A linha de frente nos serviços de atenção à população em situação de rua: resolvendo problemas complexos

Publicado em: 21 de maio de 2024

Índice
Desafios em cadeia: o cenário das políticas para população em situação de rua
Implementando políticas públicas em contextos (ainda mais) adversos
Visões de mundo em disputa: o conflito de ideias e os diferentes acessos

A Constituição Federal de 1988 reconhece a existência de uma série de direitos sociais, e a materialização desses direitos depende da implementação de serviços públicos. Essa linha de frente é construída pelos burocratas de nível de rua: os trabalhadores que atuam em contato direto com os cidadãos e que tomam decisões cotidianas para dar concretude às políticas públicas.

Se, em geral, implementar diretrizes gerais e abstratas é uma tarefa complexa, é especialmente desafiador quando pensamos em públicos extremamente vulneráveis. Como mostramos em artigos publicados anteriormente no República em Notas, políticas públicas para a população em situação de rua, ao mesmo tempo em que demandam soluções complexas e intersetoriais, são intensamente conflituosas e disputadas na sociedade, tendo sido consolidadas de forma gradual e consideravelmente recente – a Política Nacional da População em Situação de Rua foi criada apenas em 2009. 

Nesse sentido, é muito importante olhar para a linha de frente do trabalho com a população em situação de rua: quais são as condições de trabalho? O que marca sua atuação? Como são tomadas as decisões cotidianas que afetam a população em situação de rua? Na série de textos do República em Notas sobre burocracia em nível de rua, a professora Gabriela Lotta discute alguns desses aspectos para a BNR em geral, e, neste texto, ilustramos o caso específico da população em situação de rua.

Desafios em cadeia: o cenário das políticas para população em situação de rua

Em linhas gerais, as pessoas em situação de rua possuem acesso a direitos universalmente garantidos, como saúde, assistência social e habitação. No entanto, as especificidades da situação de rua, como a falta de documentos e a ausência de endereço fixo, assim como o acúmulo de vulnerabilidades, dificulta o acesso aos serviços gerais, como políticas de saúde e habitacionais. Um exemplo comum são pessoas em situação de rua que têm dificuldade em realizar atendimento em Unidades Básicas de Saúde, dada a ausência de documento para cadastro. 

Por essa razão, existem, hoje em dia, políticas especializadas em públicos vulneráveis e, mais especificamente, em pessoas em situação de rua, como o Centro de Referência Especializado em Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop), o Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS) e o Consultório na Rua (CnRua). Esses equipamentos têm por objetivo corrigir as assimetrias e garantir o acesso de pessoas em situação de rua a direitos que lhes são garantidos, mas que, muitas vezes, não são viabilizados por meio dos serviços convencionais. 

De um modo geral, movimentos sociais e organizações engajadas com a defesa dos direitos da população em situação de rua reconhecem a importância dessas políticas, ao mesmo tempo em que pontuam algumas insuficiências presentes. Entre as principais críticas, encontram-se a falta de dados para informar decisões de gestão e as soluções propostas enquanto política pública que levam em conta apenas uma dimensão da vida das pessoas em situação de rua, como emprego ou saúde, sem endereçar suas demandas, que são complexas e entrelaçadas, de forma integral.

A complexidade desse cenário reflete-se no trabalho dos burocratas em nível de rua, em meio à multiplicidade de políticas. Por um lado, em serviços gerais, os profissionais são colocados diante de uma série de problemas diferentes, de grupos diversos, de forma que nem sempre possuem as ferramentas ou as possibilidades de adequação dos trabalhos realizados para garantir o acesso de pessoas em situação de rua. Por outro lado, em serviços específicos, a setorialização da política muitas vezes impede um olhar mais integral das demandas presentes. 

A cidade de São Paulo é ilustrativa nesse sentido, sobretudo em virtude do seu grande e crescente contingente de pessoas em situação de rua – atualmente, são quase 35 mil pessoas nessa situação, de acordo com os dados do censo municipal. Apesar do grande número de serviços ofertados em âmbito municipal, a concentração de esforços em políticas de acolhimento institucional e a fragmentação no atendimento limitam o alcance das políticas: sem emprego, as pessoas não encontram alternativas para sair dos centros de acolhida; sem moradia ou abrigo, é muito difícil seguir um tratamento de saúde, entre outros dilemas. 

Assim, muitas pessoas em situação de rua acabam circulando entre os serviços, sem encontrar uma alternativa efetiva para sua situação. Esse contexto amplia a insatisfação da população e os questionamentos colocados para as equipes dos serviços, que lidam também com alternativas limitadas e pouco diversas.

Implementando políticas públicas em contextos (ainda mais) adversos

Ao discutir o trabalho dos burocratas de nível de rua, Lipsky afirmou que esses trabalhadores realizam “trabalhos impossíveis”. Isso porque precisam implementar as ações oficialmente previstas em meio à escassez de recursos: materiais, tempo e equipe não são suficientes para dar conta da enorme demanda. Entre a pressão do Estado por um serviço universal e eficiente e as demandas dos usuários das políticas por um atendimento pessoalizado e atencioso (LIPSKY, 2010)1, os burocratas em nível de rua tomam decisões cotidianas e realizam contingenciamentos constantes, além de desenvolver estratégias de sobrevivência.

