Nossa experiência promovendo inovação com inspetoras penitenciárias

Publicado em: 27 de agosto de 2024

Índice
Inovação no serviço público
A Inovação e Oportunidades para o Sistema Penitenciário
A inovação e seus impactos para o Sistema Prisional
O que aprendemos sobre a inovação na penitenciária

**Esta é a segunda nota de uma série em que relatamos a nossa experiência no projeto Residência em Capital Humano, promovido pela República.org. A proposta foi levar arte e reflexões a agentes penitenciárias da Unidade Prisional Feminina.

A melhoria do serviço público tem sido a busca de muitos órgãos: a inovação deixou de ser um propósito exclusivo das empresas privadas. 

Nesse sentido, Cavalcante e Camões (2019)1, em seu estudo sobre inovação pública no Brasil, afirmam que se tem reconhecido que a inovação não só pode contribuir para o crescimento econômico, a transformação industrial e a vantagem competitiva, como também para incrementar a qualidade e a eficiência do serviço público ao aumentar a capacidade governamental de resolver problemas.

Inovação no serviço público 

Como exemplo de inovação no serviço público, destacamos o trabalho que realizamos na Unidade Prisional Feminina durante a Residência em Capital Humano. Os resultados trouxeram importantes visões do cotidiano laboral das inspetoras penitenciárias,  além de uma nova percepção para algumas questões, causando impactos sobre a vida dos servidores e no próprio ambiente prisional. 

A inovação não pode ocorrer sem a participação dos servidores públicos, porém, quando ela se preocupa exclusivamente com eles, toma uma proporção maior. É essa a conclusão a que chegamos, seis anos após a implementação do nosso experimento “Como engajar inspetoras no trabalho de custódia e ressocialização das mulheres privadas de liberdade no Rio de Janeiro”, no programa de Residência em Capital Humano, da República.Org.

A Inovação e Oportunidades para o Sistema Penitenciário

Como inovar em um lugar onde o mínimo existencial não é garantido? 

A Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), acabou de publicar o Primeiro Panorama Nacional de Alimentação no Sistema Prisional2, detectando ausência de infraestrutura básica para fornecimento de água potável, inclusive para garantir condições mínimas de higiene às pessoas privadas de liberdade. 

Quanto à alimentação, observou-se a quantidade insuficiente no fornecimento de alimentos, que ainda se apresentavam com baixos nutrientes A pesquisa foi realizada em 80,41% das unidades prisionais do Brasil, construindo o retrato da alimentação de 90,32% das pessoas privadas de liberdade.  

A situação dos privados de liberdade no Brasil é bastante grave, tanto que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a violação massiva de direitos fundamentais no sistema carcerário brasileiro quando julgou a ADPF 347(arguição de descumprimento de preceito fundamental).

Em entrevista ao El Pais3, o Dr. Dráuzio Varella, médico notável em seu trabalho com os privados de liberdade, disse que “ninguém passa por essa experiência incólume”. E continua: “Cadeia é um lugar muito sensível de uma sociedade. Se você visitar uma cadeia, um pronto socorro e um estádio de futebol lotado, você consegue fazer uma ideia de como é uma sociedade. Confinar pessoas em cadeias é um experimento sádico. Como as pessoas se comportam nessa situação? Que regras se estabelecem?”.

Neste contexto, trabalham os servidores dos cárceres brasileiros, em um ambiente insalubre, perigoso, degradante, muitas vezes solitário (devido à falta de efetivo). Esses profissionais atuam perante muito estresse e tensão, tanto que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considerou a profissão de agente penitenciário a segunda profissão mais perigosa do mundo.

Mas será que esse ambiente não abre a oportunidade de realização de mudanças, melhorias e inovação?

Ao olharmos para alguns fenômenos da natureza que nos causam grande assombro, vamos, aos poucos, nos aproximando e percebendo que também nos conduzem a oportunidades, não vistas imediatamente, tamanho o impacto. Um exemplo disso é a “pororoca”4, que em língua indígena significa “estrondo”, uma palavra que traduz a imagem que nos assola em primeira mão. Trata-se de um fenômeno natural caracterizado pelo encontro de grandes e violentas ondas formadas no encontro das águas do mar com as águas do rio. Ela tem desaparecido em muitas regiões do país e provocado a desertificação nas mesmas, por muitos motivos que não citaremos, pois não é o objetivo deste trabalho5.

