A Constituição de 1988, embebida do contexto de redemocratização do Estado brasileiro, universalizou o acesso a direitos fundamentais sociais, que devem ser promovidos mediante prestação de serviços públicos, estabeleceu o concurso público como a principal forma de ingresso no funcionalismo público e consolidou a estabilidade dos servidores públicos após período de estágio probatório (SCHIER, 2016; GONÇALVES, 2022).

Em outras palavras, a operacionalização do acesso universal aos direitos fundamentais sociais se dará mediante a entrega de serviços públicos, que são desempenhados pelos servidores públicos. Nesse contexto, a estabilidade constitui garantia conferida aos servidores públicos contra a demissão arbitrária para que atuem com independência funcional e promovam a continuidade dos serviços públicos. Mais especificamente, para que os servidores atuem com impessoalidade e eficiência, mediante o desenvolvimento de uma “burocracia estável e profissionalizada” (SANTOS, s.d, p. 31).

Para proteção contra a demissão arbitrária, a Constituição de 1988 estabeleceu que o servidor público efetivo somente perderá o cargo em três hipóteses: (i) sentença judicial transitada em julgado; (ii) processo administrativo com respeito à ampla defesa; ou (iii) avaliação periódica de desempenho, assegurada a ampla defesa na forma de lei complementar. Todavia, na ausência de lei complementar, a terceira hipótese encontra-se sem aplicabilidade (art. 41, § 1º, da CR/88) (GONÇALVES, 2022).

Com enfoque no sentido teleológico da estabilidade, Villa-Verde Filho (1997, p.189) a definiu como “a garantia que, ao mesmo tempo em que estimula o profissionalismo dentro do serviço público, proporciona independência funcional”. Além disso, a estabilidade não foi uma criação da Constituição de 1988, mas apresentou versão aprimorada das constituições anteriores, não foi uma criação brasileira, mas apresentou modelo próprio. 

Como exemplo, em 1995, diante da publicação do texto Flexibilidade sem medo, que defendia a alteração do modelo de estabilidade constitucional, inúmeros juristas se manifestaram de maneira contrária (VILLA-VERDE FILHO, 1997, p. 185). Dentre eles, a então advogada Cármen Lúcia, ao explicar que “a estabilidade tem como escopo conferir independência ao servidor. Livre do receio da perda do emprego, o servidor desempenhará suas funções sem a preocupação de agradar e sem o medo de desagradar aos que estão transitoriamente no poder” (VILLA-VERDE FILHO, 1997, apud, p. 198).

Em síntese, a estabilidade do servidor público foi institucionalizada para a operacionalização do modelo de Estado brasileiro e não como consolidação de uma conquista de ordem trabalhista. Contudo, a concepção de um funcionalismo público protegido contra arbitrariedades e garantidor da continuidade dos serviços públicos com impessoalidade e eficiência pode ser abruptamente raptado pela prática de assédio no local de trabalho.

Assédio e violência no trabalho: do conceito à lei

O assédio no local de trabalho representa a terminologia que o direito, embora não exclusivamente, atribuiu à violência oriunda das relações de trabalho. Por certo, uma terminologia representa um recorte de atributos específicos relacionados a um determinado fenômeno. Ou seja, os conceitos assédio moral e assédio sexual representam recortes de atributos específicos da violência oriunda das relações de trabalho. 

Todavia, no contexto internacional, não há uma padronização em relação aos conceitos adotados para representar a violência oriunda das relações de trabalho, conforme identificado durante os procedimentos que resultaram na aprovação da Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2019, sendo a primeira norma internacional sobre o tema. Razão pela qual optou-se pela adoção de uma definição ampla de assédio e violência, com espaço de liberalidade para que os países membros se adaptem aos respectivos ordenamentos jurídicos e aspectos culturais (PILLINGER; RUNGE; KING, 2020). 

A Convenção nº 190 definiu como violência e assédio no mundo do trabalho “um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou de suas ameaças, de ocorrência única ou repetida, que visem, causem, ou sejam susceptíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, e inclui a violência e o assédio com base no gênero” (art. 1º, item 1, alínea a, OIT, 2019). Enquanto violência com base no gênero compreende-se como “violência e assédio dirigido às pessoas em virtude do seu sexo ou gênero, ou afetam de forma desproporcionada as pessoas de um determinado sexo ou gênero, e inclui o assédio sexual” (art. 1º, item 1, alínea b, OIT, 2019).

Os países membros deverão adotar “leis e regulamentos para definir e proibir a violência e o assédio no mundo do trabalho, incluindo a violência e o assédio com base no gênero” (art. 7º, item 1, alínea b, OIT, 2019). Ou seja, a adequação do Brasil à Convenção nº 190 prescinde da definição conceitual que compreenda todo tipo de assédio e violência no mundo do trabalho, com perspectiva de gênero.

A violência na teoria de Galtung

Johan Galtung, sociólogo precursor nos Estudos de Paz e Resolução de Conflito, compreende a paz como a ausência de qualquer tipo de violência. Logo, defende que “para melhor compreendermos os significados da paz, é importante escrutinar os significados da violência” (COSTA, 2022, p. 2). Nesse sentido, dedicou-se à compreensão do fenômeno da violência, que resultou em diversas publicações relevantes, dentre elas o artigo Cultural Violence, de 1990, no qual Galtung apresentou o conceito de violência cultural e sua articulação com a violência estrutural e violência direta. 

A violência direta “possui a relação sujeito-ação-objeto, sendo um fenômeno observável e fácil de ser expresso por meio da linguagem” (PALHARES; SCHWARTZ, 2015, p. 17). A violência estrutural trata-se daquela enraizada nas estruturas e instituições, que perpetuam a desigualdade, muitas vezes sem a necessidade de ação direta de indivíduos. Por fim, a violência cultural refere-se à maneira como as normas, valores, crenças e práticas culturais podem perpetuar a violência de outras formas. Isso inclui estereótipos, preconceitos e ideologias que justificam a violência e a opressão. A violência cultural faz com que a violência direta e estrutural pareça, até mesmo, correta – ou pelo menos não errada” (GALTUNG, 1990, p. 291)1.

A síndrome triangular da violência, representada pela imagem de um triângulo, demonstra como os três grandes tipos de violência cunhados por Galtung se sustentam ou alimentam. A posição do triângulo pode ser alterada para ora a violência direta ser sustentada pela violência sistêmica e violência cultural, ora para a violência cultural legitimar a violência direta e estrutural, criando a possibilidade de seis posições (três para baixo – triângulo invertido e três para cima – triângulo regular) (GALTUNG, 1990, p. 294).

Todavia, apesar da comunicação entre os três tipos de violência, Galtung (1990, p. 302) destacou a importância de trabalhar com todos os tipos ao mesmo tempo, sem presumir que a mudança em um tipo vai automaticamente promover mudanças nos outros. Isso porque cada tipo de violência, ao ser sustentada pelas demais, constrói a própria base.

Galtung (1990, p. 295) ainda idealizou uma imagem complementar ao triângulo, denominada strata da violência, com a seguinte estrutura: na base está a violência cultural oferecendo substrato para o desenvolvimento da violência estrutural e da violência cultural. Na camada intermediária, encontra-se a violência estrutural que promove o ritmo e os padrões. No topo, encontra-se a violência direta, de maneira visível.

Nesse sentido, destacou que a violência direta é um evento. A violência estrutural é um processo e a violência cultural uma constante. A violência cultural faz com que a violência direta e estrutural pareça, até mesmo, correta – ou pelo menos não errada” (GALTUNG, 1990, p. 291).

Dito isso, o assédio no local de trabalho como uma manifestação da violência deve ser compreendida como ato de violência direta, que é mantida pela violência estrutural e a violência cultural. Como exemplo, o ato de assédio sexual que chega a um canal de denúncia ocorre em um cenário de ausência de legislação ou legislação insuficiente, e ausência de políticas internas estruturadas e permissividade em relação à violência contra as grupos vulnerabilizados. 

Logo, a compreensão do assédio no local de trabalho como violência direta nos remete à compreensão de um sistema que permite que ela aconteça e nos direciona para o local adequado para que as mudanças sejam promovidas.

