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Sobre os trilhos do serviço público
Sejamos francos: quem responderia à famosa pergunta “o que você quer ser quando crescer?”, com um “quero ser comprador público!”. Aliás, a partir da era digital, ser um “funcionário público” deixou de ser objeto de desejo. O mundo mudou! Tudo passa rápido, tudo fica obsoleto em instantes. O 5G bate à nossa porta e mudará de forma arrebatadora não apenas as formas de trabalho, mas também a nossa vida. E, com essa reflexão, chegamos ao fim da nossa pequena jornada literária e dividimos com você, caro leitor, nossas expectativas, esperanças e angústias sobre o futuro do comprador público.
Nos capítulos anteriores, tratamos de pontos críticos para a atividade do comprador. Lembrem-se, é necessário conhecer a legislação atualizada, incluindo todas as normas infralegais, orientações de órgãos de controle e a jurisprudência. Nada disso é suficiente se não existe um processo bem desenhado e monitorado. Também vimos que o comprador não atua de modo solitário. Pelo contrário, a contratação pública envolve um universo de atores que atuam no planejamento, jurídico, controle, execução contratual e, por isso, exige capacidade de relacionamento interpessoal e comportamental de forma a lidar com inúmeros conflitos, pessoais e profissionais.
O cotidiano do comprador público foi ilustrado em seu diário dramático-ficcional. Entre “os escolhidos” há os vocacionados, os que se tornaram viciados, mas, também, os revoltados que caíram de paraquedas e buscam com todas as forças fugir e nunca mais ouvir falar em licitação. Chefes tiranos, incompetentes, falta de feedback, de transparência, falta de apoio e respeito, assédio, falta de reconhecimento, baixa remuneração, falta de capacitação… A lista parece infinita. Mas calma, há luz em meio às trevas.
Ao longo da nossa caminhada, pudemos aliviar nossas angústias e a base disso vem, sobretudo, da Nova Lei de Licitações: a governança, trivial no setor privado (mas não tanto, porque também ali se bate cabeça sobre o tema), finalmente tem um impulso na administração pública. Para nosso comprador público, a gestão por competências é o instrumento que poderá virar esse jogo a partir da identificação de perfis adequados às exigências do cargo. Pronto! Agora podemos falar para onde queremos ir e decidir qual(is) caminho(s) seguir.
A hora é de ressignificar o papel do comprador público e, para isso, entender qual o perfil adequado para dar conta da odisseia que é bem mais que uma compra de papel higiênico ou mais uma construção de um viaduto. Ser um comprador público é, em primeiro lugar, ter a consciência do seu papel fundamental na execução de políticas públicas. É fazer todo um esforço, inclusive, de mudança da imagem desse comprador: não um executor de normas e procedimentos ou operador de sistemas, mas um avaliador de estratégias, um entendedor de mercados, um negociador, um indivíduo que possui visão sistêmica. E como diria Will Traynor, em “Como eu era antes de você”, para fazer essa mudança é preciso “entender o seu potencial”. Sim, potencial! Pra caramba!!!
Sobre os trilhos do serviço público
A persona comprador não é um ser de outro mundo, mas, quando corretamente alocado, capacitado, motivado, é extraordinário. Pensemos então que para isso, um caminho precisa ser percorrido. Que tal aproveitar a presença de maioria mineira nesse artigo pra fazer uma viagem de trem?
A estação de partida é o ingresso no serviço público e essa viagem já começou há um certo tempo. Nesse trem estão trabalhadores no início da viagem, outros que já passaram por várias estações. Alguns seguiram o trem… Outros desceram e partiram para outros caminhos, em outros transportes. Muitos eram excelentes, mas sucumbiram ao caos. É por isso que é importante valorizar os passageiros que já estão nessa viagem. Respeito à experiência, reconhecimento do serviço prestado, valorização profissional. E, claro, capacitação!
Estamos numa era em que a tecnologia é marca registrada. Velocidade e eficiência são requisitos de qualquer relação humana. Tudo muda muito rápido. Inclusive as leis, a jurisprudência, os processos. Tudo intercalado em meio à inovação, à exigência de transparência e ao controle, inclusive público, inclusive de haters. “Tem base” fazer tudo isso sem estar capacitado? Sem chance.
Para os servidores que já estão no setor público podemos (ou devemos, seria o melhor termo) pensar em uma política de desenvolvimento frequente, orientada pela oferta de conteúdos alinhados às competências previamente definidas para o exercício de uma determinada função (no caso de comprador ou dos outros atores envolvidos no processo). Outra variável importante é a construção de um plano de desenvolvimento que leve em consideração o estágio em que aquele indivíduo se encontra, bem como suas necessidades especiais, que vão desde facilidades e dificuldades de aprendizagem à afinidade e potencial com determinado conteúdo.
