Cláudio vive nas ruas desde a pandemia. Ele perdeu o emprego de auxiliar de cozinha, seu casamento terminou e ele acabou indo viver na rua. Desde então, Cláudio tem trabalhado na catação de materiais recicláveis ou em qualquer bico que aparece, seja como pintor, pedreiro ou na área de limpeza ele faz de tudo. Na semana passada, um carro passou por cima de seu pé enquanto descarregava um caminhão, e ele quebrou seu dedo. Nos últimos dias, tem convivido com a dor, mas não está conseguindo andar nem trabalhar direito. Por isso, hoje Cláudio decidiu dormir num albergue. Pediu ajuda a uma senhora da Assistência Social, que trabalha de colete verde por ali todos os dias, e que, após algumas ligações, conseguiu uma vaga de pernoite para Cláudio. Como ele não conseguia andar direito, ela acionou outra equipe para buscá-lo e levá-lo ao serviço. Chegando ao albergue, a assistente social, diante da situação do seu pé, ligou para a equipe de saúde do território. No dia seguinte, a equipe de saúde apareceu e informou Cláudio que conseguiria somente dar remédios para a dor e que teria que acionar outro serviço para fazer um raio-X de seu pé. Isso demoraria alguns dias, mas a enfermeira tentaria que fosse rápido para que ele não precisasse de cirurgia, porque, se fosse o caso, teriam que encaminhá-lo ao hospital. Cláudio não gosta muito do albergue e nem de ficar sem trabalhar, mas ele não tem muitas alternativas no momento. Ele pediu ajuda para a assistente social do Centro de Acolhida para conseguir um emprego, um benefício, qualquer coisa. Ela, então, agendou um horário para ele no Centro de Referência de Assistência Social para fazer seu cadastro no Auxílio Brasil e conseguiu um atendimento no trailer da Secretaria do Trabalho para fazer o seu currículo e inscrevê-lo em vagas de emprego que não exijam muita mobilidade. Cláudio está meio chateado com a situação toda, já que nunca precisou de ajuda do governo, mas agora se vê dependendo de vários serviços para sobreviver. 

A saga de Cláudio, infelizmente, não é muito diferente da de muitas pessoas em situação de rua, especialmente em grandes centros urbanos do Brasil. Muitas vezes contra sua vontade, essas pessoas precisam acionar diferentes serviços públicos para conseguir suprir suas necessidades mais básicas, como alimentação, geração de renda e saúde. Embora as políticas sociais tenham se fortalecido no Brasil nos últimos 30 anos, especialmente com o Sistema Único de Saúde e a Assistência Social, navegar entre os diferentes serviços públicos pode ser um desafio para quem vive nas calçadas. 

As pessoas em situação de rua tendem a estar em um contexto de vulnerabilidade extrema, que se manifesta por diversos problemas específicos e, por vezes, de resolução complexa. Mesmo com equipamentos e políticas públicas direcionados para a população em situação de rua, os serviços ainda são organizados na lógica setorial, o que exige que muitas burocracias estatais se envolvam para dar conta da complexidade de seus problemas. Além disso, é possível que exigências, formalidades e linguagens complexas se tornem novas barreiras para o efetivo acesso a serviços públicos.

No caso de Cláudio, para dar conta de uma situação particular, muitas equipes precisaram ser envolvidas, seja dentro de uma mesma Secretaria, seja em articulação com outras pastas. Estruturas burocráticas temáticas foram as soluções construídas pelo Estado brasileiro para qualificar e efetivar a entrega de políticas públicas, o que, em última análise, é a principal ferramenta para garantia de direitos aos brasileiros. No entanto, para alguém como Cláudio, ter que transitar entre tantas equipes pode impedir que seus problemas sejam resolvidos e seus direitos, efetivados. Isso ressalta a importância dos profissionais da linha de frente para a efetivação de direitos de grupos vulnerabilizados — trabalhadores que a literatura de Administração Pública chama também de burocracia de nível de rua. É a interação com esses profissionais que materializa as experiências dos cidadãos com o Estado e que, em última análise, define o acesso às políticas públicas.

Nesse sentido, a necessidade de cooperação e coordenação entre diferentes burocracias estatais alça a discussão sobre a intersetorialidade a um lugar central para responder a problemas sociais complexos, uma vez que articula a integração de saberes e setores (Inojosa, 2001)1. Cunill-Grau (2014)2 argumenta que a intersetorialidade se sustenta em relações de colaboração não hierárquicas, com implicações políticas, visto que consiste em uma decisão de se transformar os serviços envolvidos para promover uma resposta integral; e implicações técnicas, pois permite que recursos próprios de cada setor possam ser compartilhados, desenvolvendo-se soluções mais assertivas.

Entretanto, pensar a intersetorialidade na linha de frente dos serviços públicos é ir além de abordagens prescritivas, que constroem modelos ideais de interação, e buscar entender como essas relações se dão na implementação de políticas públicas e na rotina dos profissionais da ponta. Canato e Bichir (2021)3 ressaltam a importância de se considerar quatro dimensões na análise da intersetorialidade: (i) a forma como os diferentes setores definem problemas; (ii) os modos de coordenação de programas intersetoriais; (iii) como é feito o processo de tomada de decisão; e (iv) quais arranjos de implementação estão presentes. No entanto, quando se refere à linha de frente do Estado, os arranjos de implementação ganham destaque, pois geralmente se voltam às soluções mais práticas de problemas do cotidiano. Nessa dimensão, Lotta (2014)4 ressalta a importância de se observar fatores institucionais, concernentes às regras e procedimentos que interferem na relação entre diferentes setores, bem como fatores relacionais, que dizem respeito às redes e relações que se estabelecem na prática. Assim, na prática da linha de frente, o que garante que os problemas sejam resolvidos são as alternativas oferecidas pelo Estado e os fluxos que se constroem no dia a dia, como pôde ser visto no caso de Cláudio, quando a assistente social acionou o serviço de saúde a fim de providenciar cuidado médico para seu pé.