Gostaríamos de frisar que esse “estrondo” trouxe inúmeras oportunidades, como a de turismo local, uma vez que as ondas provocadas por esse fenômeno atraem pessoas que praticam surfe. Além disso, trazem, nesse movimento de mistura de águas, a remoção de poluentes  e a recirculação de nutrientes, movendo animais e plantas flutuantes tanto das áreas mais profundas quanto da superfície. Enfim, as marés, esse movimento incessante das águas, geram energia.  Pensar o sistema prisional com a potencialidade que vemos na pororoca abre espaço para ampliar o olhar sobre ele e exercitar inovação.

A inovação e seus impactos para o Sistema Prisional

Uma importante inovação advinda da experiência implementada por nós foi a forma de olhar e compreender a unidade prisional como uma grande engrenagem na qual todas as peças eram fundamentais e que não girava sem que essas peças estivessem conectadas em harmonia. Nenhuma peça era mais importante que a outra e elas só funcionavam juntas. Essa ideia, sistêmica, foi fundamental para ser trabalhada junto às profissionais da unidade.

Para concretizar a ideia da engrenagem, diferentes estratégias foram implementadas. Trabalhamos o fortalecimento da direção da unidade prisional, por meio da realização de reuniões de trabalho, nas quais acolhemos a diretora e a subdiretora a partir de uma escuta sensível e focada nos papéis profissionais de cada uma. Também realizamos workshops com as inspetoras para ouvi-las, criar solidariedade, contato com a arte e entendimento dos papeis das diferentes profissionais.

As discussões realizadas nos workshops aportaram sugestões concretas que foram implementadas, gerando impactos imediatos na percepção de integralidade e pertencimento na unidade. A principal medida adotada foi para reduzir a distância entre plantonistas (as inspetoras que trabalhavam no miolo da unidade trabalhando na segurança das galerias onde as mulheres privadas de liberdade ficavam) e as profissionais do administrativo da unidade. Implantamos uma inovação simples, mas muito efetiva: a adoção do uniforme por todas as profissionais da unidade, já que apenas as plantonistas tinham que usá-lo. No 1º workshop, essa foi a sugestão de uma das inspetoras. Em virtude da fratura identificada entre as profissionais plantonistas e do administrativo, o uso de uniforme por todas conferiria certa isonomia e identidade entre elas, além, é claro, de aumentar a sensação de segurança na unidade, uma vez que as internas veriam muito mais inspetoras uniformizadas.

Outra importante inovação, também simples, mas que contribuiu muito para a sensação de pertencimento e valorização por parte das profissionais, foi a oferta de momentos prazerosos às profissionais, como a realização do Dia da Beleza, em parceria com a igreja que prestava serviços na unidade, além da melhoria e do embelezamento do espaço físico por meio da reforma inicial nas guaritas.

O que aprendemos sobre a inovação na penitenciária

Nosso experimento6 gerou uma série de importantes aprendizados a partir das inovações propostas. O primeiro deles foi em relação ao papel central da liderança e sobre como um líder inspirador (no caso, a líder inspiradora, na pessoa da diretora da unidade), ao ter coerência com seus valores e gentileza no trato com seus funcionários diariamente, gerava uma coesão bastante fortalecida entre as profissionais. 

A liderança inspiradora é tão fundamental em processos como esse, que vale mencionar a reflexão de Simon Senek (2020)7. Quando o outro é percebido apenas como algo a ser vencido, não como possível parceiro e colaborador, estamos falando de líderes com uma mentalidade finita num jogo infinito. Nos negócios que se enquadram no jogo infinito não há como conhecer todos os jogadores, pois os novos jogadores podem entrar a qualquer momento. Além disso, as regras também mudam, assim como os acordos. Portanto, os horizontes temporais são infinitos. Não existe uma linha de chegada, e assim não há como vencer. O objetivo primordial do jogo infinito é continuar em campo e perpetuar o jogo. Já no jogo finito, como no futebol, os jogadores são conhecidos, há regras fixas e os jogadores concordam com as regras.  Percebe-se início, meio e fim. Mas será que isso se aplica a todo momento nas instituições? Talvez entrar num jogo infinito com mentalidade finita possa trazer várias dificuldades na área da confiança, da colaboração e da inovação. A mentalidade infinita já consegue ter benefícios nessas áreas. Não seria preciso que os líderes identificassem pistas de quando estão se articulando com mentalidade finita quando o jogo é infinito, obstaculizando, assim, a inovação? Esse questionamento é importante de ser feito para potencializar uma liderança inspiradora.

  Também foi possível identificar que, em uma unidade prisional, o engajamento diminui riscos para todos os envolvidos, gerando maior tranquilidade e segurança entre as profissionais e, consequentemente, para as internas.

