Pessoas negras são minoria nas carreiras mais bem pagas do serviço público federal

Publicado em: 22 de outubro de 2024

Levantamento inédito da República.org mostra que pessoas negras estão sub-representadas nos cargos de elite da administração pública; Itamaraty conta com apenas 5,1% de pretos e pardos no topo da carreira

Por Eugênia Lopes — Especial para República.org

Fachada do Ministério de Relações Exteriores, em Brasília. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Chefe adjunta do Cerimonial da Presidência da República, a diplomata Marise Ribeiro tem uma trajetória profissional marcada por exceções à regra. Única aluna negra a ingressar na turma do curso de Medicina da UniRio, em 1982, Marise foi a primeira bolsista do Programa de Ação Afirmativa para Afrodescendentes (PAA) do Instituto Rio Branco aprovada no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), em 2003. Hoje ministra de segunda classe, a diplomata é uma das poucas mulheres negras que desafia estereótipos ao conquistar um espaço ainda raro numa das carreiras mais bem pagas do funcionalismo público federal.

“As mulheres negras continuam num lugar de inferioridade na sociedade brasileira. É surpreendente quando alguma delas consegue romper o teto, que nem é de vidro para as mulheres negras; ele é de concreto”, afirma Marise. “Sei que sou um ponto fora da curva porque venho de uma carreira de elite, que é a Medicina, para outra carreira de elite, que é a diplomacia. A gente vai poder dizer que o Brasil está melhorando quando histórias como a minha não forem de pontos fora da curva”, diz a diplomata.

Infelizmente, histórias profissionais como a de Marise Ribeiro ainda são incomuns no serviço público. Um levantamento da República.org, divulgado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), revela, com base nos dados do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (Siape) de março de 2024, a baixa representatividade de pessoas negras em cargos de alto escalão no funcionalismo público federal. No estudo, que rankeia os 15 cargos com menor presença de pessoas negras, a diplomacia brasileira aparece no topo da lista como o setor mais desigual.

É surpreendente quando mulheres negras conseguem romper o teto, que nem é de vidro: é de concreto.

Marise Ribeiro, diplomata

O Itamaraty foi pioneiro na administração pública federal ao criar o PAA e implementar a Lei de Cotas a partir de 2015. No entanto, apenas 5,1% dos embaixadores — ministros de Primeira Classe, o topo da hierarquia diplomática — são pessoas negras. Segundo levantamento da República.org, o percentual é um pouco maior entre ministros de Segunda Classe, o segundo cargo mais alto na diplomacia, mas ainda limitado a 7,4%.

Assim como no Itamaraty, as pessoas negras estão sub-representadas em carreiras de elite no funcionalismo público do Executivo Federal, como médicos, analistas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), professores universitários, técnicos da Superintendência de Seguros Privados (Susep) e auditores da Receita Federal. São cargos em que os salários iniciais, geralmente, começam acima dos R$ 20 mil.

“O dado não é uma surpresa. Isso conversa diretamente com as desigualdades que existem na nossa sociedade. O serviço público não está apartado; ele é um espelho da nossa sociedade”, observa Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação da República.org. “Nos cargos mais concorridos, com mais altos salários, só vai ter quem consegue se preparar para o concurso. E as condições de preparação para o concurso são muito desiguais. O concurso é democrático, mas as condições para você chegar no concurso são muito díspares”, argumenta.

Discrepância salarial

O levantamento da República.org também fez um ranking dos 15 cargos com maior proporção de pessoas negras. Nessa lista, os salários são mais baixos. Agentes de Polícia Civil (carreiras dos ex-territórios federais) estão no topo, com 85,3% de pessoas negras, seguidos pelos servidores públicos que são auxiliares de operação de serviços diversos (73,7%). “Cargos de maior remuneração e maior prestígio social, tanto no setor público quanto no privado, têm predominância de pessoas brancas”, atesta Paula Frias, coordenadora de Dados da República.org.

Dados do Siape apontam discrepância salarial entre brancos e negros no serviço público federal. Em março de 2024, mais de 50% das pessoas brancas receberam acima de R$ 12,8 mil, enquanto entre as pessoas negras esse valor ficou em R$ 9,9 mil. Isso pode ser explicado pela distribuição de pessoas brancas e negras entre as carreiras de maior e menor remuneração.

Nos dez anos de vigência das cotas para concursos, houve uma pequena variação positiva da proporção de pessoas negras no serviço público. Informações do Painel Estatístico de Pessoal (PEP) apontam que 39,9% dos servidores ativos do Executivo se autodeclaram como pessoas negras. Em 2013, antes da lei das cotas, esse percentual era de 37,3%.

Os 15 cargos com a menor proporção de pessoas negras
(Com mais de 100 vagas ocupadas)

CargoProporção de pessoas negrasRemuneração inicial
Ministro de Primeira Classe (Diplomacia)5,1%R$ 20.927,00
Ministro de Segunda Classe (Diplomacia)7,4%R$ 20.927,00
Médico (Previdência, Saúde e Trabalho)*9,4%R$ 4.905,00
Conselheiro (Diplomacia)12,9%R$ 20.927,00
Analista da CVM13,5%R$ 20.925,00
Professor Titular-Livre do Magistério Superior14,7%R$ 10.408,00
Analista Técnico da Susep15,0%R$ 20.925,00
Especialista em Regulação da Atividade Cinematográfica e Audiovisual16,3%R$ 16.413,00
Procurador da Fazenda17,7%R$ 22.906,00
Pesquisador17,8%R$ 7.888,00
Técnico de Planejamento e Pesquisa (IPEA)18,2%R$ 20.925,00
Médico (Hospital das Forças Armadas)*18,7%R$ 4.362,00
Primeiro Secretário (Diplomacia)18,8%R$ 20.927,00
Defensor Público da União18,8%
Auditor-Fiscal da Receita Federal19,0%R$ 25.172,00
*Vínculos de 20 horas.
Fonte: Siape de março de 2024. Elaborado pela República.org.

Lei de Cotas em concursos

Sancionada em 2014, a Lei n.º 12.990 vigorou por 10 anos, destinando 20% das vagas em concursos públicos para pretos e pardos, quando há um mínimo de três posições disponíveis para um mesmo cargo. A lei perderia sua validade em 10 de junho deste ano, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a ampliação da vigência da legislação até que seja concluído no Congresso o processo de votação da nova legislação.

Pela decisão do Supremo, fica afastada “a interpretação que extinga abruptamente as cotas raciais previstas na Lei 12.990/2014”, mas depois que uma nova norma for aprovada “prevalecerá a nova deliberação do Poder Legislativo, sendo reavaliado o conteúdo da presente decisão cautelar”.

O concurso é democrático, mas as condições para você chegar no concurso são muito díspares.

Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação da República.org

Aprovada em maio no Senado, a renovação da Lei de Cotas Raciais em concursos públicos está agora na Câmara à espera de votação. Parte da oposição é contra o mérito da proposta. No dia 10 de outubro, o deputado Odair Cunha (MG), líder do PT na Câmara, apresentou requerimento de urgência para votação do projeto de lei. A expectativa é que a proposta seja aprovada antes do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro.

O Projeto de Lei 1.958/2021 renova cotas para pessoas negras, incluindo indígenas e quilombolas, e amplia de 20% para 30% o percentual de vagas destinadas a cotas raciais. A proposta estabelece também mecanismos para refrear eventuais tentativas de burla às ações afirmativas verificadas ao longo de dez anos de vigência da Lei de Cotas, em especial nas universidades federais, com o fracionamento de vagas.

Os 15 cargos com a maior proporção de pessoas negras
(Com mais de 100 vagas ocupadas)

CargoProporção de pessoas negrasRemuneração inicial
Agente de Polícia Civil (ex-territórios)85,3%R$ 13.650,00
Auxiliar de Artífice82,8%R$ 3.237,00
Agente de Limpeza e Conservação78,2%R$ 3.237,00
Artífice de Mecânica77,3%R$ 4.183,00
Agente de Vigilância77,0%R$ 4.188,00
Fonte: Siape de março de 2024. Elaborado pela República.org.

Nota do Itamaraty

O levantamento da República.org com dados sobre a baixa representatividade de pessoas negras em altos cargos foi publicado com exclusividade pela Folha de S. Paulo. Em nota ao jornal, o Itamaraty informou que “desde 2015, como as demais instituições públicas brasileiras, o Ministério de Relações Exteriores cumpre a cota de 20% de pessoas negras em seus concursos de admissão às carreiras do serviço exterior brasileiro”. O órgão reforça ainda que a atual administração está empenhada numa série de medidas de promoção da diversidade e da inclusão.

Na nota, o Itamaraty observa que medidas de incentivo para maior entrada e ascensão de pessoas negras estão sendo adotadas, mas seu impacto na alta chefia tende a ser de médio e longo prazo. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, a turma que se formou no Instituto Rio Branco, em 2024, é a mais diversa da história, com 22% de mulheres negras, mas sua chegada à alta chefia irá demorar muitos anos.

A primeira turma de cotistas, de 2015, não alcançou um terço do tempo médio de promoção a embaixador. A primeira turma do PAA ainda não alcançou o topo da carreira. É o caso da chefe adjunta do Cerimonial da Presidência, Marise Ribeiro, que é ministra de Segunda Classe e ainda precisa subir um degrau na hierarquia da diplomacia para chegar ao topo da carreira.

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