O que acontece quando servidores migram de áreas finalísticas para o administrativo?

Publicado em: 12 de novembro de 2024

A Prefeitura Municipal de São Paulo conta com mais de 136 mil servidores ativos na administração direta (CLIC, 2024)1, e, portanto,  regidos pela Lei nº 8.989, de 29 de outubro de 1979, que dispõe sobre o estatuto dos funcionários públicos municipais. Atualmente, esse quantitativo está concentrado sobretudo nas secretarias de Educação, Saúde e Segurança Urbana, que respondem por 67,9%, 15,5% e 5,5% dos servidores, respectivamente. 

Para debater esse assunto, propomos neste artigo um exercício de imaginação a respeito de profissionais das secretarias supramencionadas. Quando designadas as perguntas “o que faz um professor?”, “o que faz um enfermeiro?” ou “o que faz um guarda civil metropolitano?”, o que você responderia? Prontamente, as respostas mais comuns associam esses trabalhadores às atividades de ministrar aulas em escolas, atender pacientes em hospitais e cuidar da proteção municipal nas ruas. De fato, as funções apontadas sugerem o escopo finalístico desses cargos. Contudo, há um contingente considerável de servidores dessas carreiras que não ocupam áreas correspondentes a esse imaginário.

Para compreender a complexidade envolvida, é necessário transpor do subjetivo ao normativo e observar que um cargo público corresponde a um conjunto de atribuições e responsabilidades cometidas a funcionário público, e que essas são definidas em lei ou em decreto no quadro da carreira, conforme dispõe o Estatuto dos Servidores Públicos do Município de São Paulo2 . Diante disso, um profissional que ingressa no setor público em uma área operacional, por exemplo, durante sua vida funcional pode vir a desempenhar atividades administrativas que estejam fora do escopo.

Um estudo qualitativo realizado pelas autoras entre fevereiro e junho deste ano analisou o caso da Guarda Civil Metropolitana (GCM) de São Paulo a fim de compreender quais as implicações dessa migração. O foco foi investigar, principalmente sob a ótica dos servidores, se os impactos para quem sai das ruas para ocupar áreas administrativas são sentidos de forma positiva ou negativa, de modo a levantar questões sobre motivação, percepção de sucesso e identidade profissional. 

Nesse contexto, o universo explorado encontra-se dentro da Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU), a terceira maior do município. Atualmente, estão lotados cerca de 7.400 servidores ativos, dos quais mais de 7.000 são guardas civis metropolitanos, desempenhando funções previstas na Lei federal 13.022/143, como proteção de bens e instalações públicas, além de colaboração com a segurança pública. O ponto principal é que apesar de o pressuposto da função estar intimamente relacionado à atividade nas ruas, esse profissional também pode trabalhar em áreas como recursos humanos, logística, finanças, tecnologia, entre outras. 

Na Guarda Civil Metropolitana, essa migração acontece por diferentes razões, em período determinado ou definitivo, a depender de cada caso. Entre os motivos estudados, estão a readaptação funcional, a restrição ao porte de armas de fogo e até mesmo o convite por parte da hierarquia da instituição. Durante a pesquisa, esses três casos foram apontados por meio de entrevistas com atores envolvidos na segurança urbana, desde os próprios guardas civis até lideranças técnicas e setoriais da Secretaria.

De modo a explicar cada caso, tem-se a readaptação funcional como uma das principais razões para essa transição. Ela ocorre quando um servidor, por questões de saúde, é considerado inapto para continuar exercendo suas funções originais, sendo realocado para uma função compatível com sua condição física ou mental. Prevista no estatuto dos funcionários públicos, essa medida é tomada após avaliação médica e busca assegurar a permanência do servidor no serviço público, mesmo que em uma função diferente. Além disso, há casos de servidores que, por não atenderem aos requisitos técnicos ou psicológicos para o porte de arma, também são redirecionados para funções administrativas.