Outro aprendizado foi de que é muito importante abrir canais de diálogos, trocas e escutas não apenas entre as profissionais, mas também entre elas e as chefias para possibilitar o engajamento, sempre tentando ter abertura na observação,  na flexibilidade na análise, além de uma escuta genuína.

Por fim, outro aprendizado importante em relação à unidade prisional, algo também ainda pouco comum ao setor público, é a capacidade de gerir o todo e não somente aspectos fragmentados de políticas, serviços e projetos. Parece comum que as dificuldades de profissionais do administrativo sejam tratadas de forma fragmentada em relação às dificuldades das plantonistas, quando, na verdade, tudo se conecta na engrenagem maior que é a unidade prisional. Por isso, é tão importante ter uma visão sistêmica do todo, enquanto imagem de engrenagem e da importância do papel que cada profissional desempenha.

Referências Bibliográficas

1CAVALCANTE, P; CAMÕES, M.R.S. Inovação Pública no Brasil: uma visão geral de seus tipos, resultados e indutores. Vol. 1. 1 IPEA (1 ed., p. 95-117). Brasília: Ipea.
2BRASIL. Panorama Nacional de alimentação e acesso a água no sistema prisional. Juciane Padro Lourenço da Silva/ Hellen Karine da Cunha Carneiro. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-publica-primeiro-panorama-nacional-de-alimentacao-e-acesso-a-agua-no-sistema-prisional/panorama_nacional_de_alimentacao_no_sistema_prisional.pdf. Acesso em: 08 de jul de 2023.
3El pais. Entrevista a Drauzio Varella. O único lugar em que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia. Disponível em: :https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/05/politica/1499276543_932033.html  Acesso em em 26 jun 2024.
4Geeks for Geeks.The importance of tides. Disponível em:  – https://www.geeksforgeeks.org/importance-of-tides/ Acesso em: 26 jun 2024.
5National Ocean Service –NOAA’s – The importance of monitoring the tides and their currents . Disponível em: https://oceanservice.noaa.gov/education/tutorial_tides/tides09_monitor.html#:~:text=Scientists%20are%20concerned%20with%20tides,in%20estuaries%20to%20deeper%20.  Acesso em: 26 jun 2024.
6Trecho apresentado no artigo: FAULHABER, Ana Christina; RICARDO, Carolina de Mattos; DOMINGUES, Ideli. Como engajar e motivar Inspetoras de Segurança e Administração Penitenciária no trabalho de custódia e ressocialização das mulheres privadas de liberdade. In: Saberes Prisionais: Estudos e Pesquisa / Janaina de Fátima Silva Abdalla, Caroline Toledo de Oliveira, Ana Christina Faulhaber (orgs.). Rio de Janeiro: SEAP-EP, 2020.
7SENEK, SIMON. O jogo infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

Ideli Domingues: Psicóloga, doutora em psicologia social (USP), especialista em grupos, sócia fundadora do Instituto Pichon-Rivière de Psicologia Social de São Paulo, focado na formação de facilitadores de grupos, com publicações na área de liderança, ex- professora de psicologia e equipes de alta performance da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo –FGVSP, arteterapeuta, contadora de histórias, terapeuta somática sistêmica, colaboradora do Conversas de Vida- Centro de Promoção de Esperança e Prevenção ao Suicídio do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental- CAISM Vila Mariana, da UNIFESP-SPDM.

Ana Christina Faulhaber: Mestranda em Ciências Sociais no Departamento de Estudos Latinos Americanos - Universidade Nacional de Brasília - ELA/UNB, especialista em: Contabilidade Aplicada ao Setor Público (2023), Gestão do Sistema Prisional (2020), Direito Penal e Criminal (2012) e Políticas e Gestão de Segurança Pública (2009). Graduada em Direito (2010) e Educação Física (2003). Inspetora de Polícia Penal há 19 anos, 14 anos de experiência em unidades prisionais femininas, 06 anos Diretora da Unidade Materno Infantil, SEAP/RJ. Atualmente mobilizada na Coordenação Nacional de Atenção às Mulheres e Grupos Vulneráveis da SEANPPEN - Secretaria Nacional de Políticas Penais.

Carolina Ricardo: É diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Advogada e Socióloga. Mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi assessora de projetos no Instituto São Paulo Contra a Violência, consultora do Banco Mundial e do BID em temas de segurança pública e prevenção da violência. Foi fellow no programa Draper Hills Summer Fellows oferecido pelo Center on Development, Democracy and the Rule of Law da Universidade de Stanford, Califórnia.

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