Índice:
Modelo de desenvolvimento da Alta Direção Pública
Por que desenvolver a Alta Direção Pública?
Abordagens conceituais da Alta Direção Pública
Alta Direção Pública na América Latina: altos e baixos

Desde a virada do século, e particularmente após a pandemia de covid-19, temos testemunhado a revalorização do papel do Estado em direção ao desenvolvimento, que mais recentemente tem se cristalizado nos compromissos da Agenda 2030. É nesse contexto que uma série de reformas administrativas inspiradas por um paradigma neoweberiano vem ocorrendo em muitos países da OCDE. Nesses países, embora se mantenha a lógica da gestão baseada no desempenho — presente a partir da Nova Gestão Pública – NGP (New Public Management) — busca-se corrigir algumas das externalidades negativas que também vieram da NPG (Pollit e Bouckaert, 2011).

Entre essas externalidades, destaca-se o enfraquecimento da ética no serviço público, como resultado de anos de cortes de gestão e progressiva flexibilização do sistema de recursos humanos (Raadschelders, Toonen, Van der Meer, 2007), bem como a excessiva fragmentação dos setores públicos, uma consequência dos processos terceirização ou privatização (Christensen e Laegreid, 2007).

Os esforços para construir e fortalecer sistemas modernos de Alta Direção Pública (ADP) apontam precisamente na direção de preservar uma cultura sólida de serviço público e fornecer ao governo um apoio decisivo para dotar suas políticas de consistência e coerência em sua concepção e implementação. Embora cada sistema político-administrativo tenha sua própria configuração específica de ADP, desde que seja reconhecida como um órgão com características especiais e equipada com conhecimento generalizado dos mecanismos do governo, a ADP é uma ferramenta indispensável para fornecer apoio significativo à condução dos governos.

Ao mesmo tempo, uma ADP profissionalizada (isto é, protegida da patronagem política), na medida em que esteja sujeita a um sistema de avaliação de desempenho, será capaz de harmonizar os complexos imperativos de competência neutra (neutral competence) — que consiste na autonomia baseada em competências profissionais — em relação à capacidade de resposta política (political responsiveness), que traduz-se como lealdade aos objetivos políticos do governo. 

O funcionário público que pertence ao sistema de ADP, embora tenha certas proteções e autonomia frente à intervenção político-partidária nos governos, deve ter, ao mesmo tempo, um grau de sensibilidade política a fim de aconselhar, interpretar e implementar as estratégias políticas do governo (Eichbaum e Shaw, 2010).

Os Sistemas de Alta Direção Pública (SADP) que conseguem equilibrar adequadamente esses imperativos têm a característica de atuar com a lógica da competência responsiva, prestando um serviço altamente profissional e competente, ao mesmo tempo em que provam ser eficientes intérpretes dos alinhamentos e objetivos estratégicos do governo da época.

Quanto maiores o compromisso do sistema político e a legitimidade do SADP, maior a probabilidade de que o sistema avance para estágios mais maduros em seu desenvolvimento e sua lógica de operação.

Isto implica, entre outras coisas, envidar recursos financeiros, humanos e políticos para consolidar todo o ciclo de vida ou etapas do Modelo de Desenvolvimento do SADP. Começando por recrutamento e seleção, seguido por indução e transição, posteriormente treinamento e avaliação, e concluindo com desligamento (ou eventual revinculação) e gestão do conhecimento.

Modelo de desenvolvimento da Alta Direção Pública

A formulação de uma proposta de desenvolvimento do SADP requer a resposta a quatro grandes perguntas: por que desenvolver a ADP? Como desenvolver a ADP? Especificamente, o que precisa ser feito para desenvolver a ADP? E quem deve executar as tarefas de desenvolvimento da ADP?

Por que desenvolver a Alta Direção Pública?

Como já evidenciado em estudos anteriores, uma das questões-chave que precisam ser resolvidas é o esclarecimento da necessidade de desenvolvimento da ADP. Por um lado, parece óbvio que esse papel-chave na administração do Estado deveria ser amplamente desenvolvido a fim de se conseguir um melhor desempenho. Por outro lado, há muitas dúvidas quanto ao que se entende por desenvolvimento, e quanto tempo e recursos estão disponíveis para ele.

Considerando o acima exposto, considera-se apropriado propor que o dilema deriva da falta de uma definição paradigmática do que é a ADP e qual é seu papel potencial na modernização do Estado. Propõe-se, portanto, rever brevemente três abordagens possíveis para resolver esse dilema: a) abordagem weberiana; b) abordagem da Nova Gestão Pública – NGP (New Public Management); e c) teoria do valor público, como um das escolas posteriores à Nova Gestão Pública (neoweberianismo).

a) Abordagem weberiana: em sua proposta sobre o Estado burocrático que busca a realização eficiente dos objetivos atribuídos pelos cidadãos ao Estado, o papel da autoridade é concebido como uma hierarquia que deve funcionar de forma racional e imparcial na aplicação do que a lei dita fazer (autoridade legal racional). Para isso, as pessoas que assumem papéis de autoridade devem ser tecnicamente competentes e ascender de maneira meritocrática na hierarquia estatal, de modo a garantir que o Estado funcione eficientemente, para além das mudanças do governo da época. Essa concepção serve de fundamento para os sistemas de carreira, pois seria a forma de garantir a existência de autoridades profissionais e competentes. Assim, a razão essencial pela qual a ADP deve ser desenvolvida é para garantir o funcionamento eficiente do Estado burocrático, buscando-se a profissionalização técnica dos gerentes mais competentes.

b) Abordagem da Nova Gestão Pública (NGP): uma abordagem alternativa à anterior é a proposta pela NGP, que reduz o papel do Estado ao mínimo necessário para assegurar a trilogia básica de propósitos: eficácia, eficiência e economia do Estado. Tal abordagem conceitualiza a relação entre o Estado e a sociedade, considerando os cidadãos como clientes a serem abastecidos com bens e serviços que os satisfaçam. Essa perspectiva gerencialista pressupõe a superioridade de práticas de gestão do setor privado e considera que estas devem ser implementadas na gestão pública de forma descentralizada e com ampla delegação de poderes nos níveis mais baixos da administração do Estado, com o objetivo final de garantir resultados efetivos para os cidadãos. Nesse contexto, o gestor público deve ser altamente profissional e agir proativamente para garantir a obtenção de resultados de acordo com padrões de desempenho acordados. Para tanto, o gestor deve possuir competências técnicas e gerenciais adequadas à posição específica que ocupa, de acordo com o ethos do setor privado. Essa noção pode sustentar sistemas baseados em cargos ou funções, pois é essencial ter gestores públicos especializados para a missão estabelecida em um cenário dinâmico social e de mercado em constante mudança, o que requer flexibilidade para selecionar e desenvolver a ADP. Desse modo, a razão essencial para o desenvolvimento da ADP deve ser para atender aos padrões de desempenho estabelecidos e melhorar os resultados na posição atual (não se exclui a possibilidade de desenvolvimento futuro, mas não é essencial para esta abordagem).

c) Abordagem pós-NGP ou neoweberiana ou teoria do valor público: críticas desenvolvidas após a NGP apontam para a necessidade de que o Estado busque resultados efetivos (produtividade, eficácia e eficiência), mas colocam em questionamento a supremacia do ethos do setor privado. Em contraste, essas abordagens posteriores à Nova Gestão Pública enfatizam adicionalmente a necessidade de prover bens e serviços que sejam legitimamente validados pelos cidadãos por meio dos usuários, dos não beneficiários e de seus representantes políticos. Portanto, o que se defende é a valorização do ethos do setor público (respeito à legalidade, probidade, vocação para o serviço público etc.), juntamente com uma gestão eficaz. Uma das abordagens mais proeminentes dentro dessa perspectiva é a Teoria da Criação de Valor Público, que afirma que o papel do Estado é criar valor público, respondendo às demandas dos cidadãos de forma produtiva e legítima. Isso implica que o gestor público deve ser capaz de elaborar estrategicamente políticas e programas públicos, administrar politicamente as relações com os cidadãos e seus representantes, gerir uma execução eficaz e eficiente das políticas e dos programas públicos, e fazer tudo isso com ética pública, para que se garanta a legitimidade aos olhos dos cidadãos. Sob essa estrutura, a razão pela qual a ADP precisa ser desenvolvida é para que se crie maior valor público, agindo-se de forma ética.

Abordagens conceituais da Alta Direção Pública

Abordagens da ADPWeberianaNova Gestão PúblicaPós-NGP ou neoweberiana – teoria do valor público (Moore, 1995)
Papel do EstadoEstado burocráticoEstado liberal de menor porteEstado fortalecido,criação de valor público
Finalidade da Gestão Pública·        Eficiência e efetividade (realização de objetivos)·        Eficácia (obtenção de resultados),  eficiência e economia·        Qualidade (satisfação do cliente)·     Eficácia e legitimidade·     Adaptação flexível, com uso de tecnologia·     Qualidade das políticas públicas
 Concepção da Alta Direção Pública·        Ética pública dos servidores·        Autoridade racional, legal, técnica e meritocrática, que assegure as funções do Estado·        Abordagem gerencialista, delegação e descentralização·        Ethos e melhores práticas de gestão do setor privado·        Gestor profissional e pró-ativo·        Abordagem da criação de valor público·        Ethos do setor público·        Gerenciamento com eficácia, interlocução com  representantes dos cidadãos e ética pública·        Consciência política
 Para que desenvolver a ADP·        Garantir o funcionamento eficiente do Estado·        Cumprir os padrões de desempenho estabelecidos·        Melhorar resultados·        Criar maior valor público (eficácia e legitimidade) com ética pública·        Ajudar a proporcionar um senso de governança·        Apoiar as funções de coordenação
O que  desenvolver na ADP·        Competências  técnicas·        Competências técnicas e gerenciais·        Competências técnicas, gerenciais, políticas e de comunicação
Fonte: Elaboração própria.

Assim, considerando o diagnóstico feito anteriormente sobre a necessidade de especificar uma concepção acerca do desenvolvimento da ADP e com base na revisão das três principais abordagens descritas acima, propõe-se considerar a noção básica de desenvolvimento da ADP como um criador de valor público. Isso porque tal abordagem é uma consequência da evolução da gestão pública com base em abordagens anteriores, levando suas contribuições de forma crítica (o valor da racionalidade, da legalidade e da ética pública já presente em Weber e a importância da gestão orientada para resultados; a incorporação de boas práticas de gestão do setor privado; e a adaptabilidade ao ambiente, provenientes da NGP) e acrescentando a ênfase na gestão política para alcançar legitimidade perante os cidadãos.

Junto a isso, propõe-se que o conceito de desenvolvimento da ADP seja formulado como o processo de facilitação do aprendizado formal e informal, individual e coletivo, das competências técnicas, gerenciais, políticas e de comunicação exigidas à ADP para melhorar continuamente sua capacidade de criar valor público para o país durante o período em que trabalham dentro do sistema público. Essa proposta, por um lado, destaca a importância do processo de aprendizagem que a ADP deve empreender para aprimorar suas competências gerenciais e, por outro, demonstra que o objetivo desse aprendizado é a criação de valor público presente e futuro, propósito fundamental do processo.

Alta Direção Pública na América Latina: altos e baixos

Apesar de algumas tentativas, a profissionalização da ADP não conseguiu ocupar um lugar de destaque na maioria das agendas de modernização pública dos países da América Latina. Assim, o critério fundamental para a provisão de cargos hierárquicos ou gerenciais ainda é predominantemente a confiança política (Cortázar et al., 2016). No entanto, existem exemplos na região que têm ido em direção a um SADP, mesmo com altos e baixos.