Trocando em miúdos: quando falamos de capacitação e desenvolvimento pensamos, não apenas em um curso proforma, realizado online no mesmo horário de uma sessão pública, com inúmeras demandas ao mesmo tempo e a chefia questionando se precisa mesmo fazer o curso ou apagar o incêndio que pega na sala ao lado. Estamos falando em considerar as formas tradicionais conjugadas com novas estratégias de aprendizagem. Nesse aspecto, podemos pensar, por exemplo, em trilhas de aprendizagem (e isso não é conversa de mineiro, mas do educador e consultor Pedro Paulo Carbone). Esses caminhos contemplam um conjunto de conhecimentos cuidadosamente selecionados por curadores que atuam como aqueles que se dedicam a organizar as exposições de arte: selecionando o que há de melhor, os caminhos possíveis conforme o perfil de cada participante/visitante. À medida que a trilha vai ficando robusta, vai se subdividindo em trilhos menores para viagens mais específicas. Legislação, doutrina, jurisprudência, modelos de documentos, cursos, conteúdo básico, avançado, complementar. A trilha está aí, sempre disposta a ser percorrida, de uma única vez ou em vários trechos, conforme a necessidade do comprador. E sendo sempre atualizada.
O mesmo trem pode oferecer aos passageiros outras possibilidades como a certificação. Já valorizada em outras áreas de conhecimento, em especial Gestão de Projetos, Gestão de Processos e Tecnologia da Informação, também nas compras públicas, esse instrumento pode atender a determinados públicos. Se já convivíamos com certa frequência com a certificação para pregoeiros (mas ainda muito simples perto dessas mencionadas), o mesmo pode se dar para o agente de contratação, o fiscal, o gestor do contrato. E se é possível tanta força nessa certificação, por que não pensar que ela seja frequente, robusta, de conteúdo vasto e atualizado e valorativa?
Falar em certificação é também dar mais um passo rumo à mudança da imagem e da atuação do nosso comprador público, tomando por boas práticas as certificações de compradores1, já existentes em outros países como Chile e Estados Unidos, e em organismos internacionais, como o Banco Mundial. E em vários desses casos, além da certificação, que associa conhecimentos e habilidades necessários para assumir essa função de comprador, é exigido determinado grau de experiência, trazendo a importância da prática e da vivência.
Independentemente se em forma de capacitação tradicional, trilhas de aprendizagem ou certificação, não podemos esquecer que, com a Nova Lei de Licitações, viabilizar e garantir o desenvolvimento dos compradores se trata de obrigação tanto da alta administração[1], como dos tribunais de contas[2]. Então, não demorará a exigência de comprovação de cumprimento da lei. Se não for pelo amor, será pela dor.
Pois bem, caro leitor, falamos dos passageiros do trem, das possibilidades, dos desiludidos, dos esperançosos. Mas não podemos esquecer que nas mesmas estações há chegadas e partidas. Precisamos pensar em como colocar mais passageiros nesse trem, afinal, com tanta tecnologia, esse veículo não é apenas para saudosistas. O que pode haver de atrativo? Como chegar ao destino de forma a competir com um avião? Talvez para esses a resposta seja a carreira.
Policiais, professores, auditores, juízes, médicos, bombeiros. Há carreiras bem estabilizadas, umas mais e outras menos valorizadas, mas que têm em comum a certeza do que se espera quando da inscrição num concurso público. A carreira pode permitir seleção direcionada para os conhecimentos exigidos, valorizar formações afins nos títulos, ter possibilidades reais de crescimento e valorização profissional, além, é claro, da força que qualquer carreira proporciona. Isso tudo passa pelo entendimento de que as compras públicas são vitais para o atendimento de necessidades públicas. Então, já não é hora de valorizar esses profissionais para que eles tenham condições de entregar todo o resultado esperado? Ou é mais fácil sentar-se à beira da janela e ver o trem passar?
Não sabemos se, ao chegar ao fim dessa nossa pequena aventura, conseguimos trazer mais respostas ou provocações. Mas esperamos que tenhamos conseguido trazer um holofote para um tema que há muito carecia. Temos a certeza de que em nenhum outro momento a gestão de pessoas teve tantas possibilidades de desenvolvimento. Ser herói pode ser legal – nos quadrinhos. No dia a dia, o que se espera é ter e dar condições de trabalho, sem precisar pular de um prédio para outro numa teia de aranha. Realidade paralela? Isso não é humano. Acreditamos nisso. Iludidas? Não. Sonhadoras, talvez! Esperançosas? Muito!
“Tudo é uma questão de manter/ A mente quieta/ A espinha ereta/ E o coração tranquilo”, Walter Franco.
Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.
[1] Exemplo de certificação de compradores utilizada é a Certified International Property Specialist – CIPS. Disponível em: <https://www.cips.org/learn/qualifications/>.
[1] art. 18, § 1º, X – providências a serem adotadas pela Administração previamente à celebração do contrato, inclusive quanto à capacitação de servidores ou de empregados para fiscalização e gestão contratual; art. 169, § 3º, I – quando constatarem simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis;
[2] Art. 173. Os tribunais de contas deverão, por meio de suas escolas de contas, promover eventos de capacitação para os servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei, incluídos cursos presenciais e a distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas.