Caso o projeto não seja aprovado até junho, Lei de Cotas perderá sua validade, encerrando a reserva de vagas para pessoas negras no serviço público federal

Por Eugênia Lopes — Especial para República.org

Sub-representados no serviço público, pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas estão prestes a ter mais possibilidades de ingressar na administração pública federal. O PL de Cotas, substitutivo do PL 1.958/2021, amplia de 20% para 30% o número de vagas em concursos públicos e reduz de três para duas as vagas mínimas para a implementação da reserva de vagas. Outra novidade, aprovada no dia 8 de maio, é a ampliação das cotas para preencher vagas temporárias.

A Lei 12.990/2014, que expira em 9 de junho de 2024, estabeleceu a reserva de 20% das vagas em concursos públicos da administração pública federal para pessoas negras. Em dez anos de vigência, a Lei de Cotas teve um avanço, mas ainda tímido perante a representatividade brasileira. Em 2013, a administração pública federal possuía 37,3% vínculos ativos (219.496) que se autodeclararam como pessoas negras (pretas e pardas), contra os 39,9% verificados em 2024.

“Não podemos ver Lei de Cotas como bala de prata; ela não vai resolver todos os problemas. São problemas estruturais da sociedade brasileira. Mas é muito importante que a gente tenha esse dispositivo legal, que nos garanta fazer avanços. É uma forma do Estado brasileiro tentar mitigar e minimizar a desigualdade social. É muito importante que os servidores públicos tenham a cara do Brasil; a cara do Brasil não é branca e classe média”, resume a cientista política Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação da República.org.

Hoje, quatro em cada 10 servidores do Executivo federal se declaram pretos ou pardos. De acordo com números do Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal, em fevereiro de 2024, pessoas negras representavam 39,9% (um total de 227.776) dos servidores públicos ativos da administração pública federal. Dados do Censo 2022, do IBGE, apontam que pessoas pretas e pardas correspondem a 55,7% da população brasileira.

“Há um consenso de que a reserva de vagas é estratégica para um Estado mais próximo e reconhecido pela própria população. A implementação da lei de cotas no serviço público enfrentou uma série de desafios, tendo como pano de fundo o racismo estrutural e suas estratégias para manter as desigualdades existentes”, diz Jessika Moreira, especialista em gestão pública e inovação no serviço público, e diretora-executiva do Movimento Pessoas à Frente (MPF).

Avanço ainda é tímido

Um dos motivos para o avanço tímido da participação de pessoas negras no serviço público federal, nos últimos 10 anos, foi o baixo número de concursos públicos. De acordo com o Sistema de Pessoal Civil da Administração Pública Federal, em 2014, foram autorizados 279 concursos públicos federais para 27.205 vagas. Já em 2020, foram apenas sete concursos, para preencher 3.813 vagas no Poder Executivo Federal.

“Quanto maior a oferta de vagas em concursos, maior a possibilidade de a gente chegar a 30% (das cotas). Os últimos 10 anos foram particularmente ruins para concursos, houve poucos, ficou realmente difícil cumprir. Se não tem concurso público, não tem como aplicar a lei“, observa a gerente de Dados e Comunicação da República.org.

Não podemos ver Lei de Cotas como bala de prata; ela não vai resolver todos os problemas. São problemas estruturais da sociedade brasileira. Mas é muito importante que a gente tenha esse dispositivo legal, que nos garanta fazer avanços.

Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação da República.org

Além da redução do número de concursos públicos, outro fator que impediu um aumento significativo no número de pessoas negras no serviço público deve-se a não inclusão dos cargos temporários na reserva de vagas. Não à toa, um dos maiores avanços apontados na renovação da Lei de Cotas é precisamente a incorporação dos cargos temporários na reserva de vagas de 30% em contratações realizadas por processo simplificado.

“A inclusão dos cargos temporários é um grande gol. É mais gente entrando quantitativamente, ou seja, mais pessoas assumindo cargos”, comemora Vanessa Campagnac.

Entre os anos de 2014 e 2022, 121.125 profissionais temporários foram admitidos na administração pública federal por meio de processo seletivo. Se a nova Lei de Cotas estivesse em vigência, 36.337 (30%) pessoas teriam ingressado no serviço público em ações afirmativas.

Apesar dos avanços na renovação da Lei de Cotas, Jessika Moreira lamenta a retirada de pontos importantes do texto original, como o prazo de vigência de 25 anos da legislação e a inclusão de subcota para mulheres. O substitutivo inicial estabelecia que do total de 30% de vagas destinadas à ação afirmativa, metade delas (50%) seriam preenchidas por mulheres negras.

“A proposta de uma subcota de 50% das vagas para mulheres era um ponto importante da redação inicial, por atender um aspecto de interseccionalidade entre desigualdades de raça e gênero. Segundo dados do estudo Desigualdade de Gênero em Cargos de Liderança no Executivo Federal, mulheres ocupam 38% dos cargos de alta liderança no executivo federal e apenas 27% dos cargos classificados como de Natureza Especial, como secretárias executivas, secretárias especiais e subchefias”, observa a diretora do MPF.

Caso não seja aprovada até junho, a lei de cotas perde sua validade e acaba com a reserva de vagas no serviço público, avanço social e conquista histórica para a população negra no Brasil.

Jessika Moreira, especialista em gestão pública e inovação no serviço público

Paralelamente à ampliação de 20% para 30% do percentual de vagas para pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas, o projeto de lei prevê ainda mecanismos para refrear uma brecha à ação afirmativa verificada ao longo de dez anos de vigência da Lei de Cotas, em especial nas universidades federais, com a pulverização de vagas. O texto estabelece a redução de três para duas as vagas mínimas para a implementação da cota. Hoje, os concursos para magistério superior abrem, na maioria das vezes, apenas duas vagas.

Lei atual prestes a vencer

O governo corre contra o tempo para aprovar o projeto da renovação da Lei das Cotas no Congresso antes do dia 9 de junho. “Caso não seja aprovada até junho, a lei de cotas perde sua validade e acaba com a reserva de vagas no serviço público, avanço social e conquista histórica para a população negra no Brasil, além de abrir grande espaço para judicialização de casos individuais. Para os concursos já em andamento, como o CNU (Concurso Nacional Unificado), não há interferência no processo de reserva de vagas”, afirma Jessika Moreira.

Apesar de valer apenas para concursos federais, a lei de cotas serve de parâmetro para concursos públicos estaduais, municipais e de outros Poderes.

A renovação da Lei de Cotas foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e agora precisa ser votada na Câmara dos Deputados para entrar em vigor. Na última votação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, no dia 8 de maio, os senadores fizeram uma mudança de redação no texto do projeto de lei e trocaram a palavra “negro” por “preto e pardo”. Segundo definição do IBGE, negros são todas as pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas.

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