A transferência de servidores que possuem aptidão para atuar nas ruas também ocorre na corporação. Nesse caso, há um convite hierárquico que parte do Comando Geral da GCM e direciona o guarda a integrar uma área-meio. Esses convites, no entanto, não parecem estar amparados em critérios objetivos, como um mapeamento de competências ou interesses do servidor. Assim, muitos guardas são designados para funções administrativas sem um processo seletivo estruturado e conhecimento técnico da nova função, sendo realocados de forma temporária ou definitiva, mas com a possibilidade de retorno às ruas.

O que a priori parece uma questão pontual, na verdade revela-se bastante presente na Prefeitura de São Paulo. As maiores secretarias do município — Educação, Saúde e Segurança Urbana — são também as que apresentam os maiores contingentes de servidores públicos em situação de readaptação funcional. Somente a pasta estudada, responsável pela segurança urbana, possui cerca de 16% de seus servidores alocados em funções distintas das atividades-fim, o que corresponde a mais de 1.200 servidores nessa condição. Em termos percentuais, a SMSU supera Educação e Saúde quando o assunto é readaptação de função.

Estudos destacam que a expectativa do indivíduo diante de seu futuro profissional em uma organização está diretamente relacionada a fatores como remuneração, prestígio e realização de atividades que correspondam aos interesses pessoais e profissionais do servidor. Quando essas expectativas são frustradas, como no caso de uma migração não planejada ou não desejada, os impactos na motivação podem ser consideráveis.

Para além dos dados levantados, é importante considerar também os desafios de recursos humanos envolvidos no tema, tal qual o potencial impacto negativo na motivação desses colaboradores realocados. Estudos como os de Vasconcellos e Neiva (2017)4 destacam que a expectativa do indivíduo diante de seu futuro profissional em uma organização está diretamente relacionada a fatores como remuneração, prestígio e realização de atividades que correspondam aos interesses pessoais e profissionais do servidor. Quando essas expectativas são frustradas, como no caso de uma migração não planejada ou não desejada, os impactos na motivação podem ser consideráveis.

 É importante reconhecer que pesquisas sobre servidores públicos que saíram da função operacional para a administrativa são escassas, resultando em uma limitação de informações e dados sobre a temática. A partir desse cenário, a Prefeitura de São Paulo é um vasto campo de estudo a ser explorado, uma vez que o estudo realizado na Secretaria de Segurança Urbana fornece uma amostra valiosa, mas suas conclusões não podem ser generalizadas. Isso significa que o diagnóstico da GCM pode ser replicado ou contestado, porque cada órgão público possui suas particularidades, e o fenômeno da migração de servidores das áreas-fim para áreas-meio é influenciado por uma série de fatores específicos. 

Apesar das limitações, é fundamental continuar explorando esse tema, principalmente no que se refere às políticas de gestão de pessoas e ao impacto na motivação e no desempenho dos servidores públicos. A Prefeitura de São Paulo deve atentar-se a esses desafios, promovendo a criação de estratégias que garantam uma transição mais estruturada e planejada para os servidores que, por diversas razões, precisam deixar suas funções finalísticas.

Referências Bibliográficas 

1 BRASIL. Lei no 13.022, de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13022.htm

2 SÃO PAULO. Lei no 8.989, de 29 de outubro de 1979. Dispõe sobre o estatuto dos funcionários públicos do município de São Paulo, e dá providências correlatas. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, São Paulo, SP, 1979. Disponível em: https://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-8989-de-29-de-outubro-de-1979

3 3ÃO PAULO. Secretaria Municipal de Gestão. CLIC: Boletim Recursos Humanos. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2024. Disponível em: https://boletimgestao.prefeitura.sp.gov.br/public/dashboard/b4dd5cc5-702f-40c2-84d6-0da29 5062fda?ano_m_s=

4 VASCONCELLOS, Vinicius Carvalho de; NEIVA, Elaine Rabelo. Antecedentes de expectativas de carreira na organização. Temas em Psicologia [online], Ribeirão Preto, v. 25, n.1, p. 193-205, mar. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.9788/TP2017.1-13

Ingrid Bonfim: Administradora Pública pela Fundação Getulio Vargas e Assessora no Governo do Estado de São Paulo.

Isabela Moraes: Administradora Pública pela Fundação Getulio Vargas e Analista de Recursos Humanos no Morgan Stanley Brasil.

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