popular garante recursos para abarcar a elaboração participativa de projetos prioritários com base na escuta e na participação ativa das próprias comunidades na validação das iniciativas e no detalhamento dos escopos a serem implementados. Portanto, entende-se que o caso em tela pode suscitar questões e proposições necessárias à ampliação e consolidação de processos participativos similares, os quais, no atual cenário, são indispensáveis para o enfrentamento das desigualdades sociais e territoriais enraizadas em toda a sociedade brasileira e que impactam sobremaneira os povos e comunidades tradicionais.

Referências Bibliográficas

 1Silva, Breno Trindade da (2022). “Povos e Comunidades Tradicionais: algumas considerações sobre processos políticos e ecológicos”. Em Sociedade. Revista do Departamento de Ciências Sociais – Puc Minas – V.4, N. 01 (2022).

A nota é de responsabilidade dos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais eles estão vinculados.

Renata Bernardo

Mestre em Políticas Públicas e Administração pela London School of Economics (2009), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007) e em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2005). Desde 2005, integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Minas Gerais. Há dois anos atua como Coordenadora Adjunta do Comitê Gestor Pró-Brumadinho, vinculado à Secretaria de Planejamento e Gestão, para coordenar e supervisionar o planejamento e a implementação do Acordo Judicial de Reparação do desastre de Brumadinho.

Fernando Resende Anelli

Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Especialista em Poder Legislativo e Políticas Públicas pela Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ELE-ALMG) e Bacharel em Administração Pública pela Escola de Governo Prof. Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro (EG-FJP). Coordenador do Núcleo de Articulação Social do Comitê Pró-Brumadinho (NAS-CPB) - Gabinete Adjunto da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (SEPLAG) do Governo de Minas Gerais.

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