Fonte: Galtung, 1990.

O cenário brasileiro atual é marcado pela ausência de lei federal com abrangência nacional que apresente a conceituação de assédio e violência no mundo do trabalho. Em 2023, aprovou-se alteração no Estatuto da Advocacia para incluir o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação como infrações disciplinares, cuja penalidade aplicável é a suspensão. Todavia, a legislação se destina aos advogados e não contemplou a perspectiva de gênero (lei nº 14.612/2023).

A lei nº 14.540, também publicada em 2023, instituiu o “Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal”. Trata-se de lei federal com abrangência nacional destinada ao setor público, que não apresentou conceitos próprios e determinou a adoção do conceito de violência previsto no Código Penal, na Lei Maria da Penha e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

De todo modo, no setor público, os entes federativos possuem competência para legislar acerca do próprio Regime Jurídico Único (RJU), incluindo a parte disciplinar, conforme comando constitucional do art. 39. Ou seja, União, estados, Distrito Federal e municípios podem legislar acerca do assédio moral e/ou sexual praticado no âmbito da administração pública.

No âmbito da União, não há previsão legislativa sobre o assédio moral e/ou sexual, diante da omissão do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis (lei nº 8.112/90). No âmbito dos estados e no Distrito Federal, a ausência de legislação adequada também é uma realidade, considerando a possibilidade de regulamentação via Regime Jurídico Único ou lei esparsa.

Fonte: Elaboração própria com base em consulta direta às legislações.

No total, 15 unidades federativas legislaram sobre assédio moral e/ou sexual no âmbito da administração pública. Todavia, somente cinco contemplaram o assédio moral e o assédio sexual, seja no Regime Jurídico Único (Distrito Federal, Goiás e Mato Grosso) ou em leis esparsas (Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul)2. Desagregando por tema, o assédio sexual foi regulamentado em 6 unidades federativas, em comparação ao assédio moral, regulamentado por 14 unidades federativas.

Da análise da previsão conceitual, depreende-se que apenas duas unidades federativas definiram o assédio sexual: Amazonas e Rio Grande do Sul, enquanto 12 unidades federativas descreveram o assédio moral, quais sejam, Acre, Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Tocantins, Rondônia, São Paulo e Sergipe.

A inclusão de um tipo restrito de assédio sexual, em 2001, enquanto crime previsto no art. 216-A do Código Penal pode ter contribuído para um menor engajamento dos estados em legislar sobre o tema. A tendência na utilização do direito penal para solucionar questões atinentes a assédio e violência no mundo do trabalho foi observada pela OIT, que, todavia, pontuou a insuficiência em cobrir “a ampla gama de comportamentos e práticas inaceitáveis” (abarcada pela Convenção nº 190 (OIT, 2021, p. 14). 

No contexto brasileiro, considerando todo o aparato constitucional que destaca a independência entre as instâncias cível-administrativa-criminal, a competência dos entes federativos para legislar sobre as próprias carreiras, a ausência de hierarquia entre o processo administrativo e o processo judicial no que tange ao servidor público e a não regulamentação do assédio sexual apontam para um despreparo em apresentar soluções aos servidores no âmbito administrativo e correcional. 

Por outro lado, considerando o modelo de classificação até então adotado no Brasil, assédio e violência no mundo do trabalho que não possuem conotação sexual enquadram-se como assédio moral (harcèlement moral), modalidade desenvolvida pela psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen (2019, p. 17), que o definiu como “toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho”.

Como visto, a repetição nem sempre foi um elemento do conceito de Hirigoyen. Conforme observou a socióloga Saguy (2003), diante da inclusão do assédio moral na legislação francesa, a teoria foi adaptada para introduzir a repetição como elemento constituinte do assédio moral. Outro ponto é que, em 2004, Hirigoyen declarou que a lei belga se aproxima mais do seu trabalho do que a francesa. Em 2019, disse que o assédio moral no trabalho havia se tornado um termo genérico que abarca vários tipos de violência, como o bullying.

O conceito de assédio moral não foi adotado pela Convenção nº 190 da OIT, apesar de ter sido aclamado pelo Brasil e pela França. Enquanto o Brasil requereu a inclusão da palavra moral antes de assédio (harassment), a França propôs incluir que assédio deve ser compreendido como comportamentos repetidos (OIT, 2018, p. 35), ambos rejeitados diante da ausência de uniformização entre os países membros. De todo modo, o conceito inicial de Hirigoyen ainda persiste no Brasil.

Dos 12 conceitos de assédio moral previstos nas legislações estaduais, 10 fazem menção ao elemento repetição como constituinte de ato de assédio moral, apresentadas mediante as seguintes variáveis: pela repetição; de modo repetitivo e prolongado; praticada de forma repetitiva; praticada de modo repetitivo e prolongado; repetitivas ou sistemáticas; exercidas de forma sistemática durante certo tempo; praticada de modo repetitivo e prolongado; ação repetitiva ou sistematizada; repetitivas e prolongadas vezes (Apêndice II). Apenas Minas Gerais e Rondônia apresentaram hipóteses de assédio moral não vinculadas ao elemento da repetição. 

Dentre as repercussões da exigência de repetição encontra-se a barreira da responsabilização na esfera administrativa disciplinar. Das 12 unidades federativas que conceituaram assédio moral, 4 exigem a reincidência para a aplicação de penalidade superior à advertência/repreensão, quais sejam, Ceará, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rondônia e Sergipe, enquanto no estado Acre exige-se a reincidência para aplicar a penalidade de demissão. Já no Rio Grande do Sul delimitam-se as penalidades de curso de aprimoramento pessoal, repreensão, suspensão e multa.

Nesses casos, a responsabilização da pessoa que praticou assédio depende da repetição da repetição. Ou seja, para se configurar assédio moral, exige-se a repetição de conduta e para aplicar penalidade média exige-se a repetição da infração administrativa. Apesar disso, não há segurança em proteger somente atos abusivos que ocorreram de maneira repetitiva.

O paradigma do trabalho de Hirigoyen é que o assédio decorre de relações interpessoais e viola a integridade do trabalhador. Lógica que coexistiu, à época, com o paradigma de que o assédio é um subtipo de discriminação (SAGUY, 2003). O intuito de Hirigoyen, ao desenvolver o conceito de assédio moral, era destacar a prática de assédio psicológico praticado por meio da degradação das condições de trabalho. O conceito abarca dois elementos relevantes: a violência psicológica e o processo de trabalho.

Contudo, o conceito de assédio moral, ao ignorar fatores de discriminação, se desenvolve sob a falsa premissa de inequidade que para existir deveria desconstruir os efeitos dos marcadores sociais de diferença no ambiente de trabalho. Por certo, para além dos marcadores sociais de diferença, o ambiente de trabalho possui dinâmica de poder próprio que interage, mas não anula, os fatores de discriminação.

Por outro lado, nos países cujo paradigma é o assédio como um subtipo de discriminação, adotam-se conceitos amplos de assédio sexual (sexual harassment), como Estados Unidos, Austrália, Inglaterra e Canadá. Nesse contexto, o assédio sexual se divide entre: (i) assédio sexual por chantagem (quid pro quo); e (ii) assédio sexual por intimidação (hostile environment), como adotado pelo Comitê de Peritos para a Aplicação das Convenções e das Recomendações (CEACR) da OIT em interpretação da Convenção nº 111 (OIT, 2003, p. 256).

Nesse modelo, atos praticados por discriminação de gênero como (i) ofender uma mulher por meio da ofensa às mulheres enquanto grupo; (ii) avaliar a forma de uma pessoa se vestir ou conversar com base em estereótipos de gênero; ou (iii) atitudes como perguntas sobre a vida privada ou aparência pessoal são classificadas como assédio sexual por intimidação (THE U.S EQUAL EMPLOYMENT OPPORTUNITY COMMISSION, 2022; ONTARIO HUMAN RIGHTS COMISSION, 2022; Comissão Australiana De Direitos Humanos, s.d).

