Índice
Atualização dos desafios para a formação continuada no Brasil: caminhos possíveis
Proibição de celulares: um desafio docente
Valorização docente: políticas além da formação
Resumo
O texto reflete sobre a proibição do uso de celulares nas escolas e a valorização docente no Brasil. Relata a experiência de educadores em uma formação imersiva nos EUA, destacando o impacto positivo da inovação pedagógica e do uso intencional da tecnologia no ensino. No entanto, ressalta os desafios estruturais da educação pública, como falta de recursos e desvalorização dos professores. A proibição dos celulares traz benefícios, mas evidencia a necessidade de metodologias ativas para engajar alunos. A valorização docente exige mais que formação: requer infraestrutura, salários dignos e apoio pedagógico, colocando o papel das políticas públicas no centro do debate.
Estamos em 2023. Um grupo de brasileiros avança no saguão de um prédio antigo e bem conservado, em um dos bairros de Manhattan, em Nova Iorque. Enquanto aguardavam na fila para fazer a identificação estudantil, olhavam admirados a grandiosidade do corredor com altíssimo pé direito. Um outro brasileiro os aguardava para conduzi-los pelos corredores do prestigiado Teachers College, da Universidade de Columbia. Corredores dignos de filme, diga-se de passagem. O prédio, em estilo neogótico, os convidava para um passeio turístico. No entanto, o grupo composto por educadores de uma rede pública de ensino, tinha um destino específico: participar de uma formação imersiva no Laboratório de Tecnologias Educacionais Transformadoras.
Professores e diretores escolares, com idades que variavam entre 30 e 65 anos, foram lançados ao desafio de criar, ao longo daquela semana, sequências didáticas envolvendo STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática) e o uso de metodologias ativas de ensino-aprendizagem1, ou seja, precisariam desenvolver um planejamento estruturado para ministrarem um conjunto de aulas com um objetivo de aprendizagem específico. No início, algumas pessoas foram resistentes, outras apresentavam dificuldades genuínas em relação à proposta, mas, ao final, o sentimento que compartilharam era de que haviam construído lá, em Nova Iorque, uma verdadeira comunidade de aprendizado2, que transformou não apenas a visão deles sobre a importância de um bom professor em sala de aula, mas os fez ultrapassar um complexo e temido desafio da docência: aquela imersão revolucionou, profundamente, a prática pedagógica de todos aqueles educadores.
Ao final do curso, o grupo confessava, emocionado, a saudade. Dos alunos, do cheiro da escola, e até do café forte da sala de professores. Manifestavam, ainda emocionados, o sentimento de valorização que sentiam com aquela oportunidade – contrastando o fato de que, hoje, 85%3 dos professores discordam da afirmação “a profissão de professor é valorizada pela sociedade”. Compartilhavam, inspirados, o quanto estavam empolgados e ansiosos para chegar em suas escolas e compartilhar o aprendizado com os demais professores, demonstrando como o bom uso de recursos tecnológicos pode potencializar a prática pedagógica e pôr abaixo a visão limitante sobre o uso de dispositivos tecnológicos no contexto educacional. Conscientes da potência do trabalho que haviam desenvolvido e que ainda poderiam desenvolver, estavam convictos de que poderiam impactar aquela comunidade escolar, de ensinar de um jeito diferente, de pegar aquele aluno – que estava prestes a evadir – pela mão e ensinar tudo o que ele ainda não havia conseguido aprender. Aquela formação foi uma prova de que o entusiasmo é mesmo criado pelo esforço coletivo4.
Inspirados mas, nem por isso, ingênuos. Sabiam da realidade que os aguardavam: a falta de recursos, o perigo das áreas de conflito, a violência em sala de aula, a falta de reconhecimento e valorização (FACCI, 2019)5. Desafios estruturais que uma formação de uma semana, por mais impactante que fosse, não resolveria. Reside aí, também, a importância de uma boa formação: repertoriar os educadores de estratégias e ferramentas pedagógicas (e, por que não dizer, psicológicas?) que os façam contornar o que é possível de ser contornado e alargar o horizonte de experiências para que possam ver e mostrar um novo mundo de possibilidades (BZUNECK, 1999)6. Sem ingenuidades, pegando aquilo que conhecem a fundo, seus alunos e sua escola, e extraindo o que há de melhor.
Atualização dos desafios para a formação continuada no Brasil: caminhos possíveis
O acesso a experiências formativas de qualidade ainda é um desafio para a maioria dos educadores brasileiros. A realidade das redes públicas de ensino muitas vezes impõe limitações estruturais, orçamentárias e institucionais que dificultam a implementação de formações continuadas que realmente preparem os professores para enfrentar os desafios do cotidiano escolar, em especial, em resposta às demandas educacionais das gerações Z7 e Alpha, compostas por indivíduos altamente conectados, com necessidade de aprendizagem personalizada e, preferencialmente, integrada à tecnologia.
