Países que conseguiram melhorar a performance de seus serviços públicos investiram na qualidade de todo o ciclo de gestão de pessoas
Resumo:
Demissões por desempenho insuficiente continuam sendo uma exceção no setor público em todo o mundo. Dados do Reino Unido, Estados Unidos e Portugal mostram que desligar servidores por baixa performance é raro, mesmo em sistemas com regras rígidas. O problema não é apenas técnico: é cultural e gerencial. A experiência internacional indica que melhorar a performance dos serviços públicos passa menos por aumentar demissões e mais por fortalecer todo o ciclo de gestão de pessoas, do recrutamento à avaliação contínua.
Índice:
O paradoxo da performance pública
A ilusão das soluções “automáticas”
O peso da história e da política
A palavra para o sucesso é gestão
A inação cobra mais caro que a coragem de transformar
Em setembro de 2023, um relatório do Effective Governance Forum (EGF) revelou um dado que deveria incomodar qualquer cidadão britânico: um funcionário público tinha dez vezes mais chances de morrer no cargo do que de ser demitido por baixo desempenho. Em todo o governo central britânico, com mais de 310 mil servidores, apenas 24 pessoas foram dispensadas por performance inadequada em um ano inteiro. A cifra representa 0,01% do quadro — estatisticamente irrelevante.
O caso britânico não é a exceção, mas a regra. Nos Estados Unidos, estatísticas do Bureau of Labor Statistics indicam que, enquanto a taxa de demissões e dispensas no setor privado varia entre 1,1% e 1,3%, no governo federal essa taxa é significativamente menor, situando-se entre 0,2% e 0,4% (ver tabela 24, p. 35). Mesmo Portugal, que ousou introduzir em 2007 uma regra aparentemente rígida — dois anos consecutivos de avaliação ‘insuficiente’ resultam em procedimento disciplinar — raramente vê a norma aplicada na prática. Em 2022, por exemplo, apenas 2.341 servidores receberam a menção de desempenho ‘Inadequado’, o que corresponde a menos de 1% dos 90.243 avaliados.
A persistência desse padrão ao redor do mundo revela uma verdade desconfortável: a dificuldade de demitir servidores públicos por baixo desempenho não é uma peculiaridade de países com burocracias “atrasadas” ou sistemas políticos “imaturos”. É um dilema universal das democracias modernas, que expõe uma tensão fundamental no coração do conceito de serviço público profissional.
O paradoxo da performance pública
Essa tensão nasce de uma contradição aparentemente irreconciliável. Por um lado, cidadãos e políticos eleitos legitimamente exigem que o Estado funcione bem, que os serviços públicos sejam eficientes e que os recursos sejam bem utilizados. Por outro lado, a própria natureza do trabalho público — sua complexidade, seus objetivos múltiplos e frequentemente conflitantes e sua exposição à influência política — torna extremamente difícil medir o que significa “funcionar bem” de forma objetiva e justa.
Como medir o “sucesso” de um diplomata que negocia acordos complexos cujos frutos só serão vistos em décadas? Como avaliar “objetivamente” o desempenho de um assistente social que lida com famílias em situação de vulnerabilidade extrema, onde cada caso é único e os resultados dependem de fatores que escapam completamente ao seu controle? Como quantificar a contribuição de um servidor que previne crises ao invés de resolvê-las, tornando seu trabalho mais eficaz justamente quando é menos visível?
Essa dificuldade conceitual cria o que podemos chamar de “paradoxo da performance pública”. Quanto mais tentamos medir o desempenho no setor público com precisão técnica, mais criamos incentivos perversos que distorcem o próprio trabalho que queremos melhorar. Funcionários começam a “jogar com os números”, focando obsessivamente nas métricas em detrimento dos objetivos reais. Professores “ensinam para o teste” em vez de educar integralmente. Policiais prendem mais pessoas para aumentar suas estatísticas, não necessariamente para reduzir a criminalidade. Hospitais públicos evitam casos complexos para melhorar suas taxas de “sucesso”.