A adaptação das nomenclaturas utilizadas pela CEACR ao contexto brasileiro foi realizada pela própria OIT em conjunto com o Ministério Público do Trabalho – MPT (2017). O assédio sexual quid pro quo recebeu a nomenclatura de assédio sexual por chantagem, sendo “o que ocorre quando há a exigência de uma conduta sexual, em troca benefícios ou para evitar prejuízos na relação de trabalho” (MPT; OIT, 2017, p. 10). Já o assédio sexual por ambiente hostil (hostile environment) recebeu a nomenclatura de assédio sexual por intimidação, sendo “o que ocorre quando há provocações sexuais inoportunas no ambiente de trabalho, com o efeito de prejudicar a atuação de uma pessoa ou de criar uma situação ofensiva, de intimidação ou humilhação (MPT; OIT, 2017, p. 10).

Modelo do Amazonas

A lei estadual nº 5.378/2021 estabeleceu práticas de combate ao assédio sexual na administração pública, que recebeu a seguinte definição: “comportamento sexual indesejado, de caráter não consensual, que humilhe, ofenda ou intimide determinada vítima” (art. 1º, parágrafo único).

Apresentou no rol exemplificativo condutas como “mensagens sexuais explícitas em e-mails, mensagens de texto ou mídia social usando equipamentos da Administração Pública ou equipamentos pessoais no âmbito dos estabelecimentos públicos” e “comentários sexualmente sugestivos quanto a aspecto de aparência física, como peso, altura, formato do corpo, condição de pele, tatuagens ou marcas de nascimento”.

Ainda no parágrafo único, esclareceu que se compreende como ato de assédio sexual “todo e qualquer comportamento sexual, seja ele físico, verbal ou escrito, que cause perturbação ou constrangimento, e crie um ambiente intimidativo, hostil, humilhante e desestabilizador”.

Neste ponto, ao vincular a prática de assédio sexual a comportamentos que originam ambientes intimidativos, hostis, humilhantes e desestabilizadores, a lei estadual acertadamente se aproximou do conceito de assédio sexual por intimidação, aquele que atinge a dignidade sexual da pessoa assediada com efeito próximo ao do assédio moral, ou seja, sem o intuito de prática de ato sexual.

Outro ponto relevante é a explicação sobre consentimento, o qual a lei estadual definiu que “se a conduta tiver natureza sexual e não for bem-vinda pela pessoa que recebe, e, provavelmente, gerar ofensa, humilhação ou intimidação, será considerado assédio sexual, independente da motivação do assediador” (art. 3º).

Ao não incluir o dolo como elemento configurador do assédio sexual enquanto ilícito administrativo, regido por regras de direito público, a lei estadual contemplou o Princípio da Independência das Instâncias e fomentou que a administração pública estadual cumpra com o dever de proteção integral dos servidores, o que não se confunde com as finalidades do direito penal. 

Pontua-se, por fim, a menção à prática de intervenção dos espectadores, ainda que sem utilizar a denominação, ao definir que: “os funcionários públicos do Estado do Amazonas deverão ser informados através de palestras, aulas e workshops sobre como intervir em casos de assédio sexual e sobre as devidas formas de direcionar as denúncias” (art. 4º).

Na concepção original da OIT, assédio sexual por chantagem ocorre quando a investida de violação sexual é usada, implícita ou explicitamente, como base de uma decisão que interferirá na carreira da pessoa assediada, como oportunidade de promoção, progressão de carreira, alocação e avaliação de desempenho. Enquanto o assédio sexual por intimidação é marcado por condutas de humilhação e constrangimento da vítima, que comprometem a qualidade do local de trabalho (OIT, 2003, p. 256). 

A similitude entre os conceitos de assédio moral e assédio sexual por intimidação fora observada pela socióloga Saguy (2003, p. 128), ao pontuar que os mesmos comportamentos previstos no conceito de assédio moral adotado pela França se enquadrariam em assédio sexual por intimidação nos Estados Unidos. Nesse caso, o que diferencia os conceitos são os componentes da discriminação e da repetição. Enquanto nos EUA exige-se a demonstração de viés discriminatório da conduta, na França exige-se a comprovação de repetição da conduta.

No contexto brasileiro, identificou-se a conexão ou similitude entre o assédio moral e o assédio sexual por intimidação, cuja diferenciação ocorre pela “conotação sexual presente nos meios utilizados ou nos fins pretendidos” (MPT; OIT, 2017, p. 15). Ou seja, a conotação sexual será o elemento diferenciador entre o assédio moral e assédio sexual.

Fonte: Elaboração própria, 2023.

De acordo com o modelo identificado nas legislações estaduais e leis federais que disciplinaram o assédio no âmbito da administração pública, atos de violência sem conotação sexual, ainda que com conteúdo discriminatório, somente serão enquadrados como assédio moral mediante a repetição da conduta. Por outro lado, a adoção do conceito de assédio sexual importado do Código Penal do Brasil (semelhante ao modelo francês) deixa os atos praticados com conotação sexual que, todavia, não exigiram a prática de ato sexual.

Em outubro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça revisou a Resolução nº 251/2020 que instituiu a Política de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio no Poder Judiciário e modificou o conceito de assédio moral, que era previsto da seguinte forma:

Processo contínuo e reiterado de condutas abusivas que, independentemente de intencionalidade, atente contra a integridade, identidade e dignidade humana do trabalhador, por meio da degradação das relações socioprofissionais e do ambiente de trabalho, exigência de cumprimento de tarefas desnecessárias ou exorbitantes, discriminação, humilhação, constrangimento, isolamento, exclusão social, difamação ou abalo psicológico (CNJ, 2020).

E com o advento da Resolução nº 518/2023, o conceito de assédio moral passou a ser:

Violação da dignidade ou integridade psíquica ou física de outra pessoa por meio de conduta abusiva, independentemente de intencionalidade, por meio da degradação das relações socioprofissionais e do ambiente de trabalho, podendo se caracterizar pela exigência de cumprimento de tarefas desnecessárias ou exorbitantes, discriminação, humilhação, constrangimento, isolamento, exclusão social, difamação ou situações humilhantes e constrangedoras suscetíveis de causar sofrimento, dano físico ou psicológico (CNJ, 2023).

O novo conceito não mais contempla a repetição como um elemento constituinte do assédio moral. Lado outro, o conceito de assédio sexual não foi modificado e continua tratando de maneira ampla as duas modalidades (por chantagem e por intimidação). 

Conclui-se que o conceito de assédio moral, apesar de amplo e genérico, é insuficiente para construir a proteção legal das pessoas afetadas pelo assédio. Sendo assim, para que atos de assédio não fiquem descobertos, é essencial a adoção das duas modalidades de assédio sexual (por intimidação e chantagem), além da retirada do fator repetição como elemento constituinte do assédio moral.

Assédio em números

O ato de assédio praticado por servidor público poderá ter repercussões na esfera administrativa e/ou judicial. Na esfera administrativa, as pessoas afetadas pelo assédio poderão apresentar denúncias, manifestações, notícias e, idealmente, ter soluções apresentadas, dentre elas a instauração de procedimentos administrativos. Enquanto que na esfera judicial poderão requerer questões inerentes à carreira (administrativo), à responsabilidade civil (cível) ou à apuração de crimes, mediante representação do Ministério Público (criminal) incluindo questões disciplinares.

Fonte: Elaboração própria, 2023.

Da denúncia ao processo

Diante da ausência de parametrização de conceitos, observa-se uma tendência a privilegiar o assédio moral em detrimento do assédio sexual, por vezes predestinado ao direito penal. De fato, os servidores públicos identificam a violência sofrida no trabalho, majoritariamente, como assédio moral. 

No contexto atual, a percepção dos servidores sobre assédio e violência no trabalho pode ser identificada por meio de pesquisas diretas, como uma realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, ou por meio dos dados de canais de denúncias, apesar do cenário de subnotificação e subdimensionamento. 