No caso das políticas para a população em situação de rua, o contexto é marcado por insuficiência de vagas, ausência de políticas que olhem para os sujeitos de forma integral e pela constante circulação das pessoas entre os serviços. Ainda, as características dos usuários dos serviços envolvem sobreposição de vulnerabilidade, como uso de drogas ou histórico de violência, o que afeta as possibilidades de construção de vínculos e a construção de alternativas, tendo em vista a natureza multifatorial e complexa do problema. Essas dimensões tornam-se ainda mais acentuadas com o aumento constante do número de pessoas em situação de rua e a mudança do perfil do grupo, antes majoritariamente masculino e solteiro, com a ampliação do número de famílias nas ruas.

Essas características tornam o contexto de implementação um espaço permeado de tensões e disputas, além de colocar os burocratas em nível de rua em uma posição na qual precisam selecionar usuários para serviços escassos, administrar conflitos e desenvolver mecanismos para garantir acesso e permanência nas políticas. De acordo com a literatura, para lidar com esse cenário, esses profissionais desenvolvem critérios de seleção dos usuários, estratégias de coping, como mecanismos de simplificação do trabalho e despessoalização do tratamento, além de métodos criativos para administrar situações de crise para as quais não existem recursos – emocionais, financeiros e de estrutura – disponíveis. Essas estratégias são desenvolvidas a partir de parâmetros normativos, mas também a partir de ideias e percepções individuais, que ajudam a completar e atribuir sentido às regras às quais os profissionais estão submetidos. 

Visões de mundo em disputa: o conflito de ideias e os diferentes acessos

Na constituição da população em situação de rua como “problema público”, vimos como ideias em torno do que deve ser feito para atender esse grupo variam. De uma parte, esse conflito e ambiguidade são cristalizados em normas e diretrizes formais. Muitas vezes, percebemos divergências sobre como o Estado deve atuar entre setores de política pública ou dentro de um mesmo setor. Um exemplo ilustrativo debatido em textos anteriores é a discussão sobre tratar a situação de rua como uma pauta da assistência social ou da habitação, o que implica diferentes percepções sobre a causa do problema – se pobreza ou falta de moradia.

De outra parte, como analisa Raaphorst (2021)2, esse tipo de situação gera incertezas para os profissionais da linha de frente, que se deparam com a necessidade de navegar outros repertórios – individuais e sociais – para tomar suas decisões cotidianas. Em São Paulo, por exemplo, existem poucas vagas em serviços que buscam propiciar um espaço de maior autonomia para pessoas em situação de rua, o que é possível com ambientes mais privativos e menor número de regras. Apesar de se tratar de políticas que não promovem alimentação ou limpeza dos espaços, são políticas muito buscadas por pessoas em situação de rua. 

Tendo em vista a alta procura, as possibilidades de acesso e permanência nesses serviços dependem das decisões tomadas pelos burocratas em nível de rua sobre qual usuário deve entrar e permanecer no serviço. Uma vez que faltam parâmetros normativos, essas decisões estão muito conectadas às percepções dos burocratas em nível de rua sobre o comportamento dos usuários e sobre o papel do próprio serviço. De acordo com o estudo realizado por Salatino (2023)3, alguns profissionais operam visões sobre os usuários que individualizam a busca por alternativas, o que ocasiona maior responsabilização dos usuários e padrões de desligamento, punição e transferência. Em outros casos, há uma percepção mais coletiva da responsabilidade, que justifica maiores esforços das equipes para a manutenção dos usuários nos serviços. 

Nesses casos, a decisão dos burocratas em nível de rua – e, no limite, o acesso ao serviço – é pautada não apenas pelas normativas, mas também por dimensões, valores e trajetórias individuais que ressignificam o encontro com as pessoas em situação de rua. O contexto das políticas também importa, como visto acima, no caso dos serviços gerais e especializados, mas é reposicionado – ao mesmo tempo em que reposiciona – pela atuação dos profissionais de linha de frente, fato que se torna ainda mais relevante em um cenário de políticas escassas e públicos altamente vulneráveis, como é o caso da população em situação de rua. 

Referências


1LIPSKY, Michael. Street-level bureaucracy: Dilemmas of the individual in public service. Russell Sage Foundation, 2010.
2RAAPHORST, Nadine. How to prove, how to interpret and what to do? Uncertainty experiences of street-level tax officials. Public Management Review, v. 20, n. 4, p. 485-502, 2018.
SALATINO, L. “Direitos sim, mas deveres também”: percepções da burocracia sobre a autonomia das pessoas em situação de rua. Dissertação de Mestrado, FGV EAESP. São Paulo, 2023.

Laura Cavalcanti Salatino: Advogada, coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP) e mestre em administração pública e governo (FGV).

Juliana Rocha Miranda: Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV, pesquisadora júnior do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB).

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