A ilusão das soluções “automáticas”
Diante desse cenário, a tentação natural é buscar soluções técnicas. Melhorar os indicadores. Refinar as metodologias de avaliação. Criar sistemas mais sofisticados de mensuração. A promessa sedutora é de que, com as ferramentas certas, finalmente conseguiremos medir o desempenho público com a precisão e, assim, poderemos finalmente responsabilizar os maus servidores.
Essa é uma ilusão perigosa. A experiência internacional demonstra que mesmo os sistemas de avaliação mais sofisticados esbarram em limites quando se trata da realidade organizacional. Nos Estados Unidos, por exemplo, o processo de demissão por baixo desempenho é tecnicamente robusto: inclui Planos de Melhoria de Desempenho (PIPs), documentação rigorosa, múltiplas oportunidades de defesa e instâncias de recurso. Mesmo assim, gestores federais americanos preferem sistematicamente transferir funcionários problemáticos para outras áreas em vez de enfrentar o processo demissional. Uma pesquisa revelou que 27% dos supervisores admitiram já ter “passado o problema adiante” dessa forma.
No Reino Unido, apesar da flexibilidade legal para demitir funcionários por baixo desempenho, uma pesquisa de 2024 mostrou que dois terços dos servidores acreditam que suas chefias rotineiramente realocam funcionários problemáticos em vez de confrontar a questão. Três em cada quatro gestores concordaram que o processo para lidar com baixo desempenho é “complicado demais e pouco claro”. O resultado é uma cultura organizacional onde todos sabem quem são os funcionários de baixo desempenho, mas ninguém age efetivamente para resolver o problema.
Esses dados revelam uma verdade incômoda: o problema não é fundamentalmente técnico. É cultural, político e, acima de tudo, gerencial. Mesmo com todas as ferramentas legais e procedimentais à disposição, gestores evitam confrontos. Servidores resistem a mudanças. Sindicatos temem precedentes. Políticos preferem não mexer em vespeiros. A complexidade do desempenho público serve como desculpa perfeita para a inação.
O peso da história e da política
Para compreender por que essa inação é tão persistente, é preciso entender o contexto histórico que moldou os sistemas de serviço público contemporâneos. A estabilidade no emprego público não surgiu por acaso ou por “protecionismo corporativo”. Ela foi uma resposta deliberada e necessária aos abusos do sistema de patronagem política que caracterizou os governos até o final do século XIX e início do XX.
Nos Estados Unidos, o Pendleton Act de 1883 criou o sistema de mérito justamente para acabar com o “spoils system”, no qual cada mudança de governo resultava na demissão em massa de funcionários para distribuição de cargos entre correligionários do novo presidente. No Brasil, a inclusão da estabilidade do servidor público na Constituição de 1988 não foi um capricho corporativo, mas uma reação aos desmandos da ditadura militar, quando funcionários foram perseguidos, transferidos ou demitidos por razões políticas.
Essa memória histórica não é mero preciosismo acadêmico. Ela explica por que qualquer discussão sobre facilitar demissões no setor público imediatamente ativa alarmes sobre possível retorno ao clientelismo e à perseguição política. Contudo, reconhecer a complexidade do problema não pode servir como justificativa para a paralisia. O custo da inação é real e crescente. Quando funcionários sabem que seu desempenho terá poucas consequências práticas, os incentivos se desalinham de forma perversa. Servidores dedicados se desmotivam ao ver colegas negligentes recebendo o mesmo tratamento. Gestores competentes se frustram com a impossibilidade de fazer mudanças necessárias. Cidadãos perdem confiança nas instituições públicas.
A palavra para o sucesso é gestão
A transformação da administração pública começa com uma decisão política: adotar a gestão estratégica em cada organização estatal. Isso exige o compromisso do chefe de governo e o alinhamento dos dirigentes que ele nomeia. O primeiro passo é definir com clareza a missão e a visão de futuro de cada órgão, traduzindo-as em programas, metas e indicadores coerentes, com responsabilidades bem atribuídas. Esse processo demanda disciplina e melhoria contínua. Leva tempo, aprendizado e liderança.