Na 2ª Pesquisa Nacional sobre Assédio e Discriminação no âmbito do Poder Judiciário, que ficou aberta para preenchimento de dezembro de 2022 a janeiro de 2023, 56,4% dos respondentes declararam já terem sofrido assédio ou discriminação no ambiente de trabalho. Dentre eles, podendo preencher mais de uma opção, 87,9% dos respondentes identificaram a violência como assédio moral, comparado a 14,8% como assédio sexual e 13,1% como discriminação em razão do gênero (CNJ, 2023). 

Destaca-se que dentre as mulheres o percentual de respondentes que declararam já terem vivenciado situação de assédio ou discriminação sobe para 62,5% e dentre as pessoas negras sobe para 70,2%. A análise interseccional não foi divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça. (CNJ, 2023).

No âmbito federal, os dados sobre as denúncias e/ou manifestações sobre assédio moral e sexual do Sistema de Ouvidoria do Poder Executivo Federal são disponibilizados no painel Resolveu? da Controladoria-Geral da União. Em 2022, 82% (2.995) das denúncias e/ou manifestações sobre assédio apresentadas no âmbito do executivo federal foram classificadas como assédio moral, em detrimento a 18% (643) de assédio sexual. No mesmo recorte, caso as instituições de ensino sejam desagregadas, nota-se que concentraram 36% das denúncias e/ou manifestações totais de assédio do executivo federal, correspondendo ao total de 985 relacionadas a assédio moral, em contraponto a 307 de assédio sexual. 

Ainda com base nas informações do painel da CGU, em 2023, até o mês de outubro, observou-se aumento no número de denúncias e/ou manifestações de assédio, que já computavam 6.127. Contudo, cerca de 83% continuam se concentrando no assédio moral (5.111), em contraponto a 17% no assédio sexual, distribuição similar ao ano anterior (CGU, 2023).

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do painel Resolveu? da Controladoria-Geral da União.

As instituições de ensino concentraram maior proporção de denúncias de assédio sexual em 2022. Em análise sobre a distribuição das categorias por percentual, no panorama geral identificou-se a proporção de 82% de assédio moral e 18% de assédio sexual, enquanto nas instituições de ensino ocorreu 75% de assédio moral e 25% de assédio sexual. Em números absolutos, observou-se que denúncias e/ou manifestações classificadas como assédio sexual nas instituições de ensino, sendo 336, superaram o número relacionado ao restante do executivo federal, de 307. 

No âmbito estadual, identificou-se que todas as unidades federativas disponibilizam algum tipo de canal de denúncia online. Todavia, não possuem canal específico para recebimento das denúncias e/ou manifestações internas relacionadas aos servidores públicos ou relacionadas a assédio moral e sexual. Minas Gerais é a única exceção, uma vez que possui ouvidoria especializada para recebimento de registros de assédio praticados pelos servidores públicos. As ouvidorias, ou órgãos equivalentes, são responsáveis por receber e tratar as denúncias e/ou manifestações (i) externas, apresentadas pelos cidadãos em relação à prestação dos serviços públicos e todo tipo de ilícito administrativo; e (ii) internas apresentadas pelos servidores ou pessoas afetadas por assédio no âmbito da administração pública.

Ouvidoria de Prevenção e Combate ao Assédio Moral e Sexual

Minas Gerais instituiu diversas ouvidorias temáticas, ligadas à Ouvidora-Geral do Estado, dentre elas a Ouvidoria de Prevenção e Combate ao Assédio Moral e Sexual, responsável, desde 2019, pelo acolhimento das denúncias e/ou manifestações de assédio moral e sexual praticados por agentes públicos do poder executivo estadual.

Ou seja, apesar de temática, a ouvidoria recebe denúncias e/ou manifestações internas ou externas (de cidadãos) em relação a atos de assédio moral e sexual praticados por servidores públicos.

Além disso, desenvolve ações de prevenção e o enfrentamento do assédio moral e sexual, e percorre os municípios mineiros por meio do projeto Ouvidoria-Móvel. Diante da setorização das temáticas, dados específicos sobre as denúncias de assédio são disponibilizados em relatórios trimestrais.

Fonte: https://www.ouvidoriageral.mg.gov.br/ouvidorias-tematicas/assedio-moral.

Por certo, a ausência de canal de denúncia específico para o servidor público prejudica a coleta e a organização dos dados, o treinamento das equipes que terão de gerenciar manifestações relacionadas a temáticas diversas e desconexas, além de comprometer o devido acolhimento dos servidores.

Ainda no âmbito estadual, identificou-se que 23 unidades federativas compartilharam, em algum nível de detalhamento e periodicidade, os dados das denúncias e/ou manifestação recebidas pelos canais oficiais. Contudo, apenas 14 unidades federativas desagregaram as informações por assunto e somente nove disponibilizam dados sobre denúncias de assédio, quais sejam, Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Paraíba.

Inteligência IZA

O Distrito Federal desenvolveu e lançou, em dezembro de 2022, a inteligência artificial nomeada IZA, com o intuito de auxiliar a Ouvidoria-Geral na reclassificação das demandas apresentadas pelos cidadãos, ao identificar a definição da tipologia do fato narrado de forma simplificada.

Como exemplo, as denúncias e/ou manifestações casos de assédio moral e assédio sexual no serviço público apresentadas à Ouvidoria do Distrito Federal são encaminhadas à Comissão Especial de Combate e Prevenção ao Assédio, responsável por analisar a existência ou não de indícios mínimos de ocorrência de assédio moral ou sexual e elaborar um relatório inicial.

A classificação do assunto é relevante para o tratamento inicial, principalmente para promover o encaminhamento da demanda para o local correto. Segundo apuração do Distrito Federal, a IZA reduziu em 70% o trabalho de reclassificação dos registros.

Fontes: https://www.cg.df.gov.br/controladoria-geral-do-df-lanca-inteligencia-artificial-aplicada-a-ouvidoria e https://www.cg.df.gov.br/assedio-moral-e-sexual-no-servico-publico-devem-ser-denunciados.

Antes de adentrar na análise das nove unidades federativas mencionadas, ressalta-se que Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Rondônia apenas incluíram o link de direcionamento ao Fala.BR da Controladoria-Geral da União. Todavia, no executivo estadual, existe a possibilidade de adesão por órgão específico, fato que demanda a centralização dos dados pela ouvidoria estadual. Ademais, mesmo quando a adesão é determinada por ato normativo do executivo estadual, como ocorreu no Rio de Janeiro, observou-se que os dados sobre assédio moral e assédio sexual indicam um subdimensionamento.

LocalAssédio moral (número)Assédio moral (%)Assédio sexual (número)Assédio sexual (%)
Executivo Federal2.99582%64318%
Alagoas10689%1311%
Distrito Federal41282%9218%
Maranhão4286%714%
Mato Grosso do Sul10088%1412%
Total3.655769

Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponibilizados pelo Painel Resolveu? e nos painéis e relatórios das ouvidorias estaduais.

Com as devidas ressalvas, em 2022, consultas ao painel Resolveu? com filtro de Rondônia resultaram em 26 manifestações de assédio moral e 3 de assédio sexual. Para o Rio de Janeiro, o resultado foi de 196 manifestações de assédio moral e 32 de assédio sexual. Para o Rio Grande do Norte, constam 37 manifestações relacionadas a assédio moral e 3 a assédio sexual.

Todos as unidades federativas que disponibilizam dados sobre as denúncias e/ou manifestações sobre assédio possuem o assédio moral e o assédio sexual no campo de assunto do canal online. Com a ressalva de que Bahia, Ceará e Paraíba somente publicaram dados sobre assédio moral, demonstrando a relevância em categorizar, desde o ato de registro, os relatos formais apresentados.

Em Alagoas, a Sala de Controle da Ouvidora-Geral possui dados de denúncias e/ou manifestações de assédio a partir de 2023, correspondentes a 106 relacionadas a assédio moral, em contraponto a 13 relacionadas a assédio sexual. Apesar de um número absoluto menor, a proporção entre assédio moral (89%) e assédio (11%) se aproxima àquela observada no nível federal.