Ao contrário do que ocorre na maioria dos países desenvolvidos, a implementação de um SADP representa mais do que uma mudança de um sistema baseado no mérito para um sistema gerencial. É uma tentativa de romper ou limitar a lógica do clientelismo para avançar em direção a um cenário com mais componentes de mérito e capacidade gerencial. Além disso, os objetivos para os países da região com a implementação da ADP estão mais relacionados à colocação de “barreiras” ao avanço da política sobre a administração pública do que à formação de lideranças gerenciais ou ao aumento dos níveis de responsabilização das burocracias na gestão de políticas públicas (Iacovello et al., 2017).

Assim, as resistências a uma implementação efetiva de um SADP estão relacionadas:

a) à noção de perda de controle sobre as políticas públicas nas mãos de um órgão de alta direção, que, ao contrário da rede de políticos indicados, deve agir com neutralidade e a serviço dos objetivos políticos do contexto, mesmo que não compartilhe necessariamente as mesmas posições;

b) à perda de recursos (financeiros ou humanos) ou da capacidade de serem utilizados com maior discricionariedade tanto para recompensar a militância quanto como moeda de troca nos governos de coalizão.

Dessa forma, o desafio está na modificação de três dimensões do vínculo entre as políticas e a alta burocracia: a) as competências a serem priorizadas não estarão mais associadas à confiança política ou pessoal, mas à competência técnica; b) as recompensas não estarão mais associadas a retribuições discricionárias, mas ao menor ou maior cumprimento objetivo dos resultados; e c) a lealdade não dependerá do perfil político do nomeado (Ramos e Scrollini, 2013). 

Nesse contexto, países como Chile ou Peru (mais Chile do que Peru) conseguiram institucionalizar, ampliar e legitimar progressivamente seus SADP. Em ambos os casos, foi necessário enfrentar desafios políticos, principalmente em momentos de transição governamental, os quais foram superados por meio de ajustes nos sistemas, acumulando-se processos de profissionalização e modernização da Alta Direção Pública.

Em outros países, como Argentina e México, no entanto, apesar das tentativas de implementação, os sistemas tenderam a se desinstitucionalizar sem atingir um estágio de maturidade. As pressões políticas por maior discricionariedade nas nomeações contribuíram para corroer e desencorajar a consolidação de um SADP. As resistências foram expressas, por exemplo, por meio de nomeações transitórias ou excepcionais para cargos da ADP, demissões não fundamentadas ou arbitrárias, concursos sem aprovados ou vetos a nomeações específicas.

A nota é de responsabilidade do autor e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ele está vinculado.

Bibliografia

  • Christensen, T., & Laegreid, P. (2007). Transcending New Public Management. The Transformation of Public Sector Reforms: Routledge.
  • Cortázar Velarde, J. C., Fuenzalida, J. & Lafuente, M. (2016). Sistemas de Mérito para  la  Selección  de  Directivos  Públicos.  ¿Mejor Desempeño  del  Estado? Washington: BID.
  • Iacovello, M., Llano, M. & Ramos, C. (2017). Alta Dirección Pública Latinoamericana. Marchas y Contramarchas. Revista de Gestión Pública, Vol. VI (2), pp. 173-214.
  • Eichbaum, C., & Shaw, R. (2010). Partisan appointees and public servants: An international analysis of the role of the political adviser. Edward Elgar Publishing.
  • Pollitt, C., & Bouckaert, G. (2011). Public Management Reform: A comparative analysis-new public management, governance, and the Neo-Weberian state. Oxford University Press.
  • Raadschelders, J. C., Toonen, T. A., & Van der Meer, F. M. (2007). The civil service in the 21st century [Electronic book]: comparative perspectives. Palgrave Macmillan.
  • Ramos, C., &Scrollini, F. (2013). Los nuevos acuerdos entre políticos y servidores públicos en la Alta Dirección Pública en Chile y Uruguay. Revista Uruguaya de Ciencia Política, 22(1), 11-36.

Conrado Ramos

• Doutor em Ciência Política pela Universidade de Frankfurt (Johann-Wolfgang-Goethe), Alemanha.
• Diretor do Departamento de Ciência Política 2019-2020. Faculdade de Ciências Sociais (Udelar).
• Coordenador do Mestrado em Políticas Públicas. Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República. 2016-2018.
• Vice-Diretor da OPP 2007-2010.

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