A experiência internacional mostra que o bom desempenho não resulta de estruturas rígidas, que engessam a gestão, nem da flexibilidade irrestrita, que abre espaço para abusos. O caminho está em sistemas equilibrados, que combinem proteção institucional com consequências reais para desempenhos insatisfatórios. No fim das contas, a palavra para sucesso é gestão.
Esse equilíbrio exige, antes de tudo, abandonar a obsessão com a demissão como solução mágica. Países que conseguiram melhorar a performance de seus serviços públicos fizeram isso não aumentando drasticamente as demissões, mas investindo na qualidade de todo o ciclo de gestão de pessoas. A demissão eficaz é, paradoxalmente, consequência de um sistema que raramente precisa demitir, porque previne e corrige problemas de desempenho antes que se tornem crônicos.
Isso significa, primeiro, aprimorar radicalmente os processos de recrutamento e seleção. Investir em processos seletivos que avaliem não apenas conhecimento técnico, mas também competências comportamentais, motivação e adequação cultural é a forma mais eficiente de prevenir problemas futuros de desempenho. Um recrutamento de alta qualidade reduz dramaticamente a necessidade de demitir posteriormente.
Segundo, capacitar massivamente as lideranças públicas para a gestão de pessoas. A eficácia de qualquer sistema de performance repousa sobre os gestores de linha. É fundamental implementar programas contínuos de formação focados em competências essenciais: definição de metas claras e mensuráveis, feedback construtivo e regular, técnicas de coaching e condução de conversas difíceis sobre desempenho. Um gestor bem treinado transforma a avaliação de desempenho de ritual burocrático em diálogo genuíno de desenvolvimento.
Terceiro, construir sistemas de avaliação que sejam percebidos como legítimos e transparentes. Para superar a desconfiança crônica, os sistemas devem incluir contratualização clara de metas no início do ciclo, critérios objetivos e transparentes, múltiplas fontes de feedback para reduzir subjetividade e órgãos colegiados de avaliação que aumentem a percepção de justiça.
Finalmente, quando necessária, a demissão deve ser regida por processos que equilibrem agilidade e proteção. Isso significa garantir direito à ampla defesa, instâncias claras de recurso e critérios explícitos, mas sem burocratização excessiva que torne o processo inviável na prática.
A inação cobra mais caro que a coragem de transformar
A experiência internacional ensina que não existem soluções mágicas para o dilema da performance no setor público, mas existem caminhos promissores. Países com tradições burocráticas similares ao Brasil conseguiram promover reformas significativas sem abandonar suas proteções fundamentais. Portugal quebrou tabus importantes. Reino Unido e Estados Unidos aperfeiçoam seus sistemas de responsabilização continuamente.
O Brasil pode e deve aprender com essas experiências. Não por modismo ou pressão externa, mas porque os cidadãos merecem serviços públicos de qualidade, os bons servidores merecem reconhecimento pelo seu trabalho e os recursos públicos merecem ser utilizados de forma eficiente.
A questão central não é se o país deve reformar seu sistema de gestão de pessoas no setor público, mas como fazê-lo de forma inteligente, gradual e respeitando as especificidades nacionais. Isso exige coragem para enfrentar resistências corporativas, mas também sabedoria para não destruir proteções que custaram décadas para ser construídas.
O desafio é complexo, mas não intransponível. Outros países com histórias semelhantes encontraram esse equilíbrio. O Brasil também pode fazê-lo. A alternativa — perpetuar indefinidamente um sistema que frustra bons servidores, desmotiva gestores competentes e desaponta cidadãos — – é ainda menos aceitável do que a dificuldade da reforma.
A sociedade brasileira merece um debate sério e informado sobre essa questão. Um debate que reconheça a complexidade do problema, aprenda com a experiência internacional e tenha a coragem de ousar mudanças responsáveis. O primeiro passo é admitir que o status quo é insustentável. O segundo é ter a paciência e a determinação para construir algo melhor.