No Distrito Federal, em 2022, foram registradas 504 denúncias e/ou manifestações relacionadas ao assédio no serviço público, sendo 412 (82%) de assédio moral e 92 (18%) de assédio sexual. Em 2023, na mesma tendência do nível federal, os registros aumentaram, correspondendo a 725, mantendo, todavia, a concentração dos relatos em assédio moral (618). Destaca-se que o painel desagregou o assédio no serviço público do assédio no ambiente escolar.

No Maranhão, os dados referentes a 2022 estão divididos em Relatórios trimestrais de cumprimento da política de ouvidoria, cujo resultado apontou para 49 denúncias e/ou manifestações relacionadas ao assédio no serviço público, sendo 42 (86%) de assédio moral e 7 (14%) de assédio sexual.

No Mato Grosso do Sul, em 2022, foram 114 denúncias e/ou manifestações relacionadas ao assédio, sendo 100 (88%) de assédio moral e 14 (12%) de assédio sexual. Ainda, em Minas Gerais, em 2022, registrou-se 1.011 manifestações na ouvidoria de assédio moral e sexual. No entanto, o relatório anual não apresentou os dados desagregados por tipo de assédio, apesar de constar o assédio moral como assunto mais demandado no período.

Ou seja, depreende-se das informações do âmbito federal e das unidades federativas que possuem dados de denúncia e/ou manifestações sobre assédio o fato de o assédio moral concentrar mais de 80% dos relatos dos servidores públicos. Razão pela qual tal tema deva receber a devida atenção, até mesmo pelo possível encampamento de atos de violência de gênero, racismo e outras formas de discriminação diante do conceito vago adotado.

Ademais, conclui-se pela inadequação dos canais de denúncia, vez que, em regra, não foram desenhados para as demandas internas da administração pública e nem setorizados para promover o acolhimento aos servidores públicos e às pessoas afetadas pelo assédio. Bem como mais da metade dos canais online dos estados não possuem o assédio moral e o assédio sexual como assuntos, e tal ausência de categorização torna-se um aparente empecilho à transparência dos dados.

Dos processos administrativos

Dentre as repercussões do assédio moral e/ou sexual praticado no âmbito da administração pública, a instância administrativa se destaca, pois é o ambiente onde os servidores irão apresentar denúncias, manifestações e notícias e, idealmente, ter soluções apresentadas, dentre elas a instauração de procedimentos administrativos.

Caso o servidor ou servidora afetada pelo assédio supere as barreiras de ausência de legislação, inexistência de conceituação, ineficiência dos canais de denúncia e filtragem preliminar, no âmbito administrativo, o próximo passo adentra na atividade correcional da administração pública, comumente representada pelas corregedorias.

A atividade correcional não se restringe à apuração dos atos oriundos de denúncias e/ou manifestações, podendo, inclusive, instaurar procedimentos administrativos de ofício. Todavia, em caráter exemplificativo, o fluxograma a seguir mostra o tratamento dedicado aos fatos ilícitos que chegam ao conhecimento da administração pública por meio dos canais de denúncia. De maneira simplificada e com base nos atos normativos e classificações presentes na base de dados da Controladoria-Geral da União, o caminho de uma denúncia (ou manifestação) perpassaria por uma das opções seguintes:

Fonte: Elaboração própria com base nas legislações e atos normativos vigentes no âmbito da Controladoria-Geral da União.

Dito isso, consta nos dados da Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação – Fala.BR que em 2022 o executivo federal recebeu 3.638 denúncias e/ou manifestações de assédio. Destas, 539 foram arquivadas. Logo, seguindo o fluxograma, conclui-se que 3.099 registros foram encaminhados para os órgãos apuratórios competentes. Lado outro, no painel Correição em Dados, oriundo dos sistemas correcionais, para o período de 2022, constam 813 procedimentos relacionados a assédio, cuja administração tomou ciência do ilícito no mesmo ano. Destaca-se que o número de procedimentos corresponde ao número de pessoas denunciadas, visto que incluídas na lista por número de CPF.

Algumas questões podem ter acarretado a lacuna entre os dados apresentados. As duas bases são gerenciadas pela Controladoria-Geral da União, contudo os dados de denúncias e/ou manifestações são oriundos da Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação – Fala.BR e disponibilizados no painel Resolveu?. Enquanto os dados de procedimentos administrativos são oriundos de diversos sistemas, como o Sistema ePAD, o Sistema de Gestão de Processos Disciplinares (CGU-PAD) e o Sistema Banco de Sanções3, disponibilizados no painel Correição em Dados.

Além disso, observou-se que o recorte temporal deve ser lido com cautela, pois procedimentos administrativos possuem diversas etapas, podendo se alongar por mais de um ano. Por tal razão, aplicou-se aos dados correcionais analisados o filtro de quando a administração tomou ciência do ilícito (2022), destacando, ainda, que os procedimentos podem ser oriundos de investigações próprias. 

Dito isso, em 2022, enquanto as denúncias e/ou manifestações de assédio apresentadas corresponderam a 82% de assédio moral e 18% de assédio sexual, no âmbito correcional o assédio moral correspondeu a 65% dos procedimentos, em comparação a 27% de assédio sexual e 8% de assédio moral e sexual.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados extraídos do painel Correição em Dados da Controladoria-Geral da União.

Como visto, o conceito de assédio moral difundido no Brasil é amplo e genérico, enquanto o conceito de assédio sexual é comumente associado ao tipo penal, com recorte restrito do conceito de assédio sexual por chantagem e desde que praticado por superior hierárquico ou pessoa com ascendência inerente. Por tal razão, o número de denúncias de assédio moral que resulta em apuração disciplinar pode ser menor do que daquelas que versam sobre assédio sexual. 

Novamente, caso as instituições de ensino sejam desagregadas da análise, a distribuição entre os tipos de assédio sofre alteração. Em 2022, 35% dos procedimentos administrativos versaram sobre assédio sexual, em comparação a 54% de assédio moral e 11% de assédio moral e sexual.

Tais números apontam para uma tendência de maior número de relatos de assédio sexual nos ambientes de ensino.

Adiante, em análise dos últimos dez anos, observa-se que, contrariando a tendência de aumento desde 2003, em 2020 e 2021, o número de procedimentos administrativos decresceu, fato que, em um primeiro momento, pode ser ligado ao trabalho remoto resultante da pandemia da covid-19. Em 2022 e 2023 o número de procedimentos envolvendo assédio, assim como o número de denúncias, voltou a crescer. 

Em relação às variações na distribuição dos casos de assédio por tipo, em 2017, os procedimentos administrativos sobre assédio sexual correspondiam a 14% dos casos envolvendo assédio, aumentando e chegando ao ponto mais alto em 2018, com 41%. Em 2019, o assédio sexual correspondeu a 39,03% e desde então se manteve entre 20% a 28%. Em todos os cenários, o assédio moral continuou concentrando o maior número absoluto de procedimentos administrativos, em adequação à maior concentração do número de denúncias de assédio.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados extraídos do painel Correição em Dados da Controladoria-Geral da União.

Pontua-se que o aumento nos números de procedimentos administrativos pode refletir a melhoria na gestão dos dados. Como exemplo, a base constante nos dados abertos da CGU, que condensava as informações antes das melhorias do painel de Correição em Dados: (i) detalhava o número de pessoas denunciadas em cada procedimento, enquanto na nova base ocorre a separação por CPF com a consequente inclusão de um mesmo procedimento em diversas linhas; (ii) indicava somente os procedimentos de sindicância e processo administrativo disciplinar. Com as novas atualizações, foram incluídas informações sobre procedimentos investigativos, como a Investigação Preliminar Sumária. Assim, observou-se que, em 2022, 80% da base foi composta por procedimentos investigativos.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados extraídos do painel Correição em Dados da Controladoria-Geral da União.

Os procedimentos investigativos, como no gráfico acima, podem resultar em arquivamento ou  abertura de procedimentos acusatórios, como o processo administrativo disciplinar. Todavia, a base não apresenta o resultado dos procedimentos investigativos, impossibilitando a avaliação, por exemplo, da taxa de arquivamento. 

