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Estado Mínimo
Desenvolvimento com transparência e participação

Vícios privados, prejuízos públicos! Nesta série, após já termos tratado do autoritarismo, do burocratismo e do fiscalismo como problemas histórico-estruturais do Estado no Brasil, vamos agora abordar o penúltimo dos temas aqui sob escrutínio. Faremos isso a partir de recomendações da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 32, de 2020 (chamada PEC da reforma administrativa do governo Bolsonaro) que versam sobre a intervenção do Estado no domínio econômico, a saber: acréscimo ao art. 37-A e acréscimo ao § 6º e do § 7º ao art. 173 da Constituição Federal (CF) de 1988.

Uma análise mais amiúde desses dispositivos propostos pela PEC n° 32, de 2020, revela, indubitavelmente, tratar-se da peça que visa à instauração de poderes quase absolutos do mercado sobre o Estado, do dinheiro sobre a política, da esfera e lógica privadas sobre a esfera e lógica públicas. É claro que dessa proposta de (re)desenho constitucional para pior, que pretende priorizar, na formulação, implementação e gestão das políticas públicas, o domínio de uma visão economicista e microeconômica de curto prazo, sobre uma visão holística e macrossocial de longo prazo, não se pode esperar nada promissor para as capacidades governativas de condução futura do país.

Isto é, não há referências claras ao desenvolvimento da nação como objetivo último de tal reforma, mas tão somente entendimento de que a consolidação e a valorização capitalista de mercados autorregulados poderiam engendrar algum tipo de “desenvolvimento”. Este, em termos do liberalismo de cassino em voga, significa coisas como maximização das rentabilidades empresariais de curto prazo, crescimento microeconômico eficiente dos empreendimentos etc. Ora, de diversas maneiras já foi demonstrado que o somatório de empreendimentos empresariais eficientes e rentáveis do ponto de vista microeconômico não é garantia (na verdade, não há evidência empírica alguma) de que engendrarão resultados agregados (mesmo que setoriais) eficazes ou efetivos do ponto de vista macroeconômico, ainda mais se olhados tais resultados sob a ótica dos empregos, rendas e tributos gerados para os demais agentes envolvidos nesse tipo de regime e processo de acumulação de capital em bases estritamente privadas e sob dominância financeira.

Estado Mínimo

Como se sabe, o papel do Estado no domínio econômico é alvo de inúmeros debates no Brasil. Adeptos de um Estado regulador, ou mínimo, costumam se contrapor com os defensores de um Estado desenvolvimentista. No entanto, uma análise histórica da estrutura administrativa brasileira revela que a CF de 1988 recebera um modelo de Estado estruturado sob a ditadura militar (1964-1985), ou seja, o Estado reformado pelo Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg, 1964-1967), cujas concepções de eficiência empresarial e de privilégio do setor privado já estão presentes cerca de 30 anos antes da reforma gerencial da década de 1990.

O discurso oficial do regime militar já era o da ortodoxia econômica. As próprias constituições outorgadas pelos militares, em 1967 e em 1969, chegaram, não à toa, a incorporar o chamado princípio da subsidiariedade, cuja concepção é entender o Estado como complementar, subalterno à iniciativa privada. O Decreto-Lei n° 200, de 1967, pioneiro na exigência da gestão empresarial dos órgãos administrativos, vai sobreviver à ditadura militar e continuará em vigor mesmo sob a Constituição de 1988, tendo sido reforçado pela reforma administrativa gerencialista do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e, agora, ressuscitada pela PEC n° 32, de 2020, que promete voltar à pauta legislativa nos estertores do governo Bolsonaro, talvez como vingança pela vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022.

Ocorre que, mundo afora, com a consolidação dos Estados desenvolvimentistas, as constituições do século XX incorporaram em seus textos o conflito existente entre as forças sociais, buscando abranger toda uma série de direitos e matérias. Apesar disso, as relações entre o direito constitucional e o direito administrativo são ainda difíceis. Enquanto o direito constitucional avançou, o direito administrativo continuou preso aos princípios liberais do século XIX, entendendo o Estado como inimigo. Por isso, a necessidade de construção de um direito administrativo dinâmico, a serviço da concretização dos direitos fundamentais e da constituição, é cada vez mais importante.

