Por André Abreu Reis e Fernanda de Siqueira Neves

De inúmeros constrangimentos fiscais padece a administração pública brasileira contemporânea. Para os entes subnacionais, a dimensão da folha de pessoal é o principal deles. Dentre as atribuições de competências constitucionais, estes entes ficaram com os serviços mais intensivos em pessoal (educação, segurança pública e saúde) e, portanto, com maior pressão e enrijecimento provocado por esta despesa. Junto com a extensão das competências e o tamanho das categorias funcionais vêm as pressões das tais categorias por melhores salários e os respectivos impactos previdenciários. Não fosse apenas a pressão das próprias categorias funcionais, os estados e municípios sofrem pressão da União desde 2008, quando da criação do piso nacional do magistério.  O presente artigo pretende abordar o tema dos pisos salariais no serviço público e os impactos para estados e municípios. O artigo foi escrito em janeiro de 2022, quando foi anunciada a correção do piso do magistério para 2022 em 33,24%. A maior correção desde a sua criação. 

Índice
O piso nacional dos profissionais do magistério da educação básica
O desafio de implementação de pisos remuneratórios
Reflexões sobre externalidades geradas

Considerações finais

O piso nacional dos profissionais do magistério da educação básica

O debate sobre pisos de categorias funcionais no Brasil é longo, intrincado e faz parte tanto do universo da CLT quanto dos servidores estatutários. Na administração pública, o marco recente mais expressivo foi, sem dúvida, o piso nacional dos profissionais do magistério da educação básica estabelecido pela Lei n. 11.738, de 16 de julho de 2008. A sanção da lei trouxe intensa movimentação patronal e de servidores por todo país. De um lado, a administração alegava impossibilidade de pagamento. Do lado dos servidores, vinham as alegações sobre a baixa remuneração da categoria no país e o argumento de que o Fundeb serviria fundamentalmente a esta despesa. Dos gestores, vinha a alegação de que o fundo não cobriria o impacto relativo aos servidores aposentados. Os governos, por sua vez, se reuniram no entorno da justificativa de que o piso seria o total da remuneração e as categorias, ao contrário, de que seria somente o vencimento básico (tese confirmada pelo Supremo Tribunal Federal tempos depois). Enfim, o tema hoje já está razoavelmente pacificado no que tange à sua aplicação. Ficaram, então, os desafios anuais para o seu cumprimento.

O desafio de implementação de pisos remuneratórios

A forma de implementação do piso em cada ente da federação seguiu uma história própria e vem, ainda, sendo alvo de desafio anual de parcela expressiva do país. A convivência com o piso tem desafios fiscais distintos para estados e municípios. Para além dos aspectos da renda de cada ente, existe a questão estrutural de competência constitucional que cabe aos estados e, diferentemente, aos municípios. Se aos estados cabe financiar a segurança pública e demais poderes, aos municípios sobra a lida com a ponta do Sistema Único de Saúde, que demanda, normalmente, muito mais do que os 15% mínimos de aplicação das suas receitas. 

A intensa vinculação de recursos, seja pela via legal e constitucional ou pela natureza da despesa, torna a existência desta regra de pessoal um ponto de cautela e de atenção redobrada. No caso dos estados, para além da vinculação de tributos com educação, existem as vinculações com saúde e, em diversos deles, as com instituições voltadas à ciência e tecnologia. Outras despesas que não entrariam na categoria de “vinculadas” possuem efeito fiscal semelhante por serem obrigatórias, como despesa de pessoal ativo e inativo, serviço da dívida, precatórios, bem como os gastos com os demais poderes (Legislativo, Judiciário, Defensoria Pública e Ministério Público). Além disso, há de se considerar o mínimo para custeio de demais políticas públicas que, se não possuem uma rigidez pela via legal, possuem por razões fáticas. Um exemplo seria o conjunto de despesas da segurança pública e do sistema prisional que possuem limitada possibilidade de ajustes. 

No caso dos municípios, dado que em sua maioria não possuem endividamento significativo, tampouco órgãos de segurança de tamanho expressivo, a pressão vem, fundamentalmente, da saúde. 

Hoje, temos um histórico rico sobre a implementação do piso nacional que nos permite olhar para este período de convívio e pensarmos nos seus impactos. Cerca de dez anos após a aprovação do Piso Nacional do Magistério, foi aprovada a Lei n. 13.708, de 13 de agosto de 2018, que estabelece o Piso dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes Comunitários de Endemia (ACE). Sua criação foi feita por meio de emenda parlamentar durante a tramitação da Medida Provisória n. 827, de 2018. Pelo fato de criar despesa para o Poder Executivo, ela possui vício de origem e é passível de discussão judicial. Fato a ser discutido mais à frente.

Ainda na área da saúde, foi aprovado pelo Senado e encaminhado para a Câmara, em 2021, o Projeto de Lei n. 2564/2020 que estabelece o piso nacional para as categorias de enfermeiros, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem. O projeto de lei é de iniciativa do senador Fabiano Contarato (Rede/ ES), cabendo a mesma discussão do vício de iniciativa da lei do piso dos ACSs e ACEs. 

