Por Gabriela Lotta

Uma das grandes conquistas do processo de redemocratização do Brasil foi garantir, na Constituição Federal de 1988, uma série de direitos sociais como saúde, educação, segurança, assistência, entre vários outros. Em um país tão desigual e que carrega índices alarmantes de pobreza e desassistência, estes direitos são essenciais para garantir o desenvolvimento do país e o bem-estar dos cidadãos. No entanto, colocar direitos na Constituição é só o primeiro passo para esta garantia de bem-estar. Para ter efeitos, os direitos precisam se materializar em serviços públicos concretos que precisam ser entregues a uma população real com nome, idade, cor, demandas e necessidades. Direito à educação precisa virar aula dada (e aprendida!). Direito à saúde precisa virar consulta, exame, vacina etc. 

Índice
Burocratas de Nível de Rua – BNR
Ações concretas e o paradoxo da ação estatal
O resultado da política pública

Burocratas de Nível de Rua – BNR

A garantia dos direitos passa, portanto, pela materialização de serviços. E a materialização de serviços, por sua vez, depende das pessoas que irão prestar os serviços no contato direto com os cidadãos – como os professores, os médicos, as enfermeiras, os policiais, para citar apenas alguns. Na literatura de políticas públicas, denominamos este conjunto de profissionais que fazem atendimento ao cidadão de burocratas de nível de rua, ou profissionais da linha de frente. O conceito de “Burocratas de Nível de Rua” (BNR) ficou mundialmente conhecido no livro de Michael Lispky de 1980, Street-level Bureaucracy. Neste livro, traduzido em 2019 para português e disponível gratuitamente pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap), o autor analisa o que há de comum entre os vários tipos de profissionais do serviço público que interagem com usuários durante a entrega dos serviços. Estes profissionais são, numericamente, a maioria dos funcionários públicos e chegam a ocupar mais de 70% dos postos em gestões municipais. Ao mesmo tempo, eles em geral recebem os piores salários, são os profissionais menos valorizados e escutados, e muitas vezes recebem menor investimento em formação e desenvolvimento profissional.

Mas, considerando o lugar que ocupam no serviço público e sua importância para a garantia de direitos, é essencial conhecermos melhor sua atuação. Neste sentido, Lispky demonstra como, embora trabalhando em políticas muito diferentes, há vários elementos em comum entre o trabalho de policiais, professores, profissionais de saúde, profissionais da assistência, entre outros. 

Em primeiro lugar, estes profissionais são todos responsáveis pelas interações cotidianas do Estado com usuários e realizam, de fato, a entrega de serviços. Por isso, eles têm o poder de determinar o acesso do público a direitos e benefícios governamentais. É por meio deles que a população consegue acessar a administração pública. Ao mesmo tempo, e por serem a interface mais visível do Estado, estes burocratas materializam a imagem que os cidadãos têm sobre o governo – seja de forma positiva ou negativa. 

Ações concretas e o paradoxo da ação estatal

Em segundo lugar, estes profissionais têm o papel de transformar regras abrangentes, abstratas e contraditórias em ações concretas dentro de contextos com situações imprevisíveis e recursos escassos. Por exemplo, o professor precisa transformar o “direito à educação” em uma aula concreta para um grupo de alunos variados (muitas vezes incontroláveis), em uma situação imprevisível e, em geral, em um contexto de escassez de recursos. Outro exemplo: o policial precisa decidir como agir em uma situação potencialmente arriscada, na qual ele não tem todas as informações, não sabe a consequência de seus atos e não tem controle sobre as reações dos cidadãos. Imaginem ainda um agente comunitário de saúde que faz, diariamente, dezenas de visitas domiciliares em casas diversificadas, nas quais ele não controla os pacientes, não sabe como se comportarão e não consegue prever que situação encontrará. Ou seja, estes profissionais desempenham um trabalho altamente criativo, imprevisível e potencialmente incontrolável. E eles fazem tudo isso exercendo o que a literatura denomina de discricionariedade, que é a margem de liberdade para tomada de decisão que eles precisam ter para conseguirem, juntamente, adaptar as regras à situação real (e imprevisível) que encontram. 

Em terceiro lugar, estes profissionais sofrem cotidianamente um grande paradoxo da ação estatal. Eles são, ao mesmo tempo, pressionados pelas demandas de serviços a aumentarem eficiência e responsividade (o chefe pressiona para serem mais produtivos, o Estado pressiona para gastarem menos). Mas também são pressionados pelos usuários do serviço para terem um tratamento individualizado e resolutivo (paciente pede mais tempo, aluno pede mais atenção). As duas pressões são potencialmente contraditórias, na medida em que a primeira foca na produtividade, rapidez e eficiência, e a segunda foca na individualidade, personalização, efetividade e no tempo para resolver os problemas. Para lidar com esta dupla pressão, os BNR desenvolvem sistemas de enfrentamento da pressão, denominados de coping pela literatura. São exemplos destes sistemas: priorizar usuários mais fáceis; enviesar a seleção; despersonalizar o tratamento, entre outros. Estes sistemas de enfrentamento fazem parte do cotidiano das políticas públicas e são agravados na medida em que os recursos ficam mais escassos.

O resultado da política pública

Estes exemplos mostram como o cotidiano de trabalho dos burocratas de nível de rua é marcado por diversas situações imprevisíveis em que, no contato com usuários, eles precisam tomar importantes decisões sobre as políticas públicas e sobre a vida destas pessoas. Eles tomam essas decisões utilizando sua discricionariedade na interação concreta com usuários. E o resultado de sua decisão vira, ao fim e ao cabo, o resultado da política pública. Por isso, embora tão invisíveis no cotidiano da gestão, os burocratas de nível de rua deveriam ser ponto fundamental de atenção de gestores preocupados em melhorar o acesso e a qualidade dos serviços públicos. 

Ao longo de uma série de mais cinco textos, analisaremos melhor como estes burocratas de nível de rua trabalham e quais devem ser os pontos de atenção gerencial para garantir que, por meio deles, a população possa ter acesso a serviços de qualidade e que se voltem à equidade do atendimento.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Gabriela Lotta
Professora de Administração Pública da FGV, professora visitante de Oxford, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole e do Brazil.Lab da Universidade de Princeton. Doutora em Ciência Política.

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