Produção de dados e população em situação de rua: políticas públicas baseadas em evidências

Publicado em: 1 de agosto de 2023

Índice
Subnotificação na pandemia
Impactos da falta de dados

Historicamente, a população em situação de rua esteve associada a uma série de estereótipos e estigmas fomentados por narrativas do Estado, no sentido de reforçar discursos e práticas criminalizantes1. Somente a partir do início dos anos 1990, após um longo processo de disputas simbólicas e materiais protagonizado por pessoas em situação de rua e atores próximos à pauta, o Estado incorporou o tema como parte da agenda pública de problemas sociais.

Uma dimensão importante que marcou esse momento de reconhecimento da população em situação de rua como uma questão social foi a realização de pesquisas que buscavam conhecer e dimensionar esse grupo de pessoas, conhecer seu perfil e as razões que as levavam às ruas. Essa iniciativa era uma tentativa de quantificar o número de pessoas nas ruas das cidades, ao mesmo tempo que buscava conhecer o seu perfil.

Em São Paulo, a primeira gestão a inserir a questão na agenda foi a de Luiza Erundina (1989-1993, Partido dos Trabalhadores – PT), com a elaboração da primeira pesquisa a ser realizada no Brasil sobre o perfil das pessoas em situação de rua, publicada em forma de livro: “População de Rua: Quem é, como vive, como é vista” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992)2. Construída de forma coletiva pela prefeitura junto a diversas organizações que trabalhavam e trabalham com pessoas em situação de rua na cidade, essa pesquisa foi um marco fundamental, um momento de ruptura, no qual foram reformulados conceitos relacionados a esse grupo de pessoas.

A partir dos dados da pesquisa, foi possível questionar o uso de categorias como “indigentes”, “mendigos” ou “vadios” (DE LUCCA, 2007)3, incorporando a diversidade dessa população – que tem em comum a vida nas ruas e a dificuldade em inserir-se no mercado de trabalho – nas análises propostas. Ainda, essas informações permitiram questionar alguns desses estigmas, passando a abordar uma dimensão coletiva da questão, que compreende o papel das estruturas econômicas e sociais na causalidade da situação de rua, não se limitando a uma abordagem individual culpabilizante da pessoa vulnerabilizada (DE LUCCA, 2007)3. O olhar para o grupo e a produção de dados sobre o seu perfil passou a permitir observar a categoria enquanto uma coletividade, que, apesar da sua diversidade, possuía experiências e demandas em comum, as quais poderiam ser atendidas por meio de políticas públicas desenhadas para o público. 

Em nível nacional, as primeiras pesquisas foram realizadas nos anos 2000, como parte do processo de disputas protagonizadas pela sociedade civil e movimentos sociais da população em situação de rua. Nesse sentido, o I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, foi promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), entre 2007 e 2008, em 71 cidades do País. Também se destaca a pesquisa “Rua: aprendendo a contar”, realizada com apoio do MDS em 2009, atendendo à demanda da sociedade civil por uma maior visibilidade do poder público para a pauta e auxiliando a produzir informações para subsidiar políticas públicas direcionadas ao setor (BRASIL, 2009)4. No mesmo sentido, merece menção o Decreto nº 7.053 publicado no mesmo ano, instituindo a Política Nacional para a População em Situação de Rua, que tem como um de seus objetivos instituir a contagem nacional oficial desse setor.

A despeito desses marcos, a questão de dados sobre a população em situação de rua permanece um desafio para os atores que trabalham com o tema. O Censo Demográfico realizado pelo IBGE ainda realiza a contagem apenas da população domiciliada (NATALINO, 2023)5. Alguns esforços têm sido direcionados para promover a inclusão da população em situação de rua no censo, como por meio da esfera judicial, ou mesmo por disputas para considerar as barracas nas calçadas como moradias improvisadas. No entanto, de forma geral, ainda hoje o censo não contempla as pessoas que vivem em situação de calçada ou acolhidas em serviços socioassistenciais. A forma de contagem oficial da população em situação de rua ocorre de forma independente por cada município e, nacionalmente, é realizada uma estimativa pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Os diferentes formatos de contagem, com metodologias e periodicidades distintas, dificultam uma análise comparativa das dinâmicas da situação de rua. 

