Privação de Liberdade: um espaço seguro?

Publicado em: 22 de outubro de 2024

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É possível virar o jogo? 

Uma das autoras deste texto, certa noite, excepcionalmente, estava acompanhando mulheres privadas de liberdade que realizavam uma obra na unidade prisional, e faltou energia. Quando a eletricidade foi estabelecida, tanto as policiais penais quanto mulheres privadas de liberdade estavam encostadas na parede. Foi a maneira que encontraram para que ninguém as surpreendesse pelas costas. Diante disso, perguntamos: a unidade prisional é um espaço seguro?

Qual é o lugar que o espaço prisional ocupa no imaginário da população em geral? Há histórias de reabilitação, sim, mas são muito, muito, poucas. A maioria é de que as pessoas ficam mais habilitadas para o crime, saem mais marcadas e sofridas pela punição, maus-tratos e assédio dos mais variados tipos. 

Foucault, em Vigiar e Punir, 19871, nos coloca frente a um percurso social de punição e vigia daquilo que não traz benefícios ou que não é considerado normal, mas a prisão, mesmo sendo percebida como inconveniente, perigosa e inútil, ainda permanece sem substituição.

Quando iniciamos a Residência em Capital Humano, nossa proposta inicial foi apresentar a ressocialização da mulher privada de liberdade como estratégia de engajamento para as inspetoras, como algo que poderia motivá-las no exercício do seu trabalho. No entanto, quando entramos na unidade e ouvimos as necessidades e desafios da equipe de  inspetoras de polícia penal, observamos que dois aspectos se apresentaram com mais relevância: o vínculo e a colaboração entre as inspetoras de polícia penal como o fator motivador; e a diferença entre as profissionais plantonistas (atividade fim) e as lotadas no administrativo da unidade como fator de desmotivação e desengajamento, além do medo, que aparece também como fator desmotivador.

No que tange às mulheres privadas de liberdade, a sentença “ficar privada de liberdade” lhes retira algo que é seu bem mais valioso, a liberdade, sem oferecer nenhuma perspectiva em troca para além da punição.

Mas, o que seria uma privação de liberdade que pudesse dar à pessoa apenada – ou pessoa privada de liberdade – uma oportunidade de reconstrução ou, pelo menos, um novo referencial para que ele pudesse escolher, desfrutar e aprimorar?

Afinal, o que é um lugar seguro? Um lugar de acolhimento, aceitação, confiança e trocas solidárias. Quem os teve, sem traumas? A grande maioria não o teve. Portanto, na prisão, como ela é gerida e pensada, há grandes chances dessas pessoas reviverem seus processos dolorosos, com imagens internas negativas. Como se instala a rotina e o decorrer dos dias nesse lugar? Há segurança? Há confiança? Sabemos que não. 

Como construir uma imagem de futuro positivo num lugar marcado exclusivamente por medos, punições e acusações? Nos espaços seguros é que podemos ser criativos e gestar imagens internas que nos amparem. Há pessoas que, embora privadas de liberdade, na concepção de Cohen (2010, p.17)2, ”  lutam por aceitar com resignação os fatos e sentimentos que lhes impõe a existência” (tradução livre). Mas cada um de nós também encontrou, a seu modo, uma forma de conviver, de maneira digna, com suas culpas e traumas. Temos uma diferença: fomos encontrando maneiras de reparar relações danosas, de transformar imagens que carregamos dessas vivências, de perdoar os outros e, principalmente, nós mesmos.

A prisão, mesmo sendo percebida como inconveniente, perigosa e inútil, ainda permanece sem substituição.

No portal Drauzio Varella, Beatriz Zolin3 relata, no artigo A solidão das mulheres nas cadeias: para elas, a pena é dobrada, que, de acordo com uma pesquisa de campo realizada no estado de São Paulo, observou que as mulheres são punidas duplamente quando comparadas com os homens: elas enfrentam a culpabilização em relação ao crime cometido e o abandono. 

A autora observou que, em dias de visita, há filas na masculina, o que não testemunhou na feminina. Comenta que, além de ficarem longe dos filhos, são  “abandonadas por seus parceiros e renegadas pelas famílias, elas entram e saem dos presídios sozinhas.” Frisa, ainda, que ficam frente  ao desamparo, que não é um mero sentimento individual: “ele se reflete nas condições de saúde e de dignidade dentro das cadeias”.

Outro dado alarmante trazido pelo Infopen Mulheres (2016, p.66)4 é a taxa de suicídio entre mulheres no sistema prisional, que chega a ser 20 vezes a média nacional.

Em relação à saúde da mulher privada de liberdade, uma questão alarmante é referente à saúde mental. De acordo com o Infopen Mulheres 20185: “as chances de uma mulher no sistema prisional se suicidar são até 20 vezes maiores quando comparadas à população brasileira total”.

Importa considerar que, em geral, os entes federativos não possuem espaços que sejam adequados às demandas das mulheres, as unidades prisionais femininas são adaptações de unidades masculinas ou de outros tipos de edificações.

