A falta de representação tem como consequência o não pertencimento ao espaço de poder1. A paridade de gênero em carreiras estratégicas do Estado e a ocupação de posições de liderança por mulheres são fatores decisivos para a representação burocrática, dimensão importante da própria democracia e determinante para a qualidade da atuação estatal. Sendo assim, alcançar a igualdade de gênero no serviço público é fundamental para a produção de políticas públicas mais justas e eficientes para todas as pessoas2.

Nos últimos anos, foram registrados esforços empreendidos pelo setor público em diversos países para a ampliação da diversidade de gênero na administração pública3. No entanto, as mulheres no serviço público ainda enfrentam dificuldades para ocupar posições de liderança. Nesse sentido, analisamos o caso do Brasil a partir dos primeiros resultados da pesquisa “Mulheres e liderança na burocracia federal”. 

Com o objetivo de analisar o perfil das mulheres em cargos de liderança no governo federal e identificar os principais fatores que incidem em suas trajetórias, entre 14 de novembro e 14 de dezembro de 2023, acedemos a 282 mulheres que responderam a um survey. As perguntas desse survey estavam organizadas em dois blocos. O primeiro, referente ao perfil sociodemográfico, tratando sobre a posição dessas mulheres no seu lugar de trabalho e identificando se as pesquisadas ocupavam um cargo de chefia, além de questões que tratavam de caracterizar socialmente essas mulheres (faixa etária, raça/cor, escolaridade, estado civil, renda e maternidade). O segundo bloco de perguntas trazia questões sobre as experiências das mulheres no serviço público federal com relação aos desafios vivenciados em decorrência do gênero, as atividades exercidas por elas cotidianamente no ambiente de trabalho e as dificuldades enfrentadas ao longo de suas carreiras. 

Ao avaliar as respostas do bloco sociodemográfico, é possível estabelecer o perfil médio das respondentes da pesquisa: são mulheres que ocupam um cargo de chefia (64,1%), têm entre 31 e 50 anos (76,1%), são brancas (69,4%), casadas (57,1%) e mães ou madrastas (73,9%). Além disso, têm especialização ou mestrado (71,4%), com renda acima de 10 salários mínimos (77,1%) e são a principal provedora de suas famílias (67,3%). 

Tentando entender os desafios dessas mulheres no ambiente de trabalho a partir do mapeamento de suas experiências no serviço público federal, identificamos algumas questões centrais. A maioria das respondentes teve uma chefe imediata mulher (87,4%), porém, 70% dessas considerou que a experiência de ter uma chefe imediata foi minoritária ao longo da carreira. Além disso, 10% do total de respondentes nunca teve uma chefe mulher.

Gráfico 1. Desafios no ambiente de trabalho

Quando perguntadas sobre violência de gênero no ambiente de trabalho, temos uma alta frequência de assédios: 6 em cada 10 respondentes vivenciaram assédio moral; 28,3% dessas mulheres vivenciou assédio sexual; 30% delas sofreram com violência psicológica; e 15,5% relatam ter sofrido violência política. Em paralelo a isso, as respostas sobre os desafios que essas mulheres enfrentaram ou enfrentam no ambiente de trabalho por serem mulheres indicam que mais da metade identifica a discriminação por gênero (55,1%); quase metade delas apontam o assédio moral (48,4%); e cerca de 21% identificam o assédio sexual como dificuldades vividas. A sobrecarga de trabalho doméstico (47,7%) e a conciliação do trabalho com a maternidade também aparecem com frequência nas respostas. 

Gráfico 2. Dificuldades para ascensão na carreira

Sobre os fatores que dificultaram a ascensão a um cargo de chefia, aparecem novamente a discriminação por gênero (40,8%), a conciliação do trabalho com a maternidade (38,3%) e a sobrecarga do trabalho doméstico (28%). É importante salientar que 78,9% das respondentes já ocupou cargo de chefia. Destas, 78% tinham filhos/as ou enteados/as quando foram chefes. Além disso, um terço delas era mãe de crianças entre 2 e 6 anos quando assumiram a chefia. A maternidade figura entre as respostas como uma questão determinante nas condições de trabalho dessas mulheres. 

Os dados preliminares da pesquisa “Mulheres e liderança na burocracia federal” mostram que o debate sobre cuidado, o enfrentamento das violências machistas, da discriminação de gênero e dos assédios moral e sexual são as maiores dificuldades que as mulheres ao longo das suas carreiras. Portanto, os desafios para a entrada, a permanência e a promoção das mulheres no serviço público estão intrinsecamente relacionados com a necessidade de transformação de questões estruturais na nossa sociedade4. A construção de uma democracia de qualidade também passa pela presença de mais mulheres em posições de liderança na burocracia federal, pois a sub-representação de mulheres nos espaços de decisão pública leva à falta de representação de questões relevantes para a vida das próprias mulheres5. Nesse sentido, é necessário enfrentar os estereótipos e as discriminações de gênero no serviço público, nos espaços laborais e na sociedade como um todo. 

Referências Bibliográficas

1ALVES, Iara. Representação Simbólica: Os efeitos da presença massiva de homens na alta burocracia, República em Notas, pg. 233-238.
2https://republica.org/emnotas/conteudo/por-que-e-urgente-para-o-brasil-ter-mulheres-em-cargos-de-lideranca/?fbclid=PAAabGd1fZ-3MxkMnyr2Nh_clK3Hoa3J08_PAEoX8-c8fqrhNhIYrF3KyBnUo_aem_Ac8NJDvPDd8o8m10SarzL_d61YMc8Adw8opp-nGr_f_Li7Zt5PiHb19n8XgltQbWPjM
3NARANJO BAUTISTA, Sandra et al. Mulheres líderes no setor público da América Latina e do Caribe: lacunas e oportunidades. 2022.
4BALLARD, Velma J. Gender and representative bureaucracy: the career progression of women managers in male-dominated occupations in state government. Virginia Commonwealth University, 2015.
5https://pp.nexojornal.com.br/ponto-de-vista/2023/03/23/genero-no-servico-publico-um-convite-a-reflexao-sobre-a-desigualdade-dentro-do-estado

Michelle Fernandez

Michelle Fernandez é cientista política. Doutora e mestre em Ciência Política pela Universidade de Salamanca e graduada em Ciência Política pela UnB. Foi pesquisadora visitante na Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), na Universidade de Oxford (Reino Unido) e na Universidade de Manchester (Reino Unido). É professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. É professora-colaboradora da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). É pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB/FGV). Coordena o Núcleo de Estudos de Políticas de Saúde (NEPOS) dentro do Laboratorio de Pesquisa em Comportamento Político, Instituições e Políticas Públicas (LAPCIPP/UnB).

Ananda Marques

Ananda Marques é cientista política e pesquisadora. Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Brasília, Mestra em Ciência Política e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí. Faz parte da Red de Politólogas e da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas. Pesquisa políticas públicas, com foco nas políticas de saúde das mulheres na América Latina.

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