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O Brasil pode mais

Uma das razões pelas quais é infrutífero tentar identificar virtudes ou acertos nas propostas recorrentes de reformas administrativas de índole liberal é que todas elas partem de diagnósticos equivocados acerca da natureza e formas de funcionamento dos Estados contemporâneos. Em síntese, tais propostas perfilam-se a uma visão liberal-conservadora do mundo e por isso sugerem medidas que visam, essencialmente, à redução do peso e papéis do setor público em suas relações com a sociedade e com o mercado. A sua ênfase recai, quase que exclusivamente, sobre a dimensão fiscal do problema, como se de mais eficiência (o mantra de fazer mais com menos recursos disponíveis) fosse possível obter, automaticamente, mais eficácia e efetividade da ação estatal. A ampliação ou melhoria do desempenho institucional do setor público se converte, portanto, numa promessa irrealizável do mero corte de gastos e de pessoal, objetivo esse indisfarçável da Proposta de Emenda Constitucional 32/2020 e suas congêneres.

Desta maneira, as políticas de austeridade tratam as finanças públicas e o orçamento público como sendo similares às finanças domésticas e ao orçamento familiar, de modo que ambos, setor público e famílias, deveriam operar segundo o preceito do orçamento sempre equilibrado ou superavitário. Por esta razão, na visão liberal, reformas da previdência e administrativas seriam fundamentais, pois ao apontar para uma redução do gasto público, transmitiriam ao mercado e agentes econômicos a sensação de solvabilidade e confiança na gestão da dívida pública. Medidas de austeridade seriam, portanto, o instrumento e a solução para restaurar a confiança empresarial e, com isso, estabelecer fundamentos para o crescimento econômico.

Essa relação entre austeridade governamental e confiança dos investidores é um mantra constante nos discursos correntes, o que tem levado governos a implementar reformas e políticas contracionistas – acompanhadas de recessão, estagnação ou mesmo deflação – em todo o globo. Considerar que o orçamento público funciona como o doméstico é uma abordagem simplista como também equivocada, ao não considerar que os governos, diferentemente de famílias e empresas, podem, por exemplo, incrementar ou reduzir suas receitas por meio de alterações nos tributos. Ademais, não leva em conta que uma parte dos gastos públicos retorna para os governos sob a forma de impostos, e que estes mesmos gastos, pelo volume e qualidade, podem agir favoravelmente sobre a atividade econômica de modo a ampliar a própria base arrecadatória. Famílias e empresas, por fim, ao contrário dos governos, não emitem moeda e nem títulos públicos, bem como não controlam a taxa de juros sobre suas dívidas, como faz o Banco Central.

Basicamente por essas razões, a equiparação entre setor público e finanças domésticas é falaciosa, e seu objetivo é tão somente limitar o papel e a importância da política fiscal para o crescimento ou a atenuação de efeitos negativos dos ciclos econômicos. É importante fixar: as restrições ao gasto no Brasil, um país que emite sua própria moeda e cujo governo é credor internacional, são autoimpostas pela legislação que sempre se pode alterar. O dinheiro do governo, portanto, não acabou nem acabará, mas as regras fiscais brasileiras, excessivamente rígidas, o impedem de gastar num momento em que a economia, depois de vários anos de crise, ainda não logrou recuperar o nível de renda de 2014.

Mas felizmente já vão se avolumando opiniões contrárias ao austericídio como ideia e prática dominantes no mundo. Economistas estrangeiros de grande influência internacional (tal como Ben Bernanke, 2019), e mesmo alguns brasileiros de formação liberal (como André Lara Resende, 2017) vêm afirmando que essa crença na austeridade como fim em si mesmo está assentada em suposições teórica e empiricamente equivocadas. Da mesma maneira, em livros recentes como o organizado por Cardoso Jr. e Marques (2022), evidências e estatísticas disponíveis mostram que países que seguem o receituário da austeridade crescem menos e/ou superam mais tardiamente situações de crise econômica. Ao contrário, países que adotam políticas econômicas que combinam virtuosamente o gasto público (gastos correntes e investimentos) com incentivos corretos, segurança jurídica e perspectiva econômica positiva, conseguem mobilizar complementarmente os investimentos privados no sentido de um crescimento econômico mais elevado e sustentável.