Em relação aos procedimentos acusatórios, quando resultam em aplicação de penalidade, inclui-se a informação sobre a modalidade. Lado outro, quando resultam na não responsabilização da pessoa denunciada, inclui-se a decisão final de maneira genérica, por meio da expressão “absolvido, arquivado ou anulado”. 

Além da notável mudança na proporção dos casos de assédio moral e sexual se comparados às denúncias com os procedimentos administrativos, também se observou que os procedimentos relacionados a assédio moral recebem majoritariamente penalidade de advertência ou suspensão. Enquanto os procedimentos relacionados a assédio sexual possuem número próximo de suspensão e demissão (95 e 94, respectivamente).

Fonte: Elaboração própria com base nos dados extraídos do painel Correição em Dados da Controladoria-Geral da União.

Mais especificamente, para calcular o percentual médio de responsabilização das pessoas denunciadas por assédio moral e assédio sexual, utilizou-se o recorte de procedimentos administrativos instaurados de 2015 a 2020, considerando tempo médio de duração até a decisão final. 

Como resultado, identificou-se que para casos enquadrados como assédio moral 12,3% das pessoas denunciadas recebem algum tipo de penalidade, sendo 1,5% de demissão. Por outro lado, quando o caso se enquadra em assédio sexual, 21,3% das pessoas recebem algum tipo de penalidade, sendo 9,4% de demissão.

Logo, o assédio moral, apesar de concentrar o maior número absoluto de denúncias e procedimentos administrativos, possui menor percentual de responsabilização das pessoas denunciadas. Dentre as possíveis causas, encontra-se a inadequação conceitual, a ausência de previsão legal e o tratamento como uma forma mais branda de assédio.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados extraídos do painel Correição em Dados da Controladoria-Geral da União.

Além disso, se a denúncia passar pela filtragem inicial da Ouvidoria, pelo exame de admissibilidade da Corregedoria e por um eventual procedimento investigatório, a pessoa afetada por assédio ainda terá de esperar por mais de um ano para receber a resposta final do processo administrativo disciplinar ou sindicância. 

O trâmite entre as fases internas da atividade correcional é moroso, especialmente a etapa inicial compreendida entre o momento em que a administração toma conhecimento do ilícito, por qualquer meio, até a instauração de algum procedimento administrativo, pois leva-se em média 500 dias.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados extraídos do painel Correição em Dados da Controladoria-Geral da União.

Em conclusão, no âmbito federal, não há informações disponíveis sobre o destino das denúncias e/ou manifestações de assédio. As informações não se comunicam, fato que resulta no desconhecimento acerca do real tratamento despendido aos relatos de assédio. Considerando as limitações dos dados analisados, depreende-se que: (i) a maior parte dos procedimentos administrativos sobre assédio resultam no arquivamento sem a aplicação de qualquer penalidade; (ii) a penalidade mais aplicada aos casos e assédio foi a suspensão; (iii) os procedimentos sobre assédio sexual resultam em maior percentual de aplicação de penalidade.

No âmbito estadual, buscou-se dados sobre as denúncias de assédio moral e/ou sexual no âmbito dos estados e Distrito Federal, por meio da consulta às ouvidorias, controladorias, corregedorias e secretarias de gestão e/ou controle.

Somente Amapá, Distrito Federal, Goiás e Pernambuco publicaram dados sobre os procedimentos disciplinares, contudo, de maneira limitada. Distrito Federal e Pernambuco possuem um banco de dados específico com informações sobre “expulsões” do serviço público, cuja consulta indica a conexão com o assunto.

No Amapá, a Controladoria-Geral do Estado produz relatório anual com as informações sobre os procedimentos administrativos, que, apesar de não desagregados por assunto para viabilizar a análise dos casos de assédio, apresenta o resultado das denúncias recebidas:

OrdemDescriçãoQuantidade
1Processos Recebidos91
2Processos Analisados86
2.1Processos Arquivados46
2.2Processos Encaminhados para Sindicância23
2.3Processos Encaminhados para PAD14

Fonte: Corregedoria-Geral do Estado do Amapá.

Em razão dos dados das denúncias e/ou manifestações do Amapá estarem organizados por meio de resposta, não há clareza em relação ao número de registros por tipo, como pedidos de acesso à informação. Logo, não há como conectar os dados de denúncias e/ou manifestações com os dados correcionais. 

Em Pernambuco, publica-se a base de dados de expulsão, com identificação do fundamento legal utilizado para aplicação da penalidade. Contudo, como o assédio moral e o assédio sexual não estão previstos como proibição no Regime Jurídico Único, não há identificação de quais penalidades foram originadas em atos de assédio.

No Distrito Federal, a base de dados disponível também se restringe às expulsões, todavia, diante da inclusão da proibição ao assédio moral e sexual no Regime Jurídico Único, identificou-se demissões originadas em casos de assédio, no ano de 2019. Em 2022, ocorreram 46 expulsões e nenhuma foi conectada a assédio moral ou sexual. Na base, que possui informações desde 2003, só constam quatro expulsões por assédio em 2019.

Em Goiás, é possível extrair relatórios sobre processos administrativos disciplinares e sindicâncias. Acerca das sindicâncias, existem informações sobre o resultado, com as opções de arquivamento ou abertura de PAD (processo administrativo disciplinar). De 553 sindicâncias finalizadas em 2022, 88 resultaram em PAD e 465 em arquivamento. De 68 PADs finalizados em 2022, nenhum resultou em aplicação de qualquer penalidade, sendo registrado o arquivamento. As informações não são desagregadas por assuntos, logo, não há resultado sobre eventuais casos de assédio.

Conclui-se pela ausência de transparência em relação aos processos disciplinares promovidos pela administração pública. No nível federal, existe uma desconexão entre os dados de denúncia e os dados de procedimentos administrativos. No nível estadual, nenhum estado concentra dados sobre as denúncias e/ou manifestações de assédio e dados sobre a atividade correcional integralmente.

Além da ausência de transparência, as informações disponíveis indicam um alto percentual de arquivamento dos procedimentos administrativos pela administração pública, o que carece de análise mais aprofundada para compreender a qualidade das atividades correcionais em relação às demandas internas referentes aos servidores públicos.

Dos processos judiciais

A prática de assédio por servidor público também poderá ser apurada na esfera judicial, com repercussões em processos com pedidos de cunhos administrativo, cíveis e/ou criminais. Neste ponto, é relevante pontuar que os servidores públicos não acessam a Justiça do Trabalho, que é uma justiça especializada. As questões inerentes às carreiras deverão ser apresentadas na justiça comum, federal ou estadual, a depender da carreira. Por certo, a ausência de acesso à Justiça do Trabalho acarreta um descolamento ainda maior pelo fato de o servidor ser um trabalhador.

Fonte: Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://international.stj.jus.br/pt/Poder-Judiciario-Brasileiro/Organizacao-funcional.

Nesse contexto, ao contrário do que ocorre com os trabalhadores com contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cujo vínculo é disciplinado pela mesma lei federal5, os servidores públicos podem ter a carreira e, consequentemente, a parte disciplinar disciplinadas por legislações próprias. Sendo assim, o acesso ao poder judiciário por meio da justiça comum pode ter enfoque em questões de ordem administrativa, cível ou criminal.

O Conselho Nacional de Justiça administra a Base Nacional de Dados do Poder Judiciário – DataJud, estabelecida como a fonte primária de dados do Sistema de Estatística do Poder Judiciário – SIESPJ, pela Resolução no 331/2020. Assim, foram criadas diretrizes para a organização e o compartilhamento das informações oriundas dos processos judiciais pelos tribunais brasileiros, o que significa todos os órgãos do poder judiciário previstos pelos art. 92 da Constituição da República de 1988, com exceção do Supremo Tribunal Federal. 

Uma vez que o DataJud consolida essas informações advindas de todos os tribunais brasileiros, o CNJ criou as Tabelas Processuais Unificadas (TPUs), contendo as classificações de Classes e Assuntos, obrigatoriamente utilizados pelos tribunais na classificação dos processos em trâmite. Como exemplo, os tribunais não podem realizar alterações nas classes judiciais sem anuência prévia e expressa do CNJ.