As contagens locais e a estimativa realizada em nível nacional são movimentos importantes no sentido de criar dados oficiais sobre o público, capazes de balizar o desenho de políticas públicas específicas. No entanto, as dinâmicas contextuais desses episódios de contagem são simbólicas por materializar o processo de invisibilização ao qual esse público esteve e ainda está submetido: seja pela ausência de endereço, seja pelos constantes e característicos deslocamentos pela cidade, seja pela falta de documentos, esse grupo é constantemente excluído das contagens oficiais de caráter mais geral, sendo necessário esforços pontuais e específicos para que sejam obtidas informações não apenas sobre seu perfil, mas também sobre suas necessidades. 

Esse fato se torna ainda mais gravoso diante de situações de crise, nas quais se acirram as necessidades de grupos vulneráveis, ao mesmo tempo em que as incertezas do contexto tornam as contagens ainda mais difíceis. Esse foi o caso da pandemia e da contagem de óbitos por Covid-19 de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo. A seguir, pretende-se explorar brevemente o caso, buscando refletir sobre a centralidade desse tipo de informação para a proposta de estratégias de enfrentamento. 

Subnotificação na pandemia

Com a pandemia de Covid-19 e a subnotificação de casos e óbitos da população geral no Brasil, a dimensão de invisibilização da população em situação de rua tornou-se uma questão ainda mais urgente. A despeito da pressão realizada por movimentos sociais e entidades da sociedade civil6 nos vários níveis de governo, a ausência de uma padronização no campo logradouro do formulário nacional utilizado para os casos de coronavírus diagnosticados e a falta de instrução aos profissionais de saúde sobre o atendimento a pessoas em situação de rua impedia a contabilização precisa da mortalidade nesse grupo populacional.

Em São Paulo, após pressão da sociedade civil, a solução adotada pela Prefeitura foi contabilizar os óbitos a partir dos dados disponibilizados pelo Consultório na Rua, equipamento da atenção básica em saúde, responsável pelo cuidado e abordagem das pessoas em situação de rua. Ao todo, os dados apresentados pelo equipamento somaram 49 óbitos até novembro de 2021, de um grupo populacional de 31.884 pessoas, segundo o censo realizado em 2021 na cidade. Porém, de acordo com a pesquisa realizada pelo LabCidade (FAU USP) e pela Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)7, até maio de 2021 havia ao menos 96 óbitos por Covid-19 entre pessoas em situação de rua contra 38 divulgados pela Prefeitura. A divergência entre os dados encontrada pelos pesquisadores se deu em virtude da busca por números em todos os serviços de saúde municipais, enquanto a informação oficial se concentrava apenas no Consultório na Rua. Ou seja, ao contabilizar apenas os dados de um serviço voltado especificamente para a população em situação de rua, a prefeitura subestimou os óbitos de pessoas em situação de rua notificados por outros tipos de serviço. 

Gráfico elaborado para a pesquisa do LabCidade e da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama.

Além dos números confirmados de óbitos na população em situação de rua, 216 mortes constam sem nenhum registro de endereço, de modo que só seria possível verificar se se trata de situação de rua realizando um cruzamento entre os dados da saúde e da assistência social. O apagamento das mortes na rua, sob o emprego de categorias como “indigente” ou “sem endereço”, já foi objeto de reflexões sobre o lugar dado aos corpos “desconhecidos” ou desprovidos de endereço (DE LUCCA, 2009)8 e revela uma escolha por não investigar essas mortes. Portanto, o que se observa é que o processo de invisibilização desse segmento populacional, permeado de estigmas e estereótipos, se materializa também no seu apagamento das políticas, dos serviços e dos dados oficiais, o que se torna ainda mais grave em um contexto de crise sanitária. 

Ainda, o tratamento dado à população em situação de rua pelas políticas públicas tende a atribuir suas questões para pastas ou programas específicos, de forma que os serviços gerais, envolvidos em outras demandas e com menor conhecimento ou sensibilidade pela temática, acabam por desconsiderá-las nos registros e protocolos de atendimento. Aqui reside um grande paradoxo, porque, ao mesmo tempo em que esse público demanda alguns cuidados específicos – e, portanto, serviços adaptados -, não considerá-los nos serviços universais providos a toda a população é uma forma de estigmatizá-los, invisibilizá-los e excluí-los. 

