Sobre o burocratismo, há vasta literatura acadêmica no pensamento social brasileiro, da qual reforçamos aqui os clássicos de Sérgio Buarque de Holanda (1995) e Raimundo Faoro (2000). O burocratismo remete-nos à tradição histórica brasileira de origem ibérica, por meio da qual as relações econômicas e sociais entre partes autônomas (indivíduos, famílias, empresas) vão sendo convertidas em regramentos formais e códigos de conduta sujeitos a sanções de vários tipos e níveis pelo poder instituído.
Esse longo processo de normatização, positivação das leis ou burocratização, que se vai espraiando por praticamente todas as dimensões da vida coletiva, numa sociedade dominada pela lógica capitalista, também toma conta do próprio Estado, tanto internamente como em suas relações com o mercado e a sociedade da qual faz parte.
Mas ao contrário do que seria de se esperar numa sociedade que gradativamente almeja republicanizar e democratizar as relações intra-estatais e entre segmentos do Estado, do mercado e da sociedade, tais códigos de conduta e legislações impostas não se aplicam igualmente a todas as partes envolvidas.
Há excesso de formalismos, legalismos, controles burocráticos e muitas etapas intermediárias que se estabelecem entre a maioria das empresas e da população, em suas relações entre si e com agentes públicos, ao mesmo tempo que níveis variados de informalismos e acessos privilegiados aos tomadores de decisões de todos os tipos e lugares sociais.
Por detrás de tais hierarquias e assimetrias de poder escondem-se práticas patrimoniais, privatistas, oligárquicas, autoritárias e seletivas, enfim, pequenos e grandes atos de corrupção público-privados que filtram os acessos e favorecimentos às políticas públicas, dificultando ou mantendo na berlinda a inclusão de segmentos imensos de população e de empresas a bens e serviços de índole pública.
No tocante à corrupção, a concepção neoliberal que tem sido predominante no Brasil criminaliza a política, legítima a adoção de leis, procedimentos e jurisprudências de exceção, prega a entrega do patrimônio público e dos serviços essenciais para o controle das grandes empresas privadas. Mas os brasileiros finalmente estão tomando consciência de que este caminho antidemocrático e antirrepublicano leva, ao contrário da visão simplista e punitivista, ao máximo de corrupção. Isto porque a corrupção não diz respeito especificamente ao Estado e à dimensão política do poder, mas sim às relações espúrias que se estabelecem entre interesses privados / privatistas e o Estado / esfera pública. Dito assim, a corrupção não é importante apenas na explicação da formação do Estado nacional, mas está também vinculada ao problema da desigualdade, na medida em que esta é historicamente (re)produzida e mantida, essencialmente, pela corrupção do poder público que é praticada por interesses privados. Desta maneira, a luta contra a corrupção deve ser concebida de modo subordinado ao aprofundamento do caráter democrático e republicano do Estado brasileiro, tal qual sugerido no artigo anterior desta série.
Em defesa da república e da democracia, contra poderes corporativos, interesses privados e privilégios
Por fim, é preciso dizer que há, no aparato estatal brasileiro, muita hierarquia formal e pouco comando efetivo, na esteira do que emerge a hipertrofia da cultura de controles formais e informais sobre o planejamento, a implementação, a gestão e a participação social nas políticas públicas. Minimiza-se, portanto, todo o potencial e poder de um Estado supostamente pensado para se organizar e agir consoante aos princípios republicanos, esses assentados na máxima equidade e transparência dos processos decisórios, voltados ao interesse geral e ao bem comum, e procedimentos democráticos, esses responsáveis pela ampliação e diversificação da participação social, da representação política e da deliberação coletiva acerca das questões-chaves da sociedade que atravessam os processos decisórios.
É desnecessário dizer que tais objetivos públicos e de Estado passam pela desmercantilização da política como negócio. O conflito entre aqueles que querem dominar e concentrar riquezas e aqueles que buscam a liberdade e a igualdade está no centro da disputa pelo poder. Uma república democrática é exatamente aquela que se apoia ativamente na vontade – livre e plural – das maiorias e subordina os órgãos do Estado, inclusive os aparelhos de justiça e coerção, à garantia dos direitos e deveres formados democraticamente. A defesa da República e da Democracia deve estar sempre acompanhada da vigília contra os poderes corporativos e arbitrários, o privatismo e os privilégios, pois estes se voltam historicamente contra as classes trabalhadoras, os setores populares, os progressistas e a esquerda política.
A questão de fundo é que a Constituição Federal não foi capaz de institucionalizar, em uma dinâmica democrática, as disputas entre dois projetos políticos antagônicos. De um lado, coloca-se novamente em pauta – por setores conservadores da sociedade, dos agentes políticos, da própria burocracia, do empresariado e da mídia oligopolizada – o caminho neoliberal, de orientação antinacional, privatista e individualista, e que desde 2016 vem promovendo retrocessos institucionais em áreas críticas da regulação econômica, social e política do país.
De outro lado, permanece como possibilidade – defendida por setores do campo progressista, dentro e fora das estruturas de governo – a via da expansão ou universalização integral dos direitos humanos, econômicos, sociais, civis, políticos, culturais e ambientais, tais quais os promulgados – e apenas parcialmente efetivados – pela Constituição Federal de1988. Todavia, é preciso ter claro que as bases materiais e as condições políticas para a efetivação de tais direitos precisam ser reconstruídas no país para a sua real consecução.
Na dinâmica neoliberal, atores econômicos buscam a captura das instituições de representação política do Estado, de modo a viabilizar a transformação de seus interesses em decisões públicas, com vistas a favorecer os interesses empresariais. Um jogo desequilibrado, que induz a um cenário em que, por suas influências, grandes grupos empresariais controlam mecanismos da dinâmica democrática, exercendo uma dominação onde o interesse geral da população perde expressão, tanto em termos econômicos quanto de cidadania.
Sendo assim, a retomada de um projeto democrático de desenvolvimento para o país passa necessariamente pela construção de novos marcos democráticos, envolvendo não apenas as esferas do Poder Executivo e as Políticas Públicas, mas integrando a totalidade das instituições do Estado nesse percurso.
Referências
FAORO, R. (Org.). Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 2000.
HOLANDA, S. B. de. (Org.). Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
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