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Advocacia pública: proximidade e participação
Essa frase foi falada pela advogada. A advogada que coordenava a equipe jurídica do órgão público. No caso, eu. Já tinha acontecido quando coordenava a equipe da Advocacia-Geral da União dentro de um ministério. E agora estava acontecendo de novo, em outro órgão, em outro ente federativo para o qual estive emprestada por um tempo.
Na minha primeira semana de trabalho naquele órgão, uma subsecretária de Estado apresentou uma minuta de projeto de lei que significaria uma mudança profunda no funcionamento das políticas públicas. Escutei com atenção a fala da equipe técnica que há dois anos estava construindo aquela nova legislação, em diálogo com centenas de pessoas da sociedade civil de vários territórios, movimentos sociais, produtores, empresários, entidades de variados portes.
Passando os olhos pelo texto, ficava claro que a proposta de nova legislação cumpria o comando do art. 216 da Constituição Federal de que cada estado e município deve estruturar adequadamente a gestão pública cultural. Cada ente deve criar seu próprio sistema de cultura, aprovar um plano de cultura como instrumento de gestão, fortalecer instâncias de participação social e organizar um sistema de financiamento de cultura.
Depois de um bom tempo de escuta, a chefia da equipe jurídica tinha que responder à pergunta da dirigente do órgão: com qual antecedência precisamos te enviar o processo administrativo pronto, para ter o parecer jurídico que avaliará o anteprojeto de lei?
Na minha experiência de Administração Pública, a visão que a equipe técnica e os dirigentes têm sobre os advogados públicos é de que são figuras que ocupam um lugar distante, separado do ciclo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. Lamentam que seja assim, muitas vezes maldizem os doutores, mas dificilmente exigem que seja diferente. (E, convenhamos, poderiam exigir engajamento sim, no mínimo, das chefias das equipes, escolhidas por eles mesmos – dirigentes do órgão – para assumir funções comissionadas.)
Nessa perspectiva, o papel da equipe de “consultoria” jurídica (aspas para destacar uma denominação que diz muito) é aguardar que as coisas estejam prontas para então olhar de fora (do alto?) e decidir se elas merecem o carimbo do sim, o carimbo do não, ou o irritante carimbo do “pode ser que sim, desde que etcétera-etcétera-etcétera e não me comprometo com eventual problema que não esteja já explícito nos documentos que antecederam essa minha opinião estritamente jurídica ora manifestada formalmente apenas sobre o que está escrito até aqui”.
Advocacia pública: proximidade e participação
Uma equipe jurídica que se limita a esse lugar de “consultoria” distante é uma equipe que não assessora de verdade. É um desperdício de inteligência coletiva. Uma enorme perda do potencial criativo e solucionador do Direito. Assessorar bem depende de participar, de se engajar cotidianamente nos esforços de estudo de abacaxis e de invenção das melhores formas de descascá-los sem perder polpa.
Naquele caso concreto, precisei dizer à subsecretária que eu não estava preocupada com o parecer jurídico, que seria mera consequência de uma construção conjunta do formato final da proposta de legislação. Escrever um parecer é a tarefa menos difícil de um trabalho de assessoramento jurídico da elaboração normativa. Papel aceita muita coisa. Desafio maior é mergulhar junto com a equipe técnica nos problemas mapeados na realidade sobre a qual a legislação incidirá.
Naquele caso concreto, descobrimos juntas que a proposta ainda não trazia soluções para vários gargalos logísticos já diagnosticados na política pública de fomento. Faltava definição de natureza jurídica dos instrumentos e detalhamento de novos procedimentos capazes de desburocratizar e aumentar a efetividade da ação pública. A ausência não era um acaso. Os gargalos não solucionados tinham tudo a ver com o mundo das formalidades do Direito, ou seja, o mundo de quem ainda não tinha participado do processo de construção da proposta de nova legislação.
Mergulhamos juntas e formulamos juntas: equipe de “assessoria” jurídica (aspas de destaque para uma denominação que aproxima em vez de distanciar) e equipe técnica. Depois de muitas horas de desenho e redesenho de novos caminhos e ferramentas de gestão bem concretas, estava pronta a versão final. E claro, teve parecer jurídico sustentando a proposta, defendendo cada uma das novas formulações que apareciam no texto normativo.
O anteprojeto foi para o Poder Legislativo, onde a assessoria jurídica novamente teve papel importante nos debates sobre o desenho técnico-jurídico da proposta, com os parlamentares e com a comunidade. Os advogados públicos sustentaram a proposta, defenderam as novas formulações e reescreveram textos quando foi necessário para viabilizar a construção de consensos.
A nova lei foi aprovada e desde então serve de referência como exemplo de regulamentação inovadora para a implementação das políticas públicas do campo. Um enorme orgulho ter participado tão intensamente da formulação da Lei Complementar 934/2017 do Distrito Federal, junto com outros profissionais de formações e expertises diversas. O papel de assessoramento da Advocacia Pública é incrível, quando as equipes apostam na potência da inteligência coletiva e se engajam para que o Estado faça entregas efetivas.
Retomo o que disse no primeiro texto desta série do República em Notas: entre o conforto da omissão e a tentação da arrogância, o papel da Advocacia Pública no Estado de Direito é colocar-se à disposição dos seus clientes para escutar, aprender e colaborar de maneira substancial, somando-se aos esforços dos outros profissionais da Administração Pública para a entrega de serviços públicos de qualidade. Também repetindo, porque é importante demais: numa sociedade tão desigual como a brasileira, o Estado faz muita falta.
Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.