Em análise às Tabelas Processuais Unificadas, identificou-se que: (i) as Classes definidas se conectam ao direito processual, ou seja, a natureza ou rito do procedimento adotado pelo judiciário para processar determinados Assuntos. Enquanto os Assuntos se conectam ao direito material, ou seja, o tema que será analisado, como assédio moral e assédio sexual; (ii) as Classes filtram os Assuntos; (iii) os Assuntos são mais mutáveis e, consequentemente, geram mais inconsistências nos dados, resultantes da dificuldade de adaptação pelos sistemas dos pelos tribunais. 

Todavia, apesar da relevância da temática de assédio no setor público, em consulta à base de Tabelas Processuais Unificadas e consulta direta ao CNJ, observou-se que não há Classe ou Assunto criado para a temática de assédio moral e/ou sexual no serviço público. O único código encontrado foi oriundo da seguinte ordem, que não contempla o assédio sexual:

CódigoDescrição
9985Direito Administrativo e Outras Matérias
9991Responsabilidade da Administração
9992Indenização por Dano Moral
14175Assédio Moral

Fonte: Elaboração própria baseada no DataJud do Conselho Nacional de Justiça.

Com a ressalva de que o Assunto identificado se limita aos pedidos de indenização por danos morais decorrentes da prática de assédio e, não necessariamente, contempla as questões disciplinares, foram consultados os processos novos, apresentados em 2022, dos 27 Tribunais de Justiça nos Tribunais Regionais Federais. Tais resultados estão representados no gráfico a seguir:

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do DataJud do Conselho Nacional de Justiça.

A classificação dos processos judiciais em Assuntos e Classes advém do preenchimento humano dos campos dos respectivos sistemas por advogados e membros do poder judiciário. Assim, embora possam existir procedimentos internos dos tribunais estaduais para correção de eventuais erros, não é possível saber a efetividade dessas medidas, nem se todos eles possuem tais práticas.

Em consulta aos dados de 2023, o estado de Goiás continua se destacando numericamente. O fato pode indicar uma despadronização na classificação das novas ações. Além disso, os dados apresentados devem ser lidos com cautela para avaliar a repercussão judicial do assédio no serviço público, em decorrência da filtragem restritiva a pedidos de indenização por danos morais decorrentes de atos de assédio moral.

No âmbito da Justiça do Trabalho, justiça especializada responsável por tramitar as demandas oriundas das relações de trabalho no setor privado, existem classes específicas para assédio moral e assédio sexual. Uma consulta direta ao Tribunal Superior do Trabalho indicou que 96% dos novos processos ajuizados na Justiça do Trabalho, entre 2015 e 2020, relacionados a assédio foram identificados como assédio moral (TST, 2022). 

Conclui-se pela ausência de informações sobre os processos judiciais que versam sobre assédio moral e assédio sexual oriundos do setor público. O fato do servidor público não acessar a Justiça do Trabalho, que é especializada e conhecedora das relações de trabalho, pode acarretar prejuízos que sequer podem ser mensurados, dada a ausência de dados judiciais categorizados sobre o tema.

Como se parece o assédio no setor público: o que a estabilidade não alcança

De início, destaca-se que assim como o processo de trabalho no setor público possui dinâmica diversa do setor privado, o assédio no serviço público também ganha contornos próprios. Dentre eles, maior tempo de duração da prática de assédio, a utilização das estruturas estatais e espaços de liberalidade, em tese cobertos pela discricionariedade do ato administrativo, para praticar atos de assédio.

A pesquisadora Margarida Barreto identificou que o assédio no serviço público se prolonga no tempo, em período muito maior do que a média identificada no setor privado. Nesse sentido, uma pesquisa nacional sobre assédio moral, que contemplou empresas públicas, identificou que em 60% das vezes a prática de assédio moral ultrapassava os 36 meses, em comparação a 4% no setor privado (BARRETO, 2005). Em entrevista sobre o tema, Barreto declarou que “já vimos casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio” (FIOCRUZ, 2008).

Tempo (meses)PrivadaPúblicaFilantrópicaONG
3 m1%3%10%
3 m – 6 m15%2%5%20%
6 m – 12 m80%3%20%50%
12 m – 36 m4%35%40%20%
Acima 37 m60%32%

Fonte: Pesquisa nacional sobre assédio moral no trabalho. Barreto, 2005.

No relatório da 2ª Pesquisa sobre Assédio e Discriminação no Poder Judiciário (2023), o Conselho Nacional de Justiça listou fatores de risco relacionados às características do serviço público e suas possíveis disfunções, como período de estágio probatório, rigidez hierárquica, desvio de função e até mesmo a estabilidade. Conforme explicou o material, em decorrência da estabilidade, as pessoas assediadoras “estão amparadas por legislação e ritos processuais que impedem a demissão” (CNJ, 2023, p. 19). 

Porém, como visto, a estabilidade é uma proteção contra a demissão arbitrária, razão pela qual o processo administrativo disciplinar com ampla defesa é garantido aos servidores, além do processo judicial. Sobre a ineficiência da estabilidade como mecanismo de proteção do servidor contra assédio e violência no trabalho, Barreto (2008) explicou que “como a pessoa não pode ser mandada embora, ela, muitas vezes, é colocada à disposição e começa a rodar por vários setores, sempre carregando um estigma que, frequentemente, faz com que ela volte a ser assediada” (FIOCRUZ, 2008).

Tendo em vista que o assédio possui contornos próprios no setor público e a estabilidade não blinda os servidores de todos os tipos de violência, que podem estar relacionadas à discriminação e a políticas de ascensão funcional e modelos de gestão inadequados, aqui foram selecionadas decisões judiciais de segunda instância, nas quais os servidores obtiveram êxito em suas demandas, apesar da inércia da administração pública em protegê-los:

  1. Isolamento, jornada de trabalho excessiva e condições inadequadas de trabalho. Servidora em estágio probatório recebia tratamento discriminatório sob constante ameaça de exoneração, como restrição do horário de almoço, isolamento, controle do uso do banheiro, carga horária excessiva e condições impróprias, como trabalhar em ruas alagadas misturadas a esgoto e bichos sem nenhuma proteção. Em decorrência da violência, desenvolveu crises de gastrite e hipertensão, todavia, os atestados eram desconsiderados pela supervisora que marcava falta (TJRJ, 2021).
  1. Obstáculos ao afastamento e aposentadoria por invalidez. O servidor foi submetido à prática de assédio moral por mais de uma década, resultando na sua aposentadoria por invalidez e, ainda assim, precisou recorrer ao sistema de justiça para ter acesso à aposentadoria por invalidez na integralidade, como fazia direito. O assédio que se iniciou em 2007 ainda perdurava na data de ajuizamento da ação em 2019. Dentre os atos de assédio, destaca-se a criação de uma comissão especial para desenvolver novos critérios para concessão de licença para pós-doutorado, em momento posterior ao pedido do servidor afetado pelo assédio para realizar pós-doutorado fora do país, mediante aprovação da CAPES (TRF4, 2020).
  1. Mudança de setor, carga horária excessiva, condições de trabalho inadequadas, recusa a licença saúde. Servidor municipal foi mudado de setor, em início à campanha de assédio moral, que prosseguiu com a determinação de cumprimento de jornada de trabalho de 40 horas semanais, em contraponto e após dez anos da legislação municipal que estipulou carga horária de 20 horas semanais. Para cumprir as 40 horas semanais, o servidor teria de ter a chave do setor, visto que os demais colegas continuaram cumprindo a jornada de 20 horas semanais. Todavia, continuou sem acesso ao local, que carecia de equipamentos de trabalho, como computador, mesa e cadeira, que só foram fornecidos ao servidor após ordem judicial. Em razão do adoecimento psíquico gatilhado pelo assédio moral, o servidor precisou requerer a licença saúde que fora inicialmente negada após interferência da pessoa assediadora (TJMG, 2016).
  1. Isolamento. Esvaziamento de funções. Condições de trabalho inadequadas. Servidora foi informada, no retorno de suas férias, que havia sido mudada de setor. O novo local de trabalho estava semiabandonado e com instalações precárias, como “invasão por pombos e pardais, banheiros desativados e falta de água potável”. A servidora cumpria sua carga horária de trabalho no local utilizado para depósito, sem qualquer atividade designada. No período, a servidora teve de se afastar em razão de um quadro depressivo (TJMG, 2019).
  1. Colocado à disposição de maneira recorrente. Desvio de função. Condições inadequadas de trabalho. Servidor foi colocado à disposição por sucessivas vezes durante período de cinco anos, passando pelas áreas de saúde, administração e tributos. Em nenhuma das lotações estava desempenhando função correlata ao concurso prestado. Segundo o relato dos colegas, a administração “castigava os servidores por questões políticas ou por simplesmente não gostar daquele servidor”. Além de não ter uma mesa, retiraram o banco que o servidor se sentava no corredor (TJES, 2019).
  1. Isolamento. Esvaziamento de função. Condições inadequadas de trabalho. Servidor teve as funções esvaziadas, de modo a não ter nenhuma atividade para desempenhar. Foi transferido para local isolado e com péssimas condições. Com mobiliários antigos, o local não tinha janelas, computador ou telefone. Em razão da violência sofrida, o servidor ficou afastado por razões médicas durante quase três anos diante de episódios depressivos (TJRS, 2015).
  1. Desvio de função. Readaptação. Discriminação por gênero. A servidora que atuava na área da segurança recebia tratamento discriminatório em relação à escala de horas, sendo impedida de fazer horas extras como seus colegas. O superior afirmou que só concederia as horas extras para desempenhar atividades de faxina, como lavar o banheiro, em desvio de função e violação a sua condição física de dor lombar, cervical e bursite (TJSP, 2015).
  1. Esvaziamento de função. Condições inadequadas de trabalho.  Servidor foi mantido em local denominado “quarto branco” localizado numa oficina de serralheria, durante a jornada de trabalho, esperando receber atividades que nunca chegavam. Segundo relato de um colega, o local, de onde o servidor assediado só saiu por licença médica, tinha caixões e pó de serra. A condição do servidor chegou a ser motivo de exposição em formato de “piada” em rádio local  (TJRS, 2019).
  1. Contato físico indesejado. Violência de gênero. Servidor se insinuava sexualmente às colegas, até que passou a focar em uma servidora, exigindo, somente dela, beijos todos os dias. Ele se aproximava da maneira que conseguia, muitas vezes beijando-a na parte de cima da cabeça. Em decorrência da violência, sofreu ataques de pânico, urticárias, dores abdominais sem causa clínica e abscesso nas amígdalas (TJSP, 2023).
  1. Comentários de cunho sexual. Violência de gênero. Servidor se dirigia às servidoras do setor com expressões de cunho discriminatório e sexual, classificando-as como cheirosas e sonho de consumo. Também proferia comentários sobre as roupas que deveriam usar e as convidava para preparar um café na casa dele (TRF5, 2021).

Conclui-se que entre a demissão arbitrária e a integridade física e psíquica dos servidores, o assédio acontece. Dentro da estrutura legalmente organizada da administração pública, onde há espaço de liberalidade, há assédio. O assédio se adaptou ao contexto do serviço público, ganhando roupagem própria, mas não menos danosa do que qualquer outro tipo de violência.

Como avançar?

O ambiente de trabalho livre de todo tipo de violência é possível de ser construído quando (i) os esforços e recursos são constantemente dedicados à capacitação, à autocomposição de conflitos e à promoção da diversidade; e (ii) as medidas correcionais constituem ações pontuais direcionadas aos casos que não puderam ser evitados, mesmo com todos os esforços.

Em contraste, o ambiente comumente encontrado no setor público é marcado pela mistura entre violência, atos discriminatórios, conflitos não solucionados e processos de trabalho inadequados. Os conceitos adotados ignoram a perspectiva de gênero, raça e suas interseccionalidades; no mesmo sentido, os dados disponibilizados agrupam todo tipo de assédio sem desagregar os oriundos de violência de gênero ou racismo. 

Para avançar na construção de ambientes livres de todo tipo de violência, você pode começar hoje, a partir do seu ambiente de trabalho, e expandir para uma construção coletiva, por meio das seguintes ações:

Ser um espectador ativo. Quando for seguro para você, interrompa atos de assédio por meio de ações não violentas. A Right to Be desenvolveu uma metodologia voltada para a intervenção do espectador, cujas ações são organizadas em 5Ds: distrair, delegar, documentar, delongar e direcionar. Todas as ações são voltadas à pessoa afetada pelo assédio, para oferecer suporte, validação e escuta empática. 

Apoiar a ratificação da Convenção nº 190. Manifeste seu apoio e organize sua rede para promover a ratificação da primeira norma internacional que tratou do assédio e violência no mundo do trabalho. Como fruto de organização sindical liderada por mulheres, a Convenção nº 190 da OIT pode impulsionar a proteção das servidoras e servidores contra todo tipo assédio e violência.

Promover a instituição de política de prevenção e enfrentamento ao assédio. A violência no trabalho possui raízes na discriminação e em processos de trabalho inadequados. Sendo uma questão de ordem sistêmica, a mudança também deve permear as estruturas e instituições. Se informe sobre a lei nº 14.540/2023 e cobre a instituição de política no seu local de trabalho.

NOTAS

[1] Tradução livre de cultural violence makes direct and structural violence look, even feel, right – or at least not wrong.

[2] Dados completos disponíveis no seguinte link: https://dados.republica.org/dados/estatutos-estaduais-dos-servidores-publicos-e-proibicao-do-assedio.

[3] Sobre o painel Correição em Dados: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/10/controladoria-geral-da-uniao-lanca-nova-versao-do-painel-correicao-em-dados.

[4]  Suspensão compreendeu a Suspensão Convertida em Multa.  Destituição de Cargo em Comissão compreendeu Destituição de Função Gratificada. Ambos os gráficos contemplam as penalidades resultantes dos procedimentos com a categoria de assédio moral e sexual.

[5] Contratos de trabalho podem criar regras, desde que não violem a CLT.

Referências bibliográficas

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Decisões judiciais:

TJMG – AC: 10396140028483002 Mantena, Relator: Luís Carlos Gambogi, Data de Julgamento: 10/11/2016, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 22/11/2016

TRF4 – AC: 50049216020134047000 PR 5004921-60.2013.4.04.7000, Relator: RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, Data de Julgamento: 03/06/2020, QUARTA TURMA

TJMG – AC: 00059042620138130028 Andrelândia, Relator: Des.(a) Wilson Benevides, Data de Julgamento: 15/10/2019, 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 21/10/2019

TJMG – AC: 10396140028483002 Mantena, Relator: Luís Carlos Gambogi, Data de Julgamento: 10/11/2016, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 22/11/2016

TJES – APL: 00004519020168080058, Relator: FABIO CLEM DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 30/07/2019, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 09/08/2019

TJRS – AC: 70065468761 RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Data de Julgamento: 30/07/2015, Décima Câmara Cível, Data de Publicação: 14/08/2015)

TJSP – APL: 30019425220138260554 SP 3001942-52.2013.8.26.0554, Relator: Ronaldo Andrade, Data de Julgamento: 02/06/2015, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 03/06/2015

TJRS – AC: 70057814170 RS, Relator: Afif Jorge Simões Neto, Data de Julgamento: 25/07/2019, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 07/08/2019

TJSP – APL: 10563555320208260053 São Paulo, Relator: Djalma Lofrano Filho, Data de Julgamento: 23/06/2023, 13ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 23/06/2023

TRF-5 – AP: 00042797120124058200, Relator: Desembargador Federal Rogério De Meneses Fialho Moreira, Data de Julgamento: 25/03/2021, 3ª Turma, Data de publicação: 31/03/2021

Myrelle Jacob

Advogada. Doutoranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Mestre em Direito nas Relações Econômicas e Sociais pela Faculdade Milton Campos, onde desenvolveu a pesquisa "Violência de gênero e o serviço público-federal: uma análise sobre assédio sexual no local de trabalho.

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