O governo Lula priorizou questões importantes para o início do seu mandato, como o arcabouço fiscal e a reforma tributária, temas hegemônicos no debate político atual e na pauta do Congresso. Não há quem discorde que essas questões devem fazer parte de qualquer lista de prioridades que se acumulam no país, como educação, saúde e segurança pública. 

No entanto, há uma reforma que não pode ser esquecida e precisa ser assumida pelo centro do governo desde já: a da gestão pública, que impacta todas as políticas públicas na produção de resultados efetivos, eficazes e eficientes e na prestação de serviços aos cidadãos e empresas. Diariamente, milhões de pessoas e milhares de empresas acessam os serviços públicos e constroem, com base nessas interações, uma avaliação da importância do Estado em suas vidas. 

Se o Estado não for capaz de fornecer serviços públicos de acordo com as necessidades da população e com equidade, sua legitimidade será contestada, propiciando o fortalecimento do populismo político demagógico. Portanto, as consequências do mau funcionamento da administração pública são graves, tanto no que diz respeito à qualidade de vida da população quanto à democracia, como pudemos constatar no enfrentamento da pandemia do COVID-19. Esses fatos são ignorados por aqueles que associam a reforma da gestão pública apenas a aspectos fiscais.

Reclamamos do mau atendimento às nossas demandas específicas, mas não compreendemos que a solução é fruto de uma ação coletiva para reivindicar uma reforma nas regras de gestão e controle que regem a administração pública, valorizando mais o alcance de resultados para a sociedade e menos os processos.

Geralmente, debatemos reformas nas diversas políticas públicas, mas nos esquecemos de que elas devem ser implementadas. Muitos direitos foram criados na Constituição de 1988 sem que os constituintes se preocupassem em garantir sua efetivação. Essa garantia só pode ser fornecida por uma administração pública de qualidade, eficiente, transparente e com financiamento adequado.

Um dos principais legados de um governo é desenvolver as capacidades da administração pública — formulação, execução, inovação, controle e avaliação de políticas — para produzir resultados para a sociedade durante o seu mandato e para as futuras gerações. Os governos devem prestar contas de seus atos à sociedade com o fim de desenvolver essas capacidades. A falta de uma legislação desse tipo demonstra que a sociedade brasileira ainda não atribuiu a devida importância a esse tema.

Reclamamos do mau atendimento às nossas demandas específicas, mas não compreendemos que a solução é fruto de uma ação coletiva para reivindicar uma reforma nas regras de gestão e controle que regem a administração pública, valorizando mais o alcance de resultados para a sociedade e menos os processos. Entendo que seja muito difícil que essa reivindicação mobilize politicamente a população e, portanto, essa tarefa cabe aos líderes políticos.

A legislação atual gera uma enorme insegurança jurídica para o gestor público e torna o processo decisório muito lento. Qual incentivo os administradores e servidores públicos têm no modelo atual de gestão e controle? Devem se dedicar à melhoria da prestação de serviços aos usuários ou defender-se dos órgãos de controle? Como dizia o guru da administração, Peter Drucker: “gerir é tomar providências para que os resultados ocorram”. Se a tomada de providências na gestão pública estiver excessivamente burocratizada, enfrentaremos dificuldades para gerar resultados que melhorem a qualidade de vida da população.

A reforma da gestão pública envolve todos os poderes e níveis de governo, além de uma ampla gama de interesses institucionais, políticos e econômicos.

Para desenvolver continuamente as capacidades organizacionais da gestão pública, precisamos persistir em profissionalização, transparência, parceria entre os órgãos de controle e gestão, incentivo à participação da sociedade e implementação de um modelo de gestão com ênfase em resultados. Além disso, é igualmente importante fortalecer o compromisso da burocracia com o interesse público e seu respeito pelo poder político.

Muitas políticas públicas levam vários anos para alcançar seus objetivos plenos. Por isso, a decisão de descontinuar políticas públicas herdadas de governos anteriores deve passar por processos de avaliação de custo/benefício para verificar se atendem ao interesse público. A existência desse tipo de prática ao longo do tempo facilitará a manutenção das que trouxeram resultados positivos durante a transição de governos e dificultará decisões demagógicas de desconsiderar tudo o que estava sendo feito simplesmente por serem projetos do governo anterior. Não podemos mais aceitar práticas políticas que desperdiçam os recursos e a energia da sociedade em debates inúteis e adiam a resolução dos problemas que dificultam o acesso da população e das empresas aos serviços públicos.

Além disso, é preciso rever as práticas patrimonialistas, clientelistas e fisiológicas na relação da classe política com a administração pública, pois elas aumentam o risco de decisões que não atendem a requisitos técnicos mínimos e comprometem a qualidade do gasto público. Essas mazelas de nossa cultura política podem ser minimizadas com um maior envolvimento do Congresso Nacional no debate do tema. Isso pode ser feito por meio da criação de um instituto de gestão pública independente no âmbito do Legislativo, para assessorar e orientar os parlamentares sobre a reforma, superando a desconfiança existente na relação com o Executivo e aumentando o comprometimento do Poder Legislativo com o tema.

A reforma da gestão pública precisa ser sustentável ao longo dos diferentes governos.

A reforma da gestão pública envolve todos os poderes e níveis de governo, além de uma ampla gama de interesses institucionais, políticos e econômicos. Essa multiplicidade de atores e interesses que intervêm na gestão pública não tem sido devidamente considerada no debate público, dificultando a identificação, pela população, do conjunto de problemas que afetam a prestação dos serviços públicos. No entanto, esse ambiente político-administrativo tem consequências graves na gestão e, portanto, na geração de resultados para a sociedade.

Atualmente, tanto a população quanto a mídia atribuem a um único responsável as dificuldades de acesso aos serviços públicos: o gestor público em exercício. Esse fato é explorado politicamente por todos os atores. Gostamos de encontrar um culpado, no entanto, não há apenas uma parte a ser responsabilizada. Como mencionei anteriormente, é um problema de ação coletiva, e apontar um culpado é uma manobra política diversionista que atende a alguns interesses, mas não resolve o problema do acesso da população aos serviços públicos. A prova disso é que, embora haja alternância entre diferentes governos, de vários partidos, continuamos enfrentando muitas deficiências na prestação de serviços públicos. Não podemos mais acreditar que basta eleger um “salvador da pátria” e tudo se resolverá. Não é tão fácil assim, ainda que a eleição de líderes comprometidos com a melhoria da prestação dos serviços públicos facilite muito o debate e o encaminhamento das reformas.

A reforma da gestão pública precisa ser sustentável ao longo dos diferentes governos. Por isso, ela só será viável se for negociada em um amplo diálogo com a sociedade, envolvendo todos os poderes, os órgãos intervenientes na gestão e o  governo federal, que deve liderar o debate.

A nota é de responsabilidade do autor e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ele está vinculado.

Ricardo de Oliveira

Engenheiro de produção, foi secretário estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo (ES) entre 2005 e 2010 e secretário estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. É autor dos livros "Gestão Pública: Democracia e Eficiência" (2012) e "Gestão Pública e Saúde" (2020), publicados pela editora da FGV. Também é conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e membro do comitê de filantropia da UMANE.

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