“Papo cabeça” é um dos finalistas na categoria Saúde Mental da 6ª edição do Prêmio Espírito Público; votação está aberta

Por Célia Costa — Especial para República.org

“Não quero viver em um aquário. Não sou peixe” e “Não vou viver para subir em pé de açaí” são algumas frases repetidas por adolescentes que participam das rodas de conversa do projeto “Papo cabeça”, um programa de prevenção de suicídio e automutilação elaborado e posto em prática por servidores públicos na rede escolar do município de Abaetetuba, no Pará.

A cidade, que tem em seu território 72 ilhas e fica a duas horas da capital Belém, viu crescer o número de casos de ansiedade, tentativa de suicídio e riscos de automutilação entre adolescentes durante a pandemia. Foi nesse cenário que, em 2022, a prefeitura convidou a especialista em Saúde Mental e Psicologia Clínica Rachel Dias, que estava inativa à época, para formular um projeto que enfrentasse o problema.

Foi assim que surgiu o “Papo cabeça”, projeto finalista da 6ª edição do Prêmio Espírito Público (PEP) na categoria Promoção e Prevenção da Saúde Mental de Adolescentes, que está em votação popular até o dia 3 de julho. “E agora? Um rolé digital” e “Rap da saúde” também são finalistas. O prêmio é uma realização da Parceria Vamos e a categoria Saúde Mental está sendo apoiada pelo Instituto Cactus.

Nos bate-papos, mediados por psicólogos e professores, são abordados assuntos como bullying, violência física, violência sexual, violência doméstica, racismo, homofobia, machismo, preconceito, discriminação, entre outros.

PARTICIPE: clique aqui para votar na categoria Promoção e Prevenção da Saúde Mental de Adolescentes, do 6º Prêmio Espírito Público.

Isolamento social durante a pandemia trouxe consequências à saúde mental de adolescentes

“Fui chamada para coordenar a área da Saúde Mental. Com o isolamento, os casos de transtornos mentais aumentaram muito. A situação era muito grave nas escolas e havia uma grande dificuldade em lidar com o aumento dos casos de tentativas de suicídio e automutilação”, relata Rachel Dias.

A partir de dados epidemiológicos e da solicitação de vários diretores de escola que pediram atendimentos. As escolas não tinham equipe psicossocial para atender à demanda. Após avaliação da equipe de Saúde Mental, foi constatado que era necessária uma intervenção duradoura, mas que fosse atrativa aos jovens. O objetivo era ampliar o debate sobre prevenção e promoção da saúde mental, e não só ações assistenciais. A equipe viu a necessidade de uma ação integrada entre educação, saúde, assistência e cultura para criar o plano de ação.

Com o início do projeto, as conversas passaram a ser constantes nas escolas da rede municipal. Os alunos foram incentivados pelos mediadores a falar livremente das questões que lhes causavam sofrimento. Após as rodas de conversa, eram dadas as orientações pertinentes, e a equipe buscava tirar dúvidas dos jovens. No final, eram propostas escutas individuais, nas quais os participantes eram ouvidos e recebiam orientação sobre onde procurar ajuda.

A situação era muito grave nas escolas e havia uma grande dificuldade em lidar com o aumento dos casos de tentativas de suicídio e automutilação.

Rachel Dias, especialista em Saúde Mental e Psicologia Clínica

Um dos métodos usados é a brincadeira da batata-quente. Os adolescentes formam uma roda e passam de mão em mão uma caixinha com perguntas relacionadas às questões mais comuns aos participantes. Ao som de uma música, eles passam a caixinha. Quando a música para, quem estiver com a caixa na mão terá que tirar um papel com a pergunta. São perguntas sobre assuntos sensíveis, mas não são questionamentos diretos.

A preocupação é que não haja disparo de gatilhos emocionais. Alguns não respondem por timidez. Os que já receberam a “batata-quente” saem por uma rodada e ganham um doce como se fosse uma prenda quando respondem.