De acordo com a 5ª edição do “World Female Imprisonment List6 (Fair; Walmsley, 2022, p.2), o Brasil é o terceiro país do mundo com a maior população de mulheres privadas de liberdade, ficando atrás somente dos Estados Unidos e da China.

 Atualmente, a  população prisional feminina do Brasil é composta por  32.865 (trinta e dois mil, oitocentos e sessenta e cinco) mulheres em celas físicas ou outras carceragens (PC, PM, CBM ou PF), o que representa 5,06% da população prisional brasileira.

À época da realização da Residência em Capital Humano, no estado do Rio de Janeiro havia 2.254 mil mulheres em celas físicas, sendo 45% provisórias (Infopen, 2018), que ficavam custodiadas em 6  unidades prisionais exclusivamente femininas.

Ao mesmo tempo, a Secretaria de Administração Penitenciária contava com 877 inspetoras de polícia penal femininas. No entanto, apenas 237 estavam lotadas nas unidades prisionais exclusivamente femininas. Destas, ainda apenas 115 encontravam-se trabalhando nos plantões (fonte: Seap – nov/18). Isso significa que apenas 28% das inspetoras permaneciam na atividade direta de custódia. Como garantir a segurança com tão pouca gente no plantão, com tão poucos profissionais realizando a atividade fim?

Importa considerar que, assim como as mulheres privadas de liberdade, o cárcere ocasiona problemas na saúde mental das mulheres policiais penais, influenciando em sua vida particular e no seu trabalho. 

Bezerra, Assis e Constantino7, no estudo “Sofrimento psíquico e estresse no trabalho de agentes penitenciários: uma revisão da literatura”, observaram, sobre o burnout, que “entre os fatores de risco estão a sobrecarga de trabalho, falta de recursos materiais e humanos, nível de contato com os presos, superlotação, percepções sobre medo ou perigo, paradoxo punir/reeducar”. 

A pesquisa denominada “A pandemia de COVID-19 e o trabalho dos(as) policiais penais/agentes prisionais” 8, realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getúlio Vargas, identificou que os policiais penais em relação ao seu aspecto psicológico, ao serem perguntados quais foram as principais emoções vivenciadas no trabalho, apontaram: “muitas emoções negativas, com emoções positivas também presentes, mas em menor escala. Durante o contato com os(as) presos(as), as emoções mais mencionadas foram distanciamento e frieza, medo e indiferença, mas também empatia”.

Em nosso trabalho no presídio feminino, constatamos, por meio de questionários e, também, no  workshop que fizemos com as inspetoras, a importância que dão ao vínculo entre pares. 

Entendemos que ele funciona como fator de proteção para o enfrentamento da rotina num ambiente de sofrimento, ansiedade e incertezas de toda ordem, tanto nas privadas de liberdade quanto nas inspetoras que têm sua saúde mental, silenciosa e, paulatinamente, comprometida, assim como seu ambiente familiar. 

As histórias das privadas de liberdade comovem muito as inspetoras, que relatam ficar felizes quando algo que lhes disseram fez sentido e diferença na vida delas. Nesse sentido, as inspetoras saem de sua invisibilidade, visto que é uma profissão que não pode ser revelada publicamente, o que também pode ser tido como um fator de sofrimento.

É possível virar o jogo? 

Em primeiro lugar, seria importante melhorar as condições de trabalho dos servidores da execução penal como forma de diminuir o estresse e a sensação de medo e insegurança. Quanto menos estrutura, seja ela de mão de obra ou física, mais inseguro fica o ambiente prisional.

Szabó e Risso (2018, p.20)9, comentam, baseando-se em pesquisas e dados que comprovam sucesso, algumas medidas que nos parecem extremamente eficazes, nos levando a profundas reflexões e uma forma inovadora de relação com as engrenagens do sistema ao qual pertencemos. 

Vamos citar apenas as que nos chamaram mais atenção. Uma delas é conceber a segurança como bem público, cuja responsabilidade primária é do Estado, mas que também exige a participação ativa dos cidadãos. 

Dessa forma, a proteção das pessoas deve se situar no epicentro das intervenções e, portanto, oferecer proteção a todos. 

 As prisões, chamadas de escolas do crime, acabam recebendo muitas pessoas que cometeram crimes de baixo potencial ofensivo, e esses se relacionam com os demais privados de liberdade. Qual o resultado dessas pessoas em estado de vulnerabilidade, que não representavam ameaça, de fato, à sociedade, convivendo com criminosos? Suas vidas são transformadas para pior. Aqueles que não representam grandes problemas disciplinares dentro do sistema acabam cometendo diversas faltas disciplinares, gerando mais insegurança.

Não seria essencial que pudessem se reabilitar? Isso, além de exigir um novo investimento na infraestrutura de presídios para aqueles que cometeram crimes graves, possibilitando  capacitação profissional,  trabalho, estudo para presos são elementos-chave, ainda mais se considerarmos que 75% da população carcerária não concluiu o ensino médio.

Outro ponto muito importante seria  o investimento em centrais de alternativas penais para que as pessoas que cometeram crimes de baixo potencial ofensivo possam não estar nas unidades prisionais e poder se recuperar dentro da sociedade, sem perder seus vínculos familiares, sem perder a sua liberdade.

