Índice
Comitê Gestor Pró-Brumadinho
Reparações
Interação

Em 25 de janeiro de 2019, ocorreu o rompimento das barragens da Mina Córrego do Feijão, da Vale S.A., em Brumadinho (MG), que causou 272 mortes e carreou cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minérios de ferro pela calha do Rio Paraopeba, atingindo diretamente 26 municípios e impactando todo o estado de Minas Gerais.

Buscando garantir uma reparação integral, célere e efetiva, evitando-se longas batalhas judiciais, foi celebrado, em 4 de fevereiro de 2021, com mediação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), um acordo judicial entre o estado de Minas Gerais, o Ministério Público de Minas Gerais, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública de Minas Gerais — compromitentes — e a Vale S.A. — compromissária.

Com valor global de R$ 37,68 bilhões, esse acordo contempla a reparação de danos coletivos e difusos, não abarcando as indenizações individuais nem as ações criminais, cujos processos continuam correndo normalmente.

Mas a celebração de um acordo, por si só, não é suficiente para garantir que sua execução ocorrerá da maneira adequada. Ainda que se tenha um instrumento com premissas claras e ainda que haja disposição das partes, diversos fatores influenciam sua implementação. Dentre eles estão os arranjos institucionais estabelecidos, as interações estabelecidas para a solução de problemas e a tomada de decisão. 

Segundo Pires e Gomide (2016)[1], os arranjos institucionais podem ser entendidos como “o conjunto de regras, mecanismos e processos que definem a forma particular como se coordenam atores e interesses na implementação de uma política pública específica”. A partir das interações entre esses atores, ocorre uma soma de esforços e conhecimento, que fornece novas perspectivas para a formulação de soluções e confere maior legitimidade ao processo decisório. Contudo, também é nessas interações que ficam evidenciadas as divergências que decorrem das complexas e distintas competências institucionais, bem como as diferentes posturas e visões sobre o problema e sua solução, podendo levar à baixa eficiência do processo decisório.  

No caso específico em análise, o próprio acordo de reparação instituiu um colegiado de representantes das quatro instituições compromitentes, que é responsável por deliberar, de maneira colegiada, as principais questões relativas à execução do instrumento, bem como por conceder a quitação das obrigações da empresa, cuja execução é fiscalizada por auditorias externas independentes.

Ao estabelecer uma estrutura de governança simples, o acordo pretendeu garantir a agilidade e efetividade do processo de tomada de decisão e, consequentemente, de implementação das medidas de reparação. No entanto, destaca-se que a atuação conjunta dessas instituições tem demandado a criação de fluxos e procedimentos inovadores, que permitam a cooperação e coordenação, sem prejuízo de suas competências legais e de sua autonomia. Quase dois anos após a celebração do acordo, nota-se que, apesar do volume extremo de temas e de demandas – que se somam às demais atribuições institucionais dos representantes -, as relações de confiança vêm sendo reforçadas e o nível de empenho e comprometimento das instituições vem sendo mantido.

Outra importante estrutura prevista no próprio acordo, que impacta a lógica de governança, é a secretaria executiva, responsável por articular as ações do colegiado de compromitentes, que é exercida pelo Poder Executivo estadual. A partir de uma dinâmica de reuniões ordinárias semanais ou reuniões extraordinárias — conforme a necessidade —, com pauta previamente estabelecida pela secretaria, o colegiado analisa as demandas apresentadas pelos diversos stakeholders envolvidos no processo de reparação, formulando deliberações e propondo encaminhamentos tempestivos, fundamentados em análises técnicas e manifestações dos órgãos competentes ou das auditorias independentes. 

Por meio de um diálogo intenso, a secretaria executiva forma a pauta e propõe o ritmo do processo decisório. Destaca-se que, para que sua atuação seja efetiva, é fundamental a capacidade de articulação de todos os atores envolvidos em cada tema a ser pautado, com o alinhamento prévio de posicionamentos, identificação de pontos de dúvida ou de resistência e formulação de informações técnicas de qualidade para subsidiar a tomada de decisão. Dessa forma, a cada encontro, os compromitentes conseguem compreender os temas que estão sendo postos para decisão, os problemas e as propostas de solução, buscando decisões consensuais ou, se necessário, por votação e obtenção de maioria, sempre tendo como premissa a importância do alinhamento dos posicionamentos.

