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Arrecad(ação)
Domingo quente de janeiro e ela está na praça com os filhos. A senhora ao lado puxa conversa:
– E esse IPTU, hein? Paguei o meu ontem: caríssimo!!!
– E o calor que está hoje, será que vai chover?
Inócua tentativa de mudar de assunto.
– Mas também – brada a cidadã – essa mania que o governo tem de fazer obras com o dinheiro do nosso IPTU…Absurdo isso…
O pequeno diálogo real ilustra o dilema político que as administrações locais enfrentam ao decidir sobre o fortalecimento de sua capacidade de arrecadação própria. O paradoxo reside justamente nisso: ter autonomia e condições de realizar as políticas e obras que a população mais precisa. Em contrapartida, arcar com o ônus político de tributar de forma eficiente a sua população.
Um indicador de maturidade fiscal de um ente é a participação da receita por ele diretamente arrecadada, em comparação à receita recebida por meio de transferências intergovernamentais decorrentes do federalismo fiscal brasileiro. Quanto maior a participação da receita própria frente à total, maior liberdade e autonomia o governo local terá para implantar políticas públicas que refletem as preferências de seus cidadãos. As receitas diretamente arrecadadas pelos municípios são decorrentes do Imposto sobre Serviços (ISS), do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), do Imposto de Transmissão Inter Vivos (ITBI), além de taxas e contribuições, como a Taxa de Resíduos Sólidos (conhecida como a taxa de lixo) e a Contribuição para Iluminação Pública. A importância que cada um desses tributos pode exercer no orçamento de um município depende exatamente das escolhas políticas do governo local.
Já as transferências intergovernamentais possuem natureza distinta, podem ser voluntárias ou obrigatórias. As voluntárias estão associadas a uma pactuação entre diferentes entes, normalmente expressas por convênios, para realização de um projeto ou atividade específicos: construção de uma creche ou posto de saúde, por exemplo. Também existem aquelas destinadas ao custeio, como comumente ocorre na área de saúde. As transferências obrigatórias decorrem de mandos legais ou constitucionais que independem da vontade do governante. São calculadas a partir de fórmulas que envolvem o tamanho da população, como ocorre com o Fundo de Participação dos Municípios (FPM – distribuídos de forma inversamente proporcional ao tamanho da população), ou com o tema de sua destinação, no caso do Fundeb (Educação) e SUS (Saúde). Além disso, os estados também são obrigados a repassar 25% de sua receita do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) aos seus municípios de acordo com critérios especificados nas legislações estaduais e metade dos recursos do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).
A legislação brasileira não prevê qualquer contrapartida de arrecadação local para o recebimento de recursos de natureza obrigatória. Ou seja, independentemente das medidas que a cidade exerça para fortalecer sua arrecadação, os recursos recebidos do FPM, por exemplo, estarão vinculados ao esforço tributário da União (o Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos Industrializados são a fonte dos recursos distribuídos).
O curioso é que, no caso da saúde e da educação, os únicos vínculos são controlados pelos gastos, que devem atingir patamares mínimos na receita arrecadada (como os 25% obrigatórios da educação) ou no tipo de despesa efetuada, tal qual definem os blocos de financiamento da saúde (recursos só podem ser gastos em, por exemplo, vigilância sanitária, saúde da mulher, saúde bucal). Mas nada se diz sobre quanto o município deve contribuir para geração da sua receita própria.
A ausência de incentivos institucionais à arrecadação pode ser visualizada na constatação apresentada pelo Índice Firjan de Gestão Fiscal. Em 2019, dos 5.337 municípios analisados, 1.856 não arrecadavam recursos suficientes nem para manter sua estrutura administrativa e Câmara de Vereadores. Três mil e sessenta e oito (57,5% do total) arrecadavam somente para cobrir essas despesas, ou seja, não possuíam recursos para realizar nenhum tipo de política pública definida localmente, de acordo com as prioridades escolhidas por sua população.
Arrecad(ação)
É justamente esse ponto que preocupa. Governos que não arrecadam e, por conseguinte, não realizam. Pode-se arguir que essa circunstância gera um ciclo vicioso: ausência de ações discricionárias, vinculadas às necessidades e escolhas da população local (como uma ponte, a urbanização de uma avenida ou mesmo um posto de saúde), restringem a margem política para a gestão local fortalecer a arrecadação de impostos. Ou seja, a ausência de projetos desacredita o governo local como fonte eficiente de ação pública. Por outro lado, a escassez de recursos “livres” para a gestão investir nas prioridades de seus cidadãos a deslegitima como agente tributária, aos olhos da população.
Uma forma de romper esse ciclo é a entrega, por parte dos governos, de uma cidade funcional e próspera, com ações de políticas públicas com as quais seus moradores se identifiquem e das quais se sintam parte. O contribuinte passa a se reconhecer como cidadão quando suas preferências são materializadas pelos governos, que devem, assim, se apropriar das prioridades de seus habitantes, viabilizar recursos por meio do sistema tributário vigente para materializar essas escolhas por meio de políticas públicas e, por fim, devem apresentar à população esse resultado como o fruto de uma ação coletiva com a essencial participação de todos. Enfim, fortalecer a maturidade fiscal dos municípios brasileiros.
Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.
Giovanna Victer
Secretária de Fazenda de Salvador. Presidente do Fórum de Secretários de Fazenda da Frente Nacional dos Prefeitos.