O BRASIL PODE MAIS

No caso brasileiro, apesar dos índices de confiança empresarial terem crescido desde a deposição de Dilma, da aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 referente ao teto de gastos, das reformas trabalhista e previdenciária e da eleição de Bolsonaro à presidência em 2018, os índices reais de atividade econômica e da produção industrial permanecem estagnados ou declinantes desde 2016, bem antes, portanto, da crise pandêmica (sanitária, econômica e social) deflagrada em 2020 e aprofundada pelo governo findo em 2022. Por isso, nada assegura que reformas administrativas liberal-conservadoras, todas centradas em redução de direitos e redução de entregas de bens e serviços à população, em arrocho salarial e em demissões diretas de servidores (e indiretas de trabalhadores cujas rendas dependem dos gastos daqueles) melhorem este quadro. Pelo contrário, devem agravá-lo, ou na melhor das hipóteses instaurar a estagnação com retrocesso social e concentração da renda como o novo normal brasileiro.

Neste particular, é preciso explicar que finanças públicas sustentáveis são algo diverso de finanças públicas estéreis. Finanças sustentáveis são aquelas assentadas em gastos primários responsáveis por políticas públicas, cujos efeitos agregados (e respectivos multiplicadores) tendem a ser positivos na medida em que geram emprego, renda, lucros e tributos ao longo do ciclo econômico. Seus determinantes são de ordem social, econômica e política. Já as finanças estéreis são aquelas de natureza e/ou destinação financeira, cujos multiplicadores são negativos e seus efeitos agregados contribuem para a ampliação do desemprego, pobreza e concentração de renda. Seus determinantes são autônomos, endógenos, não baseados em fatores reais da economia. Daí que o problema não é o déficit ou a dívida pública em si, mas apenas a sua composição e forma de financiamento ao longo do tempo. Evidentemente, a composição e a forma de financiamento da dívida federal brasileira são ruins, pois assentadas na lógica de valorização financeira dos seus fluxos e estoques.

Todos os dados oficiais disponíveis mostram haver um grande comprometimento anual de recursos públicos destinados ao gerenciamento (leia-se: garantia de liquidez e solvabilidade) da dívida pública federal brasileira. Significa que a captura da gestão da dívida pública pela lógica das finanças especulativas continua sendo um dos principais entraves ao crescimento econômico e um constrangimento inaceitável ao cumprimento dos direitos sociais no país. Não por outra razão, chamamos de austericídio ao conjunto de pressupostos ideológicos e diretrizes de política macroeconômica que conformam um arranjo institucional de gestão da área econômica do governo que, além de possuir precária fundamentação teórica e histórica, produz resultados opostos aos desejados, com enormes e negativas repercussões sobre a capacidade de crescimento, geração de empregos e distribuição de renda e riqueza numa sociedade, tal qual a brasileira, já marcada estruturalmente por imensas heterogeneidades, desigualdades e necessidades de várias ordens.

Em suma, os processos aqui narrados vão então institucionalizando o fenômeno da financeirização da dívida pública federal e privatização/privilegiamento da sua gestão pelas autoridades monetária (Banco Central do Brasil) e fiscal (Secretaria do Tesouro Nacional) do país. Tais fenômenos promovem, em função do arranjo normativo em consolidação, bloqueios e limites superiores ao gasto fiscal primário de natureza real, justamente o gasto que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, como as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental. Simultaneamente, consolidam-se regramentos que representam tanto a flexibilização sem limite superior como a blindagem política (inclusive para fins criminais) do gasto público financeiro, cujos principais beneficiários são as instituições financeiras (bancos, corretoras, seguradoras), fundos de investimento e demais agentes econômicos de grande porte, inclusive estrangeiros com atuação no país (Cardoso Jr., 2022).

Diante disso, fruto da indignação propositiva com a qual se reconstroem as sociedades e seus países, torna-se imperativo deslocar a alienação e a resignação impostas pela teoria ruim e por práticas nefastas de política econômica, substituindo-as por uma orientação geral capaz de levar o Brasil a processos consistentes e decididos de desfinanceirização e desprivatização das finanças públicas. Afinal, o Brasil pode mais!


Referências
BERNANKE, B. Monetary policy in a new era. In: BLANCHARD, O.; SUMMERS, L. H. (Ed.). Revolution or evolution? Rethinking macroeconomic policy after the great recession. Cambridge, United States: MIT Press, 2019.
CARDOSO JR., J. C. e MARQUES, R. (orgs.). Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil. Brasília: Fonacate, 2022.
CARDOSO JR. J. C. Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil: arranjo normativo e nefastas implicações ao desenvolvimento nacional. In: CARDOSO JR., J. C. e MARQUES, R. (orgs.). Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil. Brasília: Fonacate, 2022.
RESENDE, A. L. (Org.). Juros, moeda e ortodoxia: teorias monetárias e controvérsias políticas. 1. ed. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2017.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

José Celso Cardoso Jr

Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), atualmente é presidente da Associação dos Funcionários do Ipea e Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea (Afipea-Sindical).

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