Comitê gestor Pró-Brumadinho

Do ponto de vista da governança interna, o governo do estado de Minas Gerais estabeleceu o Comitê Gestor Pró-Brumadinho, imediatamente após o rompimento, para coordenar as ações de reparação em âmbito estadual. Sua composição e competências foram reformuladas com a celebração do acordo Judicial e, hoje, tem por finalidade coordenar, sistematizar e supervisionar o planejamento e a implementação das medidas fixadas no referido acordo junto aos órgãos e entidades do Poder Executivo estadual. O comitê conta com um Conselho Superior, que é responsável por definir diretrizes estratégicas para a execução do acordo judicial e é presidido pelo governador.

Além disso, o Comitê conta com uma coordenação geral, para acompanhar, apoiar e consolidar informações referentes à atuação dos órgãos e entidades e demais atores envolvidos no processo de reparação, por meio dos seus núcleos temáticos e assessorias.

Destaca-se que o acordo impõe à Vale S.A. diversas obrigações, estabelecendo um importante papel da empresa na implementação de projetos socioeconômicos e socioambientais, que serão descritos a seguir. Considerando que tais projetos têm por premissa o atendimento a toda a coletividade atingida, impõe-se à empresa poluidora a obrigação de executar ações que envolvem políticas públicas. Nesse sentido, ficam evidenciadas duas interações imprescindíveis. A primeira é com os órgãos públicos estaduais e municipais competentes, responsáveis pela orientação e acompanhamento técnico, que visa resguardar a eficiência e legalidade, bem como a viabilidade técnica e financeira destas políticas públicas. A segunda é com as auditorias externas independentes, responsáveis por fiscalizar o adequado cumprimento das obrigações estabelecidas no acordo.

Reparações

No tema da reparação socioeconômica, foi definida a obrigação de pagar R$ 3 bilhões para projetos que serão elaborados de forma participativa pelas pessoas atingidas e de R$ 4,4 bilhões para um amplo programa de transferência de renda, ambos coordenados pelas Instituições de Justiça (MPMG, MPF e DPMG). Também foi definida a obrigação de implementar diversos projetos socioeconômicos – nas áreas de saúde, infraestrutura, desenvolvimento social, entre diversas outras – que visam garantir o fortalecimento dos serviços públicos nos municípios atingidos. Para tais projetos foram destinados R$ 1,5 bilhão para Brumadinho e R$ 2,5 bilhões para os outros 25 municípios atingidos. 

O acordo também definiu medidas de reparação socioambiental, cuja execução é de responsabilidade da Vale, com fiscalização de uma auditoria independente e aprovações pelos órgãos ambientais competentes. As medidas vão desde a recuperação integral do meio ambiente – que não está sujeita a teto de gastos e deverá ser integralmente custeada pela Vale até que os indicadores aprovados pelos compromitentes sejam alcançados — até a execução de medidas compensatórias, no valor de R$ 3,6 bilhões, tais como a universalização do saneamento básico nos municípios atingidos e a destinação de recursos para execução de obras de segurança hídrica.

Também foram previstos valores a título de compensação para o fortalecimento dos serviços públicos de todo o estado de Minas Gerais, que também foram afetados pelo rompimento. Para tanto, o acordo prevê que a Vale terá que pagar R$ 4,95 bilhões para projetos de mobilidade e R$ 3,65 bilhões para diversas ações em áreas como saúde, segurança, desenvolvimento social e diversas outras. A execução desses projetos pelo governo do estado é coordenada pelo Comitê Gestor Pró-Brumadinho e envolve articulação contínua dos órgãos e entidades estaduais para apoiar, acompanhar e consolidar informações da implementação das políticas públicas. Além disso, este formato de execução demanda uma interlocução ativa e permanente com órgãos de controle interno, com o Tribunal de Contas do Estado e com o Poder Legislativo. 