Por exemplo, no cenário pandêmico, a organização da política de saúde delegou aos serviços específicos a responsabilidade integral não só pelo cuidado e atendimento dessas pessoas, mas também por conhecê-las e reconhecê-las nas estatísticas, deixando de fora menções de equipamentos gerais de saúde. Esse fato, combinado à desarticulação entre as secretarias, a despeito do já reconhecido caráter multifatorial do problema, culmina em um cenário de ampla subnotificação.

Impactos da falta de dados

Durante a crise sanitária vivida nos últimos anos, a falta de atualização e a apresentação de dados incompletos trouxe a falsa impressão de que as políticas públicas implementadas nesse período foram suficientes e eficazes para evitar o contágio e a mortalidade por Covid-19 na população em situação de rua. Esse fato dificultou a discussão sobre a adequação dos modelos de políticas implementadas e a disputa pela permanência e ampliação das medidas emergenciais.

Essa situação decorrente da pandemia evidenciou que, ainda que a população em situação de rua venha sendo progressivamente incluída enquanto tema na agenda pública, a falta de registro e dados segue sendo algo que corrobora para seu processo de invisibilização. Esse cenário é reflexo de como as políticas públicas voltadas para a população em situação de rua se estruturam, restringindo a demanda e o atendimento desse grupo populacional apenas a serviços específicos, com falta de coordenação entre as secretarias e de padronização em nível nacional para produção e divulgação de dados. 

O que esse caso mostra é que, além da invisibilização no monitoramento e acompanhamento precisos das vidas das pessoas em situação de rua, também não há produção organizada e precisa de dados sobre seus óbitos, o que se tornou um grande desafio no contexto da pandemia. Conhecer as vidas das pessoas em situação de rua, as dinâmicas de suas vivências, seus diferentes perfis, necessidades e desafios é importante ponto de partida para a construção de políticas públicas direcionadas e adequadas às suas realidades. Ainda, é preciso discutir os desafios de saúde e segurança que se fazem presentes nas vidas dessas pessoas e que representam riscos para sua saúde e sua vida, para que se possa subsidiar políticas de prevenção e cuidado.

Referências Bibliográficas

1ALMEIDA, Guilherme; RIBAS, Luciana. A pessoa em situação de rua como sujeito de direito. Nexo, 2021. Disponível em: <https://pp.nexojornal.com.br/ponto-de-vista/2021/A-pessoa-em-situa%C3%A7%C3%A3o-de-rua-como-sujeito-de-direito>. Acesso em: 12 de junho de 2023.

2VIEIRA, M. A. C.; BEZERRA, E. M. R.; ROSA, C. M. M. População de rua: quem é, como vive, como é vista. Editora Hucitec, São Paulo, 1992. 

3DE LUCCA, Daniel. A rua em movimento – experiências e jogos sociais em torno da população de rua. 2007. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. doi:10.11606/D.8.2007.tde-20122007-140625.

4BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua: aprendendo a contar; Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de rua – Brasília, DF: MDS; Secretaria de Avaliação e Gestão de Informação, Secretaria Nacional de Assistência Social, 2009.

5NATALINO, Marco. Nota Técnica n. 103 (Disoc): Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022). Brasília: Ipea, 2023.

6GAMEIRO, Nathália. População em situação de rua aumentou durante a pandemia. Fiocruz Brasília, 2021. Disponível em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/populacao-em-situacao-de-rua-aumentou-durante-a-pandemia/ . Acesso em: 12 de junho de 2023.

7MARINO, Aluízio et al. A invisibilidade da população de rua e de suas mortes por COVID-19 parece ter sido uma escolha. Labcidade, 2022. Disponível em: https://www.labcidade.fau.usp.br/a-invisibilidade-da-populacao-de-rua-e-de-suas-mortes-por-covid-19-parece-ter-sido-uma-escolha/. Acesso em: 12 de junho de 2023.

8DE LUCCA, Daniel. Morte e Vida nas ruas da cidade de São Paulo: a biopolítica vista do Centro. Trabalho proposto para apresentação no I ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.

Esta nota é de responsabilidade das respectivas autoras e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais as autoras estão vinculada.

Laura Cavalcanti Salatino: Advogada, coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP) e mestre em administração pública e governo (FGV).

Gabriela Spanghero Lotta: Professora da FGV EAESP e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia

Verônica Brito Sepúlveda Martines: Advogada, coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP) e graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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