São poucas as redes de ensino que disponibilizam recursos ou capacidade institucional8 para enviar um grupo de docentes para fora do país para fazer um curso imersivo tão transformador9 como aquele em uma universidade de renome. Mas os quadros técnicos que compõem as escolas de formação de professores contam com formadores, em sua imensa maioria, professores concursados, com anos de experiência em gestão da sala de aula – ou, quem sabe até recém licenciados – verdadeiras “pratas da casa”, imbuídos da missão de transformar a vida dos estudantes por meio da capacitação e formação de professores.
Não nos faltam inspirações e bons modelos. A cidade do Rio de Janeiro tem hoje 200 Ginásios Educacionais Tecnológicos10, que têm como principal ferramenta de ensino o uso da tecnologia, com tablets, impressoras 3D, máquinas de costura e, inclusive, celulares. Mas não são os recursos tecnológicos que fazem a diferença. Uma sala de informática não funciona sem o professor de informática. Da mesma forma, os chamados “colaboratórios” não funcionam sem o Professor Articulador (PA), que é responsável por integrar pedagogicamente a escola, fazendo com que professores de áreas diferentes consigam pensar sequências didáticas juntos, potencializando o aprendizado dos estudantes, por meio de metodologias como o Aprendizado por Projetos (ApP).
A rede de ensino do Rio oferece aos PAs uma formação que combina encontros presenciais e remotos, em que o principal ganho é a oportunidade de colocar a mão na massa, trocar experiências com outros professores e desenvolver as atividades em grupo, da mesma forma que passarão a fazer com seus estudantes. Em Educação, chamamos isso de homologia de processos, um conceito que quando aplicado em processos formativos resulta na ampliação e diversificação da forma de ensinar, e na promoção do aprendizado contextualizado e vivencial. Estamos falando de um uso pedagógico intencional da tecnologia, que acaba se tornando acessória, e não o centro do processo de aprendizagem, que deve ser o estudante. É a formação continuada que está consolidando um novo paradigma de ensino-aprendizagem na capital.
Proibição de celulares: um desafio docente
O ano é 2025. A proibição nacional dos celulares nas escolas públicas e privadas11 no Brasil escancara uma crise no processo de ensino-aprendizagem nas salas de aulas. Não restam dúvidas sobre os benefícios12 para os estudantes, como questões relacionadas à sociabilidade e maior capacidade de concentração. O resultado da proibição? Vontade de aprender. As notas, que seguem melhorando gradativamente – é o que dizem os professores (e estudantes) das escolas onde a proibição do uso dos celulares já é uma realidade13 -, aumentam a autoestima intelectual do estudante14, que sente mais vontade de continuar aprendendo15. É um ciclo virtuoso. No entanto, estamos falando de uma geração com necessidade de estratégias pedagógicas que fomentem o aprendizado ativo, que façam com que o estudante mantenha a cabeça dentro da sala de aula. Afinal, como prender a atenção dos estudantes que consomem vídeos de curtíssima duração?
A proibição reforça a necessidade do compromisso dos professores em inovar no modo de ensinar – e de aprender. Sim, professores precisam seguir aprendendo. Parece tão óbvio quanto é desafiador. Brasil adentro, os programas de formação continuada para professores das redes públicas de ensino encaram dois grandes desafios: engajamento e qualidade. Vogt (2024) aponta que muitos docentes participam de cursos visando progressão na carreira ou melhorias salariais, mas nem sempre essas formações resultam em práticas pedagógicas mais eficazes, e isso resulta da qualidade das formações ofertadas que, segundo o autor, carecem de solidez e inovação para atender às demandas reais da sala de aula, ou seja, as formações ofertadas não são atrativas para os docentes.
Valorização docente: políticas além da formação
A formação continuada de qualidade é essencial para que os professores possam adaptar suas metodologias às mudanças no perfil dos estudantes e às demandas contemporâneas da educação. Os casos apresentados neste texto são um ótimo exemplo de políticas de formação continuada. Contudo, é imprudente – e desleal – dissociar essa discussão de um aspecto mais abrangente e, igualmente, essencial: as políticas de valorização docente no Brasil. A Lei Federal nº 14.817, de 17 de janeiro de 2024, que estabelece diretrizes para a valorização dos profissionais da educação básica pública, prevê planos de carreira e condições adequadas de trabalho. No entanto, a efetividade dessas políticas depende da atuação diligente dos secretários de educação, que precisam ir além do cumprimento normativo, estruturando estratégias condizentes com a realidade de cada rede de ensino. Isso significa garantir infraestrutura escolar adequada, carga horária justa, apoio pedagógico contínuo, salários compatíveis e, claro, programas de formação continuada que realmente impactem a prática pedagógica dos educadores.