Reflexões sobre externalidades geradas

Não resta dúvida acerca da importância de legislações desta natureza para o aumento dos vencimentos dos servidores públicos não só pelo óbvio impacto na remuneração inicial, mas também pelos impactos nos demais níveis das carreiras, ora por simples impacto em cadeia nas tabelas de vencimentos, ora pela pressão política que o debate gera anualmente. Por outro lado, algumas reflexões sobre externalidades geradas neste processo merecem ser feitas:

  • Por princípio, cabe refletir que sentido faria, numa federação, a União determinar os vencimentos de categorias funcionais dos demais entes. Há uma explicação incompleta para o fato: a União faz, ou pelo menos coordenaria, o repasse de recurso que faria face a estes salários. No caso dos professores, por exemplo, os recursos do Fundeb (que é formado por receita tributária dos três entes da federação) não cobrem todo o impacto do aumento do piso, dado que os inativos são financiados, para além de receitas previdenciárias, com recursos dos tesouros estadual e municipal. 

    O aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado é financiado por crescimento de receitas ou por redução de despesas naquelas políticas que possuem mais recursos do tesouro livre de vinculações. No caso dos municípios, despesas da assistência social e despesas da saúde que ultrapassem os 15% de vinculação constitucional acabam por ser a fonte de financiamento da eventual necessidade de cobertura de recursos na educação (ou qualquer política pública que apresente pressão fiscal maior do que a própria saúde e assistência). 

    No caso dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Endemias, há receita federal que também não sustenta, necessariamente, a folha destes trabalhadores. A alternativa mais segura do ponto de vista fiscal é manter o tamanho da categoria em exata compatibilidade com o recurso federal enviado, não estabelecendo planos de carreira e nem ampliando as equipes conforme a real necessidade sanitária do município.  
  • A prática da União em determinar aumentos para categorias funcionais municipais ainda possui uma ironia jurídica: o município não possui competência legal para questionar a constitucionalidade de lei federal. Portanto, em casos como a Lei n. 13.708 que estabelece o Piso dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes Comunitários de Endemia, houve o aumento concedido por emenda do Legislativo em flagrante vício de origem. O Presidente da República vetou o dispositivo sob esta justificativa e o veto foi derrubado pelo Legislativo. A Prefeitura, que tem incentivo no questionamento da legalidade, não possui competência para tal; e a União, que possui competência, não tem incentivos a fazê-lo. 

    Está posto um modelo perfeito para estabelecimento de vencimentos para inúmeras categorias de trabalhadores de estados e municípios sob o seguinte funcionamento: o Legislativo propõe o piso a partir de projeto de lei ou emenda a projeto em tramitação, a União não consegue mobilizar a base durante a tramitação do projeto para a derrubada do dispositivo; o projeto segue para sanção; recebe veto total ou parcial; o mesmo Legislativo que aprovou o projeto derruba o veto. Dessa maneira, sempre que houver desarticulação da base de governo no Congresso Nacional, haverá um grande potencial para a proliferação de projetos dessa natureza.

  • Os impactos políticos para a gestão local de recursos humanos também são importantes dado que a União é quem concede os aumentos, e os estados e municípios são quem têm que viabilizar o seu pagamento. Ou seja, na mesa de negociação salarial, as categorias sabem que o aumento foi concedido pela União (embora também com os recursos estaduais ou municipais) e eles precisam vencer a suposta resistência patronal para recebê-lo. Neste cenário não há espaço para que o ente subnacional possa utilizar de seus recursos financeiros para estabelecer sua política salarial, tendo como contrapartida questões de interesse da gestão, como implantação de sistemas de avaliação de desempenho individual e institucional, por exemplo. Afinal, parte expressiva dos aumentos são concedidos por quem não faz a gestão de recursos humanos, muito menos da política pública a que estes servidores pertencem. Se considerarmos apenas os profissionais da educação básica e os agentes comunitários de saúde e de endemias, para os quais já existe lei federal concedendo o piso da categoria, pode-se dizer que a União tem participação direta na concessão de aumentos salariais para a maior parte dos servidores municipais.

Considerações finais

Os pontos acima levantados são elementos para um debate mais profundo sobre o federalismo brasileiro. Há claramente problemas sérios de distribuição federativa dos incentivos no campo da política de recursos humanos. A história recente mostrou que há grande disposição do Congresso Nacional na concessão de melhorias salariais a categorias municipais, mesmo que ao arrepio da Constituição, enquanto tem o pouco apreço ao enfrentamento de questões nacionais mais delicadas, como demonstrou na Reforma da Previdência ao retirar estados e municípios do conjunto do texto. 

Do ponto de vista do federalismo fiscal, ao que parece, temos uma bomba sendo armada pela frente. Se a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal a legislação federal passa a estabelecer inúmeras restrições fiscais em busca de novos marcos institucionais para a busca do equilíbrio fiscal, nos movimentos dos últimos anos, sobretudo no campo de despesas de pessoal e previdência, a União vem contribuindo fortemente para a crise financeira nos estados e municípios. A ver se, a partir de 2023, sob nova legislatura e novo mandato presidencial, haverá espaço para se colocar o debate da independência federativa na política remuneratória dos servidores públicos. 

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

André Abreu Reis
Graduado e Mestre em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Atualmente é Secretário Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão da Prefeitura de Belo Horizonte.

Fernanda de Siqueira Neves
Graduada em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Mestre em Administração pela PUC-Minas. Atualmente é Subsecretária de Pessoas da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão da Prefeitura de Belo Horizonte.

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