Falta de perspectiva e de opções de lazer são fatores de sofrimento para jovens

Para explicar o aumento dos casos de sofrimento psíquico entre os estudantes, a coordenadora do “Papo cabeça” cita como um dos fatores a geografia de Abaetetuba. A cidade cresceu às margens do Rio Maratauíra, um dos afluentes do Rio Tocantins. É dividida em três regiões distintas com diferentes realidades: a zona urbana, que tem 17 bairros; a zona rural, com suas estradas e ramais; e as ilhas. Nas 72 ilhas vivem a maioria da população.

“A realidade dos jovens que vivem nas ilhas é diferenciada. O sofrimento psíquico é agravado pela dificuldade de acesso a bens de consumo e pela falta de opções de lazer. Os jovens também têm poucas chances de trabalho. O cultivo do açaí é a principal atividade, mas muitos jovens não querem trabalhar na colheita do fruto. Para agravar a situação de vulnerabilidade dos estudantes, as ilhas ficam na rota do tráfico de drogas. A maioria recebe o Bolsa Família e, mesmo que falte comida na mesa, todos têm celulares e acesso às redes sociais”, pontua Rachel Dias.

Roda de conversa com alunos no pátio de uma escola pública de Abaetetuba (PA). Foto: Divulgação.

A coordenadora revela que muitos desses estudantes passam por violências em casa. Os casos de violência física e sexual são encaminhados para o Conselho Tutelar, responsável por denunciar o ocorrido. Também há casos de castigos físicos, a maioria cometidos por pais que usam álcool e drogas.

Rachel Dias explica que os jovens estão mais sujeitos à pressão do ambiente social, à angústia avassaladora, ao convívio com a diversidade cultural e até ao estresse provocado por conflitos e pelas diversas formas de violência que acontecem no ambiente social, familiar e escolar. “Sendo assim, tem-se o entendimento de que a escola pode ser o único ambiente social que acolhe e dá refúgio a esses adolescentes em sofrimento psíquico”, acrescenta a psicóloga.

Jovens atendidos após tentativa de suicídio continuam em acompanhamento pelo CAPS

Após o primeiro ano do projeto, todos os coordenadores escolares tinham passado por formação para serem multiplicadores. Segundo os coordenadores, houve uma diminuição de novos casos graves. De acordo com o levantamento do número de atendimentos, 1.250 alunos de 16 escolas passaram pelo projeto, sendo que 62 deles estavam em risco de suicídio ou automutilação. Todos foram encaminhados imediatamente para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

A realidade dos jovens que vivem em ilhas é diferenciada. O sofrimento psíquico é agravado pela dificuldade de acesso a bens de consumo e a falta de opções de lazer. Os jovens também têm poucas chances de trabalho.

Rachel Dias

Houve encaminhamento também para o Centro de Referência de Assistência Social (CREAS), onde 18 jovens foram atendidos. Três estudantes passaram por acompanhamento do Conselho Tutelar. Anteriormente, o número de jovens encaminhados pelas escolas chegava a 40 no semestre.

Os casos de tentativa de suicídio foram atenuados, mas a maioria ainda faz tratamento para crises de ansiedade. “Uma condição bem mais fácil de lidar do que a situação que encontramos no início do projeto”, acrescenta Rachel Dias.

Objetivo é que iniciativa de apoio à saúde mental de adolescentes e jovens seja replicada

Para poder disseminar e incentivar que o projeto seja replicado, todas as ações são documentadas passo a passo, do que foi desenvolvido e os aprendizados. O “Papo cabeça” também foi apresentado em eventos de disseminação nacional, como o 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental e na Mostra “Pará aqui tem SUS”, sendo escolhido como finalista. Foi apresentado para técnicos de outros estados, quando houve troca de conhecimento para sua melhoria, conforme os coordenadores.

Os adolescentes identificados nas escolas foram, à medida que o projeto avançava, direcionados para os mais variados serviços e projetos, como serviços de saúde, projetos de esporte, o projeto Brincando de Miriti, CAPS, CREAS, cursos diversos, grupos de esporte e danças culturais. Foram mapeadas ações governamentais e não governamentais que se tornaram apoiadoras e parceiras do projeto, potencializando, assim, uma grande rede de proteção em torno dos adolescentes.

“Com a experiência exitosa do projeto que implantamos na rede escolar queremos divulgar nossa experiência para que outras cidades também planejem”, conclui Rachel Dias.

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