No fim das contas, a proibição dos celulares escancara a urgência de um novo paradigma na implementação das políticas de valorização de professores no Brasil. A valorização dos profissionais da educação vai além das políticas formativas e remuneratórias, trata-se de assegurar salas de aula bem equipadas, materiais didáticos atualizados, número de alunos por turma que respeite os limites pedagógicos e apoio psicológico para enfrentar os desafios diários da profissão. Portanto, cabe às secretarias de educação garantir que essas iniciativas sejam viáveis, bem planejadas e implementadas, com intencionalidade e aporte adequado de recursos. É no chão da sala de aula que os novos paradigmas educacionais se consolidam, e sem políticas estruturadas para apoiar os professores, qualquer reforma educacional se tornará inócua.
A pergunta que fica é: E agora, secretário?
Referências Bibliográficas
1 As metodologias ativas de ensino-aprendizagem são formas de ensinar que fazem o aluno aprender de maneira mais participativa e prática, em vez de apenas ouvir o professor falar. A ideia é que o aluno explore, questione e resolva desafios para realmente entender o conteúdo, tornando o aprendizado mais interessante e eficaz.
2 A comunidade de aprendizagem, segundo Paulo Freire, é um espaço coletivo e dialógico onde educadores e educandos constroem conhecimento de forma crítica e libertadora, problematizando a realidade para transformar a sociedade. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 68. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
3 QEdu. Questionário do Professor. Censo da Educação Básica (2023). Disponível em: https://qedu.org.br/questionarios-saeb/professores/7-brasil . BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 29 jan. 2025.
4 FACCI, M. G. D. O adoecimento do professor frente à violência na escola. Fractal: Revista de Psicologia, v. 31, n. 2, p. 130-142, 30 jul. 2019.
5 BZUNECK, José Aloyseo. “A Psicologia Educacional e a Formação de Professores.” Psicologia Escolar e Educacional, vol. 3, no. 1, 1999, pp. 55-64. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pee/a/pWcbh3sFHzm7vdM3g3PbPRP/?format=pdf. Acesso em: 28 jan. 2025.
6 HOOKS, bell. Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática da Liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
7 Gerações em idade escolar atualmente. Segundo levantamento realizado por DO ESPÍRITO SANTO et al. (2021), 90% dos estudantes fazem o uso de meios tecnológicos.
8 FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO (FNDE). Melhoria da qualidade da educação no Brasil por meio do fortalecimento institucional do FNDE em seu papel para o alcance das metas do PNE. Brasília: FNDE, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/estrategia-governanca/cooperacao-internacional/oei_brz_21_002.pdf. Acesso em: 30 jan. 2025.
9 Para Vogt (2024), formações presenciais proporcionam interações diretas e imediatas entre formadores e professores, facilitando a troca de experiências e o desenvolvimento de habilidades práticas que são essenciais para a prática docente.
10 G1. Paes promete 300 ginásios tecnológicos e 75% dos colégios em tempo integral: “Criança da escola pública precisa de atenção”. G1 – Eleições 2024, Rio de Janeiro, 28 ago. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2024/noticia/2024/08/28/paes-promete-300-ginasios-tecnologicos-e-75percent-dos-colegios-em-tempo-integral-crianca-da-escola-publica-precisa-de-atencao.ghtml. Acesso em: 28 jan. 2025.
11 BRASIL. Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025. Restringe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis em estabelecimentos de ensino da educação básica. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 14 jan. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/sancionada-lei-que-restringe-uso-de-celulares-nas-escolas?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 28 jan. 2025
12 UNESCO. Relatório de Monitoramento Global da Educação, 2023: a tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem? Paris: UNESCO, 2023. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386147_por. Acesso em: 29 jan. 2025.VOGT, F. P. (2024). A Eficiência e Eficácia da Formação Docente em Virtude do Trabalho Pedagógico.Revista Contemporânea, 4(2), 1-20. Disponível em: https://ojs.revistacontemporanea.com/ojs/index.php/home/article/download/3427/2630/10184
13 MATTOS, Laura. Jovens relatam melhora nos estudos e nas conversas após veto a celular na escola. Folha de S.Paulo, São Paulo, 4 set. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/09/jovens-relatam-melhora-nos-estudos-e-nas-conversas-apos-veto-a-celular-na-escola.shtml. Acesso em: 29 jan. 2025.
14 De acordo com Horta (2019), a autoestima exerce influência positiva na trajetória e no rendimento escolar dos estudante, podendo ser fortalecida ao longo do tempo, sendo o apoio da família, dos professores e da escola um fator essencial para seu desenvolvimento.
15 Para D’Inca Marrone e Hutz (2019), estudantes que fundamentam sua autoestima em aspectos internos, como crescimento pessoal, autorrealização e desenvolvimento de competências, apresentam maior equilíbrio emocional e motivação para estudar. D’INCAO MARRONE, D. B.; HUTZ, C. S. Motivação Acadêmica e Autoestima Contingente: Relação com Satisfação de Vida, Esperança e Otimismo. Avaliação Psicológica, v. 18, n. 4, p. 421-430, out./dez. 2019. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1677-04712019000400011&script=sci_arttext. Acesso em: 28 jan. 2025.
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