Outro aspecto relevante é que o acordo tem como premissa a centralidade das pessoas atingidas e, nesse sentido, prevê a participação direta destas na construção da governança e possuem a participação garantida na proposição, formulação, execução, acompanhamento e avaliação em projetos que totalizam R$ 3 bilhões. As comunidades atingidas também participaram ativamente na elaboração de mais de duas mil propostas de projetos, que foram submetidos a um amplo processo de consulta popular. A partir dessa consulta, foram identificadas as prioridades para reparação socioeconômica, que contará com investimentos de R$ 4 bilhões. Além disso, as pessoas atingidas atuam no controle social da execução de todas as medidas de reparação. Para garantir o compartilhamento de informações, foram contratadas assessorias técnicas independentes, selecionadas pelas pessoas atingidas, que também são atores importantes nesse processo.  

Conforme fica evidenciado, há uma enorme diversidade de atores envolvidos na execução do acordo, que visa reparar os danos e efeitos de um desastre de tamanha magnitude. Apesar de o acordo propor um arranjo institucional e uma lógica de governança simplificados e dinâmicos, envolve processos decisórios extremamente complexos, tornando imprescindível a contínua coordenação e o intenso alinhamento. Mas essa não é tarefa fácil, pois, como descreve Souza (2018)[2], a coordenação não ocorre de forma natural nas organizações nem entre os indivíduos, devendo ser construída e constantemente reforçada.

Interação

Nesse sentido, pode-se dizer que, na experiência concreta relatada, tem se confirmado fundamental a promoção de interações institucionalmente estruturadas e frequentes entre os múltiplos atores, de forma a agregar as propostas e conciliar as posições. Os alinhamentos e a construção de entendimentos sobre os diversos temas são quase diários, favorecendo a formação de relações de confiança e promovendo a agilidade do processo decisório, mesmo diante de problemas complexos e de lógicas de execução de políticas públicas que muitas vezes são inéditas. Na execução desse acordo temos, por exemplo, a definição de prioridades por um amplo processo de consulta popular junto às pessoas atingidas para a definição de políticas públicas, que serão formuladas por órgãos públicos competentes, para detalhamento e implementação pela empresa poluidora, com fiscalização de auditorias externas independentes. 

Por fim, pode-se dizer que os arranjos institucionais e a lógica de governança adotados no processo de reparação têm promovido a efetividade e garantido o fortalecimento de políticas públicas, de forma transparente e com legitimidade junto a todos os atores envolvidos. Contudo, o desafio que se impõe é o de ouvir a todos e garantir a participação, sem que isso tenha um efeito protelatório, mas garanta uma tomada de decisões efetiva e informada. 

Referências Bibliográficas

1PIRES, Roberto Rocha Coelho; GOMIDE, Alexandre de Ávila. Governança e capacidades estatais: uma análise comparativa de programas federais. Revista de Sociologia e Política, v. 24, Nº 58, pp. 121-143. Curitiba, Paraná, Brasil, 2016.
2SOUZA, Celina. Coordenação de políticas públicas. Brasília: Enap, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 27 out. 2022.

Esta nota é de responsabilidade das respectivas autoras e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Karen Gomes

Doutoranda em Políticas Públicas pela Escola Nacional de Administração Pública (2025 - Previsão), mestre em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2017), especialista em Gerenciamento de Projetos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2014) e graduada em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2012). Desde 2012, integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Minas Gerais. Há um ano atua como coordenadora do Núcleo de Projetos de Infraestrutura e de Fortalecimento do Serviço Público do Comitê Gestor Pró-Brumadinho

Renata Bernardo

Mestre em Políticas Públicas e Administração pela London School of Economics (2009), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007) e em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2005). Desde 2005, integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Minas Gerais. Há dois anos atua como Coordenadora Adjunta do Comitê Gestor Pró-Brumadinho, vinculado à Secretaria de Planejamento e Gestão, para coordenar e supervisionar o planejamento e a implementação do Acordo Judicial de Reparação do desastre de Brumadinho.

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