Ainda, o estudo aborda a relevância  da promoção de políticas de apoio a egressos que primam pela integração dessas pessoas à sociedade. Isso traria benefícios a toda a sociedade e, assim, estaríamos cooperando para a segurança da sociedade como um todo.

Isto posto, é preciso repensar formas de execução da pena que sejam proporcionais aos crimes realizados e que apresentem resultados satisfatórios de maneira comprovada. Isso exige ações não apenas do sistema penitenciário,  mas da justiça criminal, também. Como inserir essas pessoas na sociedade? É preciso oferecer algo também. 

Não se está aqui neste texto isentando pessoas do cumprimento de pena, mas discutindo formas proporcionais de fazê-lo, porque é fato que o sistema prisional não está dando conta deste problema. 

Dessa maneira, à prisão ficam destinados não somente os que executaram crimes com violência e, consequentemente, provocam danos irreparáveis, mas também aqueles que estão incluídos em casos de corrupção que prejudicam toda uma coletividade, podendo, por exemplo, existir uma abordagem específica para esse perfil.

Referências Bibliográficas

1 Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
2 Cohen, Dan Booth. Llevo tu corazón em mi corazón. Las constelaciones familiares y el sistema penitenciário. Madri, Gaia Ediciones, 2010.
3 Zolin, Beatriz. A solidão das mulheres nas cadeias: para elas, a pena é dobrada. 08.04.2024 Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/mulher/a-solidao-das-mulheres-nas-cadeias-para-elas-a-pena-e-dobrada/. Acesso em 06 ago.2024
4 BRASIL. Infopen Mulheres 2016. Ministério da Justíca. Brasília, 2016. Disponível em: file:///C:/Users/ana.faulhaber/Downloads/infopenmulheres-junho2016.pdf. Acesso em: 09 ago. 2024
5 BRASIL. Infopen Mulheres 2018. Ministério da Justíca. Brasília, 2018. Disponível em: https://conectas.org/wp-content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf. Acesso em 09 ago. 2024
6 FAIR, Helen; WALMSLEY, Roy (2022) World Female Imprisonment List (5th edition). Technical Report. ICPR, London, UK. Disponível em: https://www.prisonstudies.org/sites/default/files/resources/downloads/world_female_imprisonment_list_5th_edition.pdf.Acesso em: 09  ago. 2024.
7 BEZERRA, C. DE M.; ASSIS, S. G. DE .; CONSTANTINO, P.. Sofrimento psíquico e estresse no trabalho de agentes penitenciários: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 7, p. 2135–2146, jul. 2016.
8  LOTTA, Gabriela; MAGRI, Giordano; LIMA, Débora D. de; LIMA-SILVA, Fernanda; CORRÊA, Marcela; BECK, Amanda. A pandemia de Covid-19 e os(as) agentes prisionais/policiais penais no Brasil. Nota técnica. Fundação Getúlio Vargas. Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), agosto, 2020b. Disponível em: https://neburocracia.wordpress.com/wp-content/uploads/2020/11/relatorio-agentes-prisionais-profissionais-penais-3rodada.pdf. Acesso em:09 ago. 2024
9  Szabó, Ilona; Risso, Melina. Segurança pública para virar o jogo. São Paulo, Zahar, 2018. Ebook kindle.




Carolina Ricardo: É diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Advogada e Socióloga. Mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi assessora de projetos no Instituto São Paulo Contra a Violência, consultora do Banco Mundial e do BID em temas de segurança pública e prevenção da violência. Foi fellow no programa Draper Hills Summer Fellows oferecido pelo Center on Development, Democracy and the Rule of Law da Universidade de Stanford, Califórnia.

Ideli Domingues: Psicóloga, doutora em psicologia social (USP), especialista em grupos, sócia fundadora do Instituto Pichon-Rivière de Psicologia Social de São Paulo, focado na formação de facilitadores de grupos, com publicações na área de liderança, ex- professora de psicologia e equipes de alta performance da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo –FGVSP, arteterapeuta, contadora de histórias, terapeuta somática sistêmica, colaboradora do Conversas de Vida- Centro de Promoção de Esperança e Prevenção ao Suicídio do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental- CAISM Vila Mariana, da UNIFESP-SPDM.

Ana Christina Faulhaber: Mestranda em Ciências Sociais no Departamento de Estudos Latinos Americanos - Universidade Nacional de Brasília - ELA/UNB, especialista em: Contabilidade Aplicada ao Setor Público (2023), Gestão do Sistema Prisional (2020), Direito Penal e Criminal (2012) e Políticas e Gestão de Segurança Pública (2009). Graduada em Direito (2010) e Educação Física (2003). Inspetora de Polícia Penal há 19 anos, 14 anos de experiência em unidades prisionais femininas, 06 anos Diretora da Unidade Materno Infantil, SEAP/RJ. Atualmente mobilizada na Coordenação Nacional de Atenção às Mulheres e Grupos Vulneráveis da SEANPPEN - Secretaria Nacional de Políticas Penais.

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