Nesse sentido, a intersetorialidade nas políticas voltadas à população em situação de rua, para que seja efetiva, não pode estar restrita a ações pontuais ou meros encaminhamentos entre diferentes burocracias da linha de frente. Pessoas em situação de rua, por estarem expostas a múltiplas necessidades, exigem uma articulação mais complexa de serviços. Assim, olhando para as burocracias, Cunnil-Grau (2014) destaca que a intersetorialidade, quando se dá em alta intensidade, enseja mudanças mais estruturais nas duas áreas em articulação. Essas mudanças impactam na estrutura desses órgãos, ao passo que articulam ações e processos gerenciais conjuntos, compartilhamento constante de informações, recursos e responsabilidades e até a alteração das estruturas organizativas de cada setor.

Como as políticas para a população em situação de rua e sua rede de atenção são muito diversas nas regiões do país, é preciso que as alternativas sejam construídas com base na realidade de cada território. Contudo, independentemente da realidade local, as soluções criadas devem passar por espaços conjuntos de compartilhamento de informações e de tomada de decisão. Na prática, isso se refere a um espaço para pactuação de fluxos de encaminhamento, articulação para ampliação da oferta de serviços e de discussão conjunta de casos mais complexos. É preciso que os contatos e interações entre diferentes áreas do Estado saiam do nível individual e comecem a se institucionalizar, de forma a garantirem mais assertividade às ofertas para a população em situação de rua.

A construção da intersetorialidade é um problema que está na agenda do dia de profissionais da linha de frente da assistência social e da saúde que trabalham com pessoas em situação de rua. É isso que aponta o relatório5 da Comunidade de Práticas em Atenção Primária em Saúde (ComPAPS) sobre a população em situação de rua em tempos de COVID-19, organizado pela Fiocruz e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). O relatório, construído com a participação de trabalhadores de saúde e de assistência social de todos os estados brasileiros, traz diversas estratégias adotadas pelas equipes da ponta para lidar com os desafios trazidos pela pandemia no atendimento de pessoas em situação de rua. Durante a crise da COVID-19, as burocracias estatais tiveram que desenvolver estratégias conjuntas para efetivar o atendimento a essa população. Isso permitiu a construção de espaços intersetoriais para compartilhamento de informações e para atuação conjunta, que resultaram em pelo menos dez boas práticas registradas no relatório, como a definição de protocolos de atendimento, a criação de equipamentos públicos de gestão conjunta entre saúde e assistência social e a integração de bases de dados em sistemas compartilhados. 

Ao fim, todas as boas práticas registradas pela ComPAPS, bem como as novas estratégias desenvolvidas territorialmente atenderam a um fim único de qualificar o atendimento público às pessoas em situação de rua. A qualificação e a integração se dão justamente para garantir que pessoas como Cláudio possam navegar entre as instituições e para que as políticas públicas cheguem de forma efetiva às pessoas em condições de extrema vulnerabilidade. Como argumenta Dan Small, pesquisador da Universidade de British Columbia, é preciso que os serviços se adaptem às pessoas, e não que as pessoas tenham que se adaptar aos serviços. Embora complexo, esse é o caminho mais promissor para a efetivação da cidadania para todas as brasileiras e brasileiros.

Referências bibliográficas:

1Inojosa, R. M. (2001). Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos Fundap, 22, 102-110.

2Cunill-Grau, N. (2014). La intersectorialidad en las nuevas políticas sociales: un acercamiento analítico-conceptual. Gestión y Política Pública, 23, 5-46.

3Canato, P., & Bichir, R. (2021). Intersetorialidade e redes sociais: a implementação de projetos para população em situação de rua em São Paulo. Revista De Administração Pública, 55(4), 995–1006. https://doi.org/10.1590/0034-761220200688

4Lotta, G. (2014). Agentes de implementação: uma forma de análise de políticas públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 19(65).Muchagata, M. (org) (2023).

5Fique em casa? Desafios e experiências das Comunidades Práticas em Atenção Primária em Saúde para Populações em Situação de Rua no contexto da Covid-19. Comunidade de Práticas APS e Populações em Situação de Rua no Contexto da COVID-19 – ComPAPS – Brasília: ComPAPS; Fiocruz; CONASEMS; Zabelê Comunicação, 156 p. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1-S35YnM0vxtQ9Dc2LVuQzCgeGWruAC68/view?pli=1

A nota é de responsabilidade do autor e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ele está vinculado.

Giordano Magri

Giordano Magri é pesquisador e doutorando pela Fundação Getulio Vargas e Universidade de Groningen (Holanda). Advogado graduado pela USP, com mestrado em Administração Pública e Governo pela FGV, foi Chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo e na Câmara Municipal de São Paulo. Pesquisador vinculado ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e ao Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), estuda temas relacionados à relação de grupos vulnerabilizados com instituições do Estado, dentre eles população em situação de rua, conflitos urbanos e Cracolândia.

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