Na contramão disso, a proposta de incluir um artigo 37-A na Constituição de 1988 vai muito além da péssima técnica legislativa. A intenção da PEC n° 32, de 2020, é instituir a permissão para que os entes da Federação (União, estados, Distrito Federal e municípios) firmem “instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”. Em resumo, trata-se da terceirização geral da Administração Pública. Mas ora, o regime dos serviços públicos está previsto no artigo 175 da Constituição, que determina serem eles atividades que devem ser obrigatórias e diretamente prestadas pelo poder público. Se não forem prestadas pelo Estado, só o podem mediante concessão ou permissão e sempre precedidas de licitação. Ao prestar serviço público, o Estado, ou quem atue em seu nome por meio de concessão ou permissão, está obrigado a acatar o interesse social como métrica e destino de suas ações.

Outra aberração da PEC n° 32, de 2020, está na tentativa de incluir dois novos parágrafos ao artigo 173 da Constituição, que trata da atuação direta do Estado no domínio econômico. O novo – e pior – artigo 173, §6º prevê que: “É vedado ao Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedade de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência, exceto nas hipóteses expressamente previstas nesta Constituição”. Ou seja, trata-se do fim definitivo do fomento público, pois seria possível a qualquer agente privado (nacional ou estrangeiro) acionar o Poder Judiciário contra a concessão, por exemplo, de linhas especiais de crédito, ou financiamento de projetos por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), como sendo medidas de “reserva de mercado”.

As implicações desse processo são perniciosas para a dinâmica de crescimento econômico, bem como para as condições de reprodução social da população. Por tratar-se de opção política de política econômica, esse arranjo institucional que se está querendo impor ao Brasil é passível de contestação teórica e empírica, razão pela qual é importante desnudar as suas implicações e apontar alternativas críveis para redesenhar a referida institucionalidade com vistas à promoção de um desempenho econômico e social mais condizente com o potencial e anseios de crescimento e de inclusão social do país.

Desenvolvimento com transparência e participação

Nesse sentido, tendo em tela o caso brasileiro, a alternativa consiste em lançar mão de três ideias-força, de cujo resgate teórico-histórico se poderia partir para avançar tanto na crítica aos formatos e conteúdos atualmente dominantes na esfera estatal, como – indo além – avançar também na reafirmação ou proposição de novos princípios, diretrizes, estratégias e táticas de ação (coletiva, contínua e cumulativa) que nos permitam conduzir a situação para um patamar qualitativamente superior de entendimento, organização e funcionamento do Estado nacional para as novas gerações de brasileiros e brasileiras, ainda no século XXI. São elas:

Projeto de país: o desenvolvimento nacional é o carro-chefe da ação do Estado, ou seja, o Estado não existe para si próprio, mas como veículo para o desenvolvimento da nação. Nesse sentido, fortalecer as dimensões do planejamento estratégico público, da gestão participativa e do controle social – estratégias essas de organização e funcionamento do Estado – é condição necessária para que possamos dar um salto de qualidade ainda no século XXI no Brasil.

Capacidade de governo: a necessidade de uma reforma do Estado de natureza republicana, que traga mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral, é condição inescapável para redirecionar a ação governamental para as necessidades vitais da população. 

Governabilidade: por fim, mas não menos importante, a revalorização da política e da democracia, pois não há como fazer uma mudança dessa envergadura sem a participação bem informada da maioria da população. A democracia não é apenas um valor em si, mas também um método de governo, por meio do qual as vontades da maioria da população se manifestam, eleitoral e periodicamente. Mas para além da democracia representativa em crise, há elementos de uma democracia participativa – e mesmo deliberativa – que pressionam por mais e melhores espaços de existência e funcionamento.

A proposta acima reafirma o fato de que, para debater tais desafios e lutar por um Estado moderno e serviços públicos de qualidade no Brasil, é preciso ter claro que em todas as experiências internacionais exitosas de desenvolvimento é possível constatar o papel fundamental do ente estatal como produtor direto, indutor e regulador das atividades econômicas para que essas cumpram, além dos seus objetivos microeconômicos essenciais, objetivos macroeconômicos de inovação e inclusão produtiva e de elevação e homogeneização social das condições de vida da população residente em território nacional.

Sendo o Brasil um país de dimensões continentais e com uma população estimada, em 2022, na casa dos 210 milhões de habitantes, trata-se, sem dúvida, de um enorme desafio político e econômico a provisão (quantitativa e qualitativamente) adequada de bens e serviços à totalidade da população residente no país. Daí não só a necessidade, mas inclusive a urgência, de iniciativas governamentais que não se restrinjam à mera gestão (ainda que eficiente) das políticas e programas já existentes de infraestrutura econômica, social e urbana. Trata-se, na verdade, da necessidade e urgência de iniciativas mobilizadoras das capacidades estatais e instrumentos governamentais à disposição dos governos e a serviço do desenvolvimento nacional. Dentre essas, destacamos aqui apenas sete, a saber:

1. (Re)ativação das capacidades estatais de planejamento governamental e de coordenação estratégica (inter e intra setorial, territorial e social) das políticas públicas nacionais e dos investimentos público-privados. Neste particular, é preciso compatibilizar a sustentabilidade empresarial de longo prazo com a função social pública das estatais, já que a eficiência microeconômica de curto prazo não pode estar acima da eficácia macroeconômica e da efetividade social nos médio e longo prazos. Coordenando as decisões pelo planejamento, o Estado deve atuar de forma muito ampla e intensa para modificar as estruturas socioeconômicas atávicas, bem como distribuir e descentralizar a renda, integrando, social e politicamente, a totalidade da população ao processo dinâmico do desenvolvimento nacional.

2. Nacionalização, reestatização e/ou criação de novas empresas estatais estratégicas e/ou empresas mistas de controle público, visando a retomada do poder decisório sobre políticas fundamentais ao crescimento econômico e ao desenvolvimento nacional.

3. Reforma tributária/fiscal progressiva na arrecadação e redistributiva nos gastos públicos: revisão das regras fiscais e monetárias vigentes (teto de gastos, regra de ouro, superávit primário e relação STN-BC) para uma melhor e mais efetiva governança orçamentária, vale dizer: orçamentação, alocação, monitoramento, avaliação e prospecção dos gastos públicos.

4. Inovação e gestão pública democrático-participativa: governo digital, dimensionamento, planejamento e profissionalização da força de trabalho, monitoramento, avaliação e gestão do desempenho institucional e das competências profissionais.

5. Relações de Trabalho no Setor Público: regulamentação dos direitos e condições de negociação coletiva e greve no setor público nacional, tal que uma verdadeira política de recursos humanos para o setor público brasileiro leve em consideração de modo articulado as etapas de seleção, capacitação, alocação, remuneração, progressão e aposentação.

6. (Re)adequação do peso e papel institucional dos controles burocráticos (interno e externo) do Estado e (re)institucionalização da participação social como método de governo: medidas para conferir mais e melhor transparência dos processos decisórios intragovernamentais e nas relações entre entes estatais e privados, bem como sobre resultados intermediários e finais dos atos de governo e das políticas públicas de modo geral.

7. Combate aos privilégios, injustiças e à corrupção: ter claro que a corrupção não diz respeito especificamente ao Estado e à dimensão política do poder, mas sim às relações espúrias que se estabelecem entre interesses privados/privatistas e o Estado/esfera pública. Por isso, a luta contra a corrupção deve ser concebida de modo subordinado ao aprofundamento do caráter democrático e republicano do Estado brasileiro.

Em suma, os fins do desenvolvimento devem ser fixados pela própria sociedade nacional, como faz o texto constitucional de 1988. No entanto, a vontade política para orientar e favorecer as transformações econômicas e sociais é indispensável para impulsionar e conduzir o processo de desenvolvimento endógeno. Um dos objetivos deste processo é a homogeneização social, com a garantia da apropriação do excedente econômico pela maior parte da população. O desenvolvimento endógeno exige também a internalização dos centros de decisão econômica, a dinamização e a integração do mercado interno, com grande ênfase para o desenvolvimento sustentável dos pontos de vista produtivo, tecnológico, humano e ambiental.

Tais considerações trazem a necessidade de repensar as bases e a estrutura do Estado brasileiro, sem deixar de levar em consideração a questão recolocada na atualidade acerca da prevalência das instituições democráticas sobre o mercado e a independência política do Estado em relação ao poder econômico privado, ou seja, a necessidade de o Estado ser dotado de uma sólida base de poder econômico próprio.

O tempo urge! Mãos à obra!


Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

José Celso Cardoso Jr

Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), atualmente é presidente da Associação dos Funcionários do Ipea e Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea (Afipea-Sindical).

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