Mulheres negras em cargos de liderança: o sentimento de não pertencer e o poder da representatividade

Publicado em: 11 de março de 2025

Nos últimos anos, a ciência política e os estudos de gênero têm focado em demonstrar que a participação de mulheres na política é favorável à democracia, desafia estereótipos e influencia os resultados das políticas públicas1, mas os desafios para acessar posições de poder e se manter nesses cargos ainda são consideráveis.

No entanto, ao considerar mulheres como um grupo único e coeso, as pesquisas falham na identificação de desafios que sejam particulares a determinados grupos, como o de mulheres negras. Ou seja, é preciso utilizar da metodologia interseccional, em que os efeitos das interações entre categorias de identidade, como raça, classe, nacionalidade e sexualidade são analisados para compreender como essas diferentes características influenciam as vivências das mulheres2.

Assim, quando se analisa a presença de mulheres em cargos de liderança no poder público, considerando a raça, é possível revelar experiências que são particulares a determinado grupo da população, como o de mulheres negras.

A experiência de vida de mulheres negras é moldada não só pelo racismo, não só pelo sexismo, mas pela combinação dessas opressões.

Nos Estados Unidos, o campo da ciência política já demonstrou, por exemplo, que raça, colorismo3 e até mesmo a textura do cabelo têm consequências que impactam de maneira significativa a vida das mulheres negras candidatas. 

No Brasil, episódios de depreciação pública explicam como a mera existência de mulheres negras em cargos de poder não é aceita. A exemplo do ocorrido em 2016, em que o comediante Danilo Gentili escreve na antiga rede social Twitter: “Senadora? Achei que fosse a tia do café”4, se referindo sobre a hoje ex-senadora, Regina Souza, uma mulher negra.

A experiência de vida de mulheres negras é moldada não só pelo racismo, não só pelo sexismo/misoginia, mas pela combinação dessas opressões5. Há em inglês, o termo Misogynoir6, o qual combina opressões de gênero e raça para explicar as violações às quais mulheres negras são submetidas.

A suposição supracitada do comediante é um exemplo evidente do lugar esperado para as mulheres negras na sociedade brasileira: a servidão. Quando mulheres negras desafiam o lugar que lhes é atribuído na sociedade e ingressam na esfera política, elas enfrentam comportamentos violentos, racistas e misóginos, como exemplificado neste caso.

Com o objetivo de explicar essa implicação, a antropóloga Gonzalez afirma que, no Brasil, a sociedade associa a mulher negra ao papel de servente. Embora não deseje diminuir a importância dessa profissão, Gonzalez busca demonstrar que o estereótipo contribui ativamente para as experiências de vidas de mulheres negras7. Esse grupo é visto como de baixa qualificação e, portanto, naturalmente inadequado para a esfera política. Assim, a ausência de mulheres negras em espaços de poder político é percebida como consequência de sua suposta inadequação, em vez de se reconhecer as barreiras sistêmicas que impedem seu sucesso.

Ao mesmo tempo em que, quando mulheres negras conseguem romper as barreiras da opressão de gênero e raça e assumem cargos de liderança no setor público ou na esfera política, elas enfrentam inúmeras dificuldades para conquistar e manter o poder político.

Em 2021, entrevistei 10 mulheres negras que, entre 2015 a 2021, ocuparam cargos de liderança no Poder Executivo de Minas Gerais8, um dos achados foi justamente a confirmação de que mulheres negras são consideradas como não pertencentes àquele espaço de poder.

Embora as entrevistadas fossem profissionais dedicadas, com formação e experiência profissional pertinentes aos cargos que ocupavam, foi evidenciado que não estavam protegidas de sofrerem casos de racismo e misoginia combinados, ou seja, misogynoir, além disso, os autores dos casos sequer se sentiam envergonhados ao reforçar suposições tendenciosas, como relatam duas entrevistadas9:

Esse conjunto de opressões afeta a identidade racial das mulheres negras, resultando no sentimento de não pertencimento e gerando uma série de mecanismos de defesa, como por exemplo, a tentativa de negação/rejeição de sua negritude. No contexto da política norte-americana, o tipo de cabelo e a cor da pele das candidatas negras são percebidos negativamente por todos os eleitores, exceto pelas mulheres negras. Os mesmos conceitos da supremacia branca dominam a sociedade brasileira, explicando por que as mulheres negras10, muitas vezes, manipulam seu cabelo ou tom de pele na tentativa de serem percebidas como brancas11.

Não se pode ser aquilo que não consegue ver.

As entrevistadas mencionaram o tipo de cabelo e a cor da pele como características que influenciam suas próprias percepções de identidade racial. Estas percepções são afetadas pela auto identificação, bem como pela reação de outras pessoas12. Algumas entrevistadas expressaram a necessidade de alisar o cabelo para uma entrevista de emprego ou para ir trabalhar, essas afirmações estão relacionadas às implicações negativas de serem vistos como negras e às suas tentativas de evitar essas ramificações. 

No entanto, o que também ficou evidente foi o poder da presença de outras mulheres negras em posições de liderança para enfrentar esse o sentimento de não pertencimento. Uma das entrevistadas disse que a convivência com outras mulheres negras no ambiente político lhe deu coragem para ser ela mesma, ou seja, há uma ligação poderosa entre se sentir pertencente e ver outras mulheres negras em posições de poder. 

Além disso, “o cabelo e os corpos negros continuam sendo um espaço de reafirmação política […], demonstrando que usar o cabelo natural hoje é uma expressão radical de autoaceitação, uma evolução da expressão política negra”13. Assim, quando mulheres negras utilizam seus cabelos afro ou turbantes no ambiente político, elas são capazes de influenciar outras a fazerem o mesmo; combatendo assim os estereótipos de que só embranquecendo as suas características as mulheres negras seriam capazes de ter sucesso.

Por fim, essa análise demonstra que a importância da representação política das mulheres negras não reside só em garantir que os interesses deste grupo sejam considerados, mas também porque “não se pode ser aquilo que não consegue ver”14.  Ter mulheres negras em posições de liderança no Poder Executivo é um mecanismo poderoso para que grupos minoritários acreditem que a esfera política também lhes pertence. Portanto, além de ser moralmente correto garantir que o interesse de mulheres negras seja devidamente representado na esfera pública, a presença de líderes femininas negras incentiva debates sobre os estereótipos existentes e ajuda a combater suposições tendenciosas.

Referências bibliográficas

1  Childs, S & Lovenduski, J. (2013) Political Representation. In Waylen, G., Celis, K., Kantola, J. & Weldon, L. (Eds.). The Oxford handbook of gender and politics (pp. 489-513). New York: Oxford University Press. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780199751457.001.0001
2 Childs, S & Lovenduski, J. (2013) Political Representation. In Waylen, G., Celis, K., Kantola, J. & Weldon, L. (Eds.). The Oxford handbook of gender and politics (pp. 489-513). New York: Oxford University Press. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780199751457.001.0001
3 Um tipo de discriminação baseada na cor da pele, em que quanto mais escuro for o tom de pele de uma pessoa, maiores são suas chances de sofrer exclusão na sociedade.
4 Gomes, R. De “tia-do-café” à parlamentar: a sub-representação das mulheres negras e a reforma política. Revista Sociais e Humanas (RSH), Santa Maria, v. 31, n. 1, p. 49-80, 2018.
5 Gonzalez, L. (2019). Racismo e sexismo na cultura brasileira [Racism and sexism in Brazilian culture]. In H. B. de Hollanda (Ed.), Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e contexto [Brazilian Feminist Thought: Formation and context] (pp. 237–256). Bazar do tempo.
6 Bailey, M. (2010, March 14). They aren’t talking about me [Blog post]. The Crunk Feminist Collective. http://www.crunkfeministcollective.com/2010/03/14/THEYarent-talking-about-me/
7 Gonzalez, L. (2019). Racismo e sexismo na cultura brasileira [Racism and sexism in Brazilian culture]. In H. B. de Hollanda (Ed.), Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e contexto [Brazilian Feminist Thought: Formation and context] (pp. 237–256). Bazar do tempo.
8 As posições hierárquicas variam desde o primeiro nível, como Secretário de Estado, até o quarto nível, geralmente diretor ou coordenador. Para essa entrevista, as posições variaram do segundo ao quarto nível. Não foi possível selecionar líderes de primeiro nível, considerando que foi indicada apenas uma mulher negra que ocupou uma posição de primeiro nível dentro do período analisado por esta pesquisa; no entanto, ela não estava disponível durante o período das minhas entrevistas.
9 Apenas uma entrevistada não possuía vínculo empregatício com o Poder Executivo de Minas Gerais no momento da entrevista; portanto, há garantia do anonimato para protegê-las de qualquer tipo de retaliação.
10 Lemi, D. C., & Brown, N. E. (2019). Melanin and Curls: Evaluation of Black Women Candidates. The Journal of Race, Ethnicity & Politics, 4(2), 259–296. https://doi.org/10.1017/rep.2019.18
11 Silva, T. (2017). Colorism and its discriminatory historical basis [O Colorismo e suas Bases Históricas Discriminatórias]. Direito UNIFACS – Debate Virtual, (201), 1-20. https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/4760
12 Roth, W. D. (2016). The multiple dimensions of race. Ethnic and Racial Studies, 39(8), 1310–1338. https://doi.org/10.1080/01419870.2016.1140793
13 Lemi, D. C., & Brown, N. E. (2019). Melanin and Curls: Evaluation of Black Women Candidates. The Journal of Race, Ethnicity & Politics, 4(2), 259–296. https://doi.org/10.1017/rep.2019.18
14 No original, em inglês, “you can’t be what you can’t see” Murabit, A. (2019). You Can’t Be What You Can’t See. UN Chronicle. https://www.un.org/en/un-chronicle/you-can%E2%80%99t-be-what-you-can%E2%80%99t-see

Julye Beserra: Mestre em estudos de gênero pela Central European University - CEU (2021), especialista em diversidade e inclusão nas organizações pela Universidade São Judas Tadeu (2023) e em políticas pública e justiça de gênero pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais - CLACSO (2018) e graduada em administração pública pela Fundação João Pinheiro - FJP (2014). Atualmente é assessora de gestão de projetos na Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social de Minas Gerais. Faz parte do Grupo de Estudos Estado, Gênero e Diversidade da Fundação João Pinheiro (Egedi/FJP), desenvolvendo ações na área de participação política, interseccionalidades e política pública. Integrante do Programa de Lideranças Negras da Fundação João Pinheiro - FJP (2023/2024) e do Women’s Leadership Network in Brazil Program da University of Columbia (2024).

A nota é de responsabilidade